07 agosto 2020

 

China VIII


De regresso a Hong Kong, reatamos a ligação com Ken, o guia que deixámos na partida para Macau. Vamos a um passeio na baía de Hong Kong e ao porto de Aberdeen, uma vila piscatória. De barco, percorremos a baía, por entre juncos, yates, traineiras e as célebres casas flutuantes, onde vivem muitas famílias com seus animais, roupas estendidas a secar ao sol, antenas de televisão a ligarem-nas ao mundo exterior.
De novo em terra, vamos em demanda do pico Vitória. No início da subida que vai caracolando em curva e contracurva até ao cimo, paramos numa praia magnífica, uma estância balnear no oceano Pacífico, bem servida de adequadas instalações. Praia deserta neste quase fim-de-tarde, mas banhada em doce tranquilidade, sol a esmorecer por cima da água em repouso, uma ilhota erguendo-se no mar em majestosa melancolia, colinas diluindo-se ao fundo em esfumada distância. Apetecia dar um mergulho e umas braçadas valentes, mas não é ocasião de praia. Há quem se contente em ir até à borda de água para molhar os pés, atravessando o vasto areal.
Seguimos em frente, na ascensão ao Victoria Peak, 550 m. de altitude. É um local de muito turismo. Do alto, obtém-se uma vista soberba sobre Hong Kong, o casario com seus arranha-céus avultando, a baía, as montanhas que rodeiam a cidade. É ao escurecer, as luzes começam a acender-se. Restaurantes e dois centros comerciais povoam o alto. Junto a um dos centros comerciais tem paragem final o funicular. Porém, não é aqui que tem lugar o nosso jantar. Este ocorre num restaurante na baixa da cidade, para onde vamos no autocarro, sempre encaminhados pelo Ken. Por sinal, um jantar muito agradável, com muitos pratos, como é típico na China, dos melhores que temos saboreado. Comida cantonesa.
Instalados no hotel, saio para a rua antes de dormir. Não há por aqui grandes coisas para observar, nem grandes vistas. Como já referi, o hotel fica num alto, que é ocupado praticamente pelo complexo que inclui o centro comercial Metropolis. Ao fundo, vêem-se estradas alcatroadas cruzando-se em vários níveis. Porém, saio para contemplar, pelo menos, a grande fachada do hotel, que se desenvolve em harmónio, o grande átrio buliçoso, onde os funcionários do câmbio trocam divisas estrangeiras pelos dólares de Hong Kong. Fora, há um espaço ajardinado bastante agradável, iluminado durante a noite, com pequenos lagos e chafarizes e bancos para as pessoas se sentarem. Há uma escadaria para descer a colina e que, por baixo de uma das estradas acima referidas, conduz os peões ao outro lado, onde parece haver uma estação de Metro. Este local onde está situado o hotel não olha para a cidade, o casario, o movimento das pessoas; em contrapartida, está muito perto das vias de acesso e saída da cidade, nomeadamente da estrada que conduz ao grande túnel subaquático, no termo do qual está o cais onde se apanham os barcos para Macau, como já referido.


Eis um novo dia cheio de sol – um sol companheirão que não nos tem largado nestes dias de viagem. Ele entra pelo quarto em jorros, mal corrida a cortina, proclamando estridentemente o seu carácter festivo.
Esta é uma manhã livre em que cada qual pode dispor do tempo como lhe aprouver. Tomado o pequeno-almoço nas calmas na sala de aspecto muio íntimo com mesinhas de duas ou quatro pessoas devidamente atoalhadas e onde se detectam hóspedes de várias proveniências, atestando o ar cosmopolita do hotel, pondero entre sair para o centro da cidade num dos pequenos autocarros a isso destinados, ou ficar por aqui na sorna. Hoje é o último dia útil de viagem; os dias gastos nas viagens de ida e volta não os incluo no tempo útil de fruição. Estes são consumidos a andar de avião em que se vai atarracado em bancos sem espaço para cruzar as pernas, numa total ausência de paisagem, fingindo dormir quando o sono aperta, ansiando pelo dia ou hora de chegada.
Opto por ficar no hotel. Por volta do meio-dia, há que pôr as malas à porta do quarto, a fim de que os funcionários a isso destinados as carreguem em carrinhos próprios e as levem para o autocarro que nos há-de transportar durante todo o longo dia que temos pela frente, até à hora de avançarmos para o aeroporto. Se fosse para o centro da cidade, teria que sujeitar-me às horas dos autocarros que levam e trazem os hóspedes, embora com frequência de 20 em 20 minutos e, preocupado com a hora das malas, pouco disfrutaria da cidade. Não seria assim, se me tivesse levantado muito cedo. Fico, pois, e vou lendo, de meu vagar, os guias que trouxe comigo, escritos em inglês. Antes, porém, vou dar um curto passeio a pé, descendo a rampa que vai do hotel a uma das estradas asfaltadas, lá em baixo. É uma forma de quebrar o mistério: saber o que há para esses lados. E há prédios altos na continuação do hotel, grandes armazéns ou empresas de largas portas, algumas escancaradas, mostrando largos pátios interiores onde se movimenta um ou outro trabalhador e se divisa um carro pesado; no fundo, apenas confluência de estradas e avenidas. Nada que mostre a malha urbana.
Após o almoço, já no autocarro, paramos no Mercado de Jade. Ocasião para umas compras, como não podia deixar de ser e oportunidade para gastar os últimos dólares de Hong Kong (também aceites em Macau, onde a moeda própria é a célebre pataca, de cotação inferior). Há entre nós alguns que têm muito jeito para marralhar e correm num repente todas as bancas. Em toda a China, pelo menos neste tipo de comércio, começa-se por pedir alto e oferecer baixo, muito baixo, com um longo marralhanço pelo meio, fingindo-se desprezar a peça que se pretende e os mais avezados a este tipo de mercadejo abandonando mesmo o local, em sinal de desapego ou desinteresse, à espera que o vendedor vá no seu encalço. Não é teatro para mim. Apesar de que acabei por comprar, mas sem marralhar muito (apenas um tímido questionar o preço) um pequeno buda.
Seguimos para o famoso templo Wong Tai Sin, também situado no Kowloon. É um templo apresentado como taoísta, mas onde confluem o taoísmo, o confucionismo e o budismo. Ocupando uma vasta área com seus pavilhões construídos na tradicional arquitectura chinesa de telhados de bordos revirados, dispõe de zonas ajardinadas (O Jardim dos Bons Desejos), ampla escadaria ascendente e descendente, esculturas, um lago e um fontanário de belo efeito cénico, passadiços e uma ponte sobre a água. Rodeada pelos típicos arranha-céus de Hong Kong, a levantarem os seus topos sobre o arvoredo que circunda o templo ou a mostrarem-se na sua inteireza através dos espaços sem árvores, diz-se que nesta área de culto confluem os cinco elementos: metal no Pavilhão de Bronze, madeira no Salão de Arquivo, água no fontanário Yuc Yic, fogo no santuário Yue Heung, onde arde a lanterna de Buda, terra na Parede de Terra.
O templo honra a memória do monge Wong Tai Sin, nascido no século IV e venerado como divindade. O seu retrato está exposto no templo e foi trazido por um padre taoísta do sul da China em 1915, mas, como vimos, o culto estende-se a Buda e ao confucionismo, patente no Salão confucionista.
São muitos os fiéis que acorrem a este local, munindo-se dos tradicionais pauzinhos de incenso, que acendem num queimador colocado à entrada e apagam de seguida, deixando evolar-se o fumo – pauzinhos esses que depositam num dispositivo próprio perto do altar principal. Como são muitos os fiéis e cada qual transporta uma mão cheia de pauzinhos de incenso, o fumo que se evola é muito e o cheiro que se espalha é intenso.
No recinto onde os fiéis se ajoelham em almofadas, há um contínuo batuque produzido pelo barulho de cilindros ou caixas de bambú contendo pequenas pedras numeradas que os crentes agitam, como se estivessem a tanger um instrumento. A dada altura, uma dessas pedrinhas sai da caixa e cai no chão. O número que lhe corresponde é depois decifrado através de um rolo de papel com o mesmo número, que os crentes obtêm dirigindo-se ao sítio onde se encontra um monge encarregado de tal tarefa. O desejo que os fiéis formulam ou em que pensam no momento em que abanam o cilindro é ou não satisfeito consoante a resposta obtida, que se encontra escrita no papel.
Uma das atracções deste recinto de culto é o conjunto de avantajadas esculturas de animais que simbolizam os doze signos do zodíaco chinês. Numerosos chineses e estrangeiros circulam pelo meio dessas figuras, tentando encontrar o animal do seu signo e tirando fotos junto dele. “Como cada signo no horóscopo chinês rege para um ano e são doze: o Ano do Porco, do Tigre, do Dragão, da Serpente, etc… é só saber qual o signo deste ano e andar para trás até encontrar o ano do nascimento e o signo que lhe corresponde”, diz-me um dos companheiros de viagem que já tinha descoberto o seu signo. Mas não será bem assim, porque o ano chinês não coincide com o ano do calendário ocidental, o que torna mais complexas essas contas. Quem for à internet, pode descobrir facilmente o seu signo, escrevendo o ano e a data do nascimento.
Como o dia é longo e a tarde ainda é comprida, vamos de visita ao Jardim de Nan Lian, um recanto paradisíaco com belos arruamentos, esplanadas e pequenos declives, povoado de bonsai, árvores de todos os estilos, algumas delas de madeira que ardeu e que aqui se conservam como relíquias ao alto, mas de efeito singular, pedras de vários formatos, construções de arquitectura chinesa entalhadas no arvoredo, lagos, uma azenha movendo-se num cenário rústico, pontes, canteiros, miríades de nenúfares boiando na água em variegadas cores. Logo à entrada do jardim, o visitante é surpreendido com uma série de pavilhões onde se abrigam magníficas peças em madeira, reproduzindo diversos objectos e construções representando mosteiros em miniatura, mas de complexa factura e cobrindo áreas assinaláveis. Uma visita reconfortante a um lugar não muito frequentado por turistas.
Ainda sobrou tempo para uma surtida ao centro da cidade. Ruas compridíssimas (duas ou três paralelas umas às outras, que nos foram indicadas pelo Ken como nevrálgicas em termos comerciais), cruzadas por outras de través, correndo entre arranha-céus e parecendo, por isso, estreitas. Uma corrida de fim de tarde, vistoriando estabelecimentos e farejando mais qualquer coisa para comprar, pois que outra coisa sabem fazer os turistas nos intervalos dos programas de visitas? Muitos dos nossos companheiros de viagem regressam ao autocarro afobados da corrida às compras, exibindo com alvoroço o objecto que adquiriram ou enaltecendo a pechincha que conseguiram. E com isto são horas de jantar, pelo que vamos em direcção ao restaurante situado também no centro e com uma particularidade que mencionarei. É a nossa última refeição em solo chinês.
Um jantar digno de um fim-de-festa. Foi um belo repasto composto de vários pratos chineses, colocados na placa giratória que existe no centro das mesas chinesas: os convivas vão-se servindo disto e daquilo, fazendo rodar a placa de modo a acederem ao prato desejado. Houve direito a vinho (raro nos sítios por onde passámos), cerveja ou água, para além, claro!, do chã que sempre faz parte de qualquer refeição chinesa. Havia bons bolos para sobremesa, para além de fruta. Café – nicles. Mas a derradeira surpresa estava para vir: um espectáculo de luminotecnia observado de uma grande esplanada que havia na parte de trás do restaurante e se debruçava sobre a água, ali em corrente como um rio, onde de vez em quando um barco passava, talvez transportando turistas. Do outro lado postavam-se os edifícios iluminados, acompanhando o monte. A dada altura, o espectáculo começou com um singular jogo de luzes que se projectavam do outro lado e vinham reflectir-se nas águas num cromatismo variado e de belo efeito, não só cénico, como coreográfico e sinfónico, ao mesmo tempo que trechos de música, criteriosamente seleccionados, acompanhavam em acordes condizentes o bailado luminotécnico. Isto durante uns 20 minutos a meia hora. Uma noite de S. João no Oriente. “Todos os dias isto?”, perguntei. “Sim, todos os dias”, respondeu Ken. Uma festa todas as noites é obra. Porventura, mais com vista nos turistas, do que nos residentes, para os quais isto será a rotina diária. A festa pressupõe a raridade, segundo penso. Não me refiro, evidentemente, à falsa festa permanente das nossas sociedades de consumo, dos hipermercados, dos shopping centers, etc. - que essa é a festa da sociedade do espectáculo [da mercadoria], de Guy Debord.
Bem, mas assim entrando em filosofices, já vamos a caminho do aeroporto, onde é preciso estar umas horas antes do embarque para as muito demoradas e penosas formalidades de controle. Ken ajudou-nos a ultrapassar algumas das vicissitudes surgidas no decurso dessas operações. A mim, sobretudo, que, para além das malas – a mala grande, de rodinhas, uma mochila grande e outra pequena - tinha o empecilho do edredon, causando desconfianças. Tive que abrir o saco onde vinha metido, mas passou, felizmente. Agora, ia ter uma longa noite para pensar na viagem e ordenar ideias sobre o país que me preparava para deixar – um dos países que ardentemente aspirava conhecer desde há muitos anos. Mas, primeiro, vou à procura de um café verdadeiro num desses estabelecimentos do aeroporto. E, sim, encontro um sítio onde posso tomar um café expresso e, por cima do café, tenho o desejo dum cigarro, talvez também pela enorme descompressão que sinto por ver-me livre do stress do controle (actualmente só fumo de tempos a tempos). Andando a pé metros e metros, acabo por encontrar um recinto fechado com aspiradores de fumo onde se pode fumar, mas não tenho isqueiro para acender o cigarro, pois tive que o deitar fora para poder passar no controle. Peço lume a um dos fumadores, que deve ter arranjado isqueiro algures dentro do aeroporto, ou então teve artes de o subtrair à vigilância dos funcionários.
Às primeiras horas da madrugada embarcámos na aeronave da Emirates com destino a Dubai. Aqui, apanharemos outro avião com destino a Lisboa. Longas horas, grande parte delas de noite, as cortinas opacas das minúsculas janelas totalmente descidas, aumentando a sensação de imobilidade, nave suspensa no ar, cercada de escuridão, os motores ronronando monotonamente. A mim, que viajo solitariamente, calha-me o lugar da janela, como quase sempre tem sucedido, obrigando-me a ter de pedir licença aos dois viajantes que ocupam os lugares à minha esquerda, se quiser ir à casa de banho ou libertar as pernas da prisão onde se encontram. Mas nada de azar. Trata-se de um casal que me tem acompanhado durante a viagem e, durante o voo, que durará 8 horas e 20 minutos, segundo as previsões, há intervalos para as refeições: uma maior (ceia) e outra mais pequena, equivalente ao pequeno-almoço. Durante elas, as pessoas sempre palram e mexem-se de um lado para o outro. Entre Dubai e Lisboa, outras 8 horas e tal, mas já com sol entrando pelas vigias, haverá mais duas refeições; outro pequeno-almoço e almoço. A chegada está prevista para as 12 horas. Com as formalidades e recolha de malas, só pelas 13 horas estaremos a sair do aeroporto para tomarmos (os viajantes do Norte) assento no autocarro que nos levará ao Porto. Mais 4 horas de viagem.
Muito tempo para dormitar e reflectir sobre várias coisas, principalmente sobre a excursão à China. Uma viva impressão que me ficou foi o desenvolvimento económico. Trata-se, sem dúvida, de um país altamente desenvolvido, ao nível dos países capitalistas mais avançados. Pode-se dizer que, se há benefício que a revolução trouxesse para tão vasto território foi no tocante ao desenvolvimento das forças produtivas, que sofreram um incremento notável num país atrasado da Ásia, onde dominava o campesinato e mesmo o feudalismo. Tal incremento, a meu ver, deve-se sobretudo ao regime político, que é ditatorial, regime de ditadura de um partido – o Partido Comunista -, que não é a mesma coisa que a célebre ditadura do proletariado, e não sei se será mesmo ditadura do Partido propriamente dito, ou apenas de uma clique – a sua fracção dirigente.
Foi essa ditadura, a meu ver, que permitiu a gigantesca acumulação de capital e o desenvolvimento acelerado das forças produtivas durante alguns decénios em que a total ausência de direitos fundamentais, como a liberdade de expressão, a liberdade de imprensa e de comunicação social, os direitos de reunião e manifestação, o direito de livre sindicalismo, o direito de greve, etc. e ainda um sistema sufocante de controle no trabalho e em outras esferas da sociedade, principalmente durante o maoísmo, aplanaram o caminho para esse desenvolvimento, eliminando todos os obstáculos que se lhe poderiam opor. Tudo em nome da diabolização da democracia burguesa e das virtudes inquestionáveis da democracia popular, ou do Estado Socialista, ou como lhe queiram chamar.
Do ponto de vista económico, é, pois, visível a abertura da China ao mundo exterior e ao entrosamento do país na trama das relações económicas mundiais, às leis do mercado, à concorrência do capital estrangeiro, permitindo a entrada das grandes empresas que dominam o mercado mundial, cuja presença é palpável em todo o território, abertura, enfim, às seduções múltiplas do consumo (dos centros comerciais, à comida de fast food, à moda, etc...). Nada diferencia as grandes cidades chinesas das metrópoles ocidentais, a começar pela intensidade do tráfego e pelos incómodos correspondentes. Carros e carros particulares, em competição com os transportes públicos, dando azo a engarrafamentos de trânsito e grandes delongas na chegada aos locais. Carros de marcas sonantes no Ocidente, como Mercedes, Volkswagen, BMW, Porshe, a par de marcas dos países asiáticos, como Mitshubichi, Toyota, Nissan, Honda, Kia, etc. Grande parte dessas marcas têm sede na própria China, sendo os carros lá fabricados e montados.
A China abriu largos sectores da economia à iniciativa privada, continuando, porém, o Estado a controlar grandes empresas estratégicas e o sector financeiro, segundo deduzi das respostas que os guias, sobretudo Zhao Naipu, o guia de Pequim (para mim o de maior arcaboiço), deram às questões que lhes foram formuladas por alguns. É, assim, possível encontrar gente muito rica na China, donos de meios de produção consideráveis. Por exemplo, donos de empresas de transporte, como as que fazem excursões turísticas de barco em Xangai e Guilin, se estão correctas as informações fornecidas pelos guias locais, a quem fiz a pergunta. Aliás, estes guias faziam alusões frequentes a compatriotas com muito dinheiro.
Na cidade de Xian, passámos numa avenida com vivendas e a senhora que nos acompanhava fez referência aos donos delas, dizendo que eram chineses com posses, encarecendo o seu estatuto social. Os chineses podem ser proprietários de imóveis, mas, de um modo geral vivem em casas mais modestas, possuídas no regime de propriedade horizontal. O terreno onde as casas estão implantadas pertence ao Estado, que cede o direito de superfície por 70 anos, se bem entendi, como em qualquer país ocidental. Os proprietários podem vender as casas e deixá-las em herança aos familiares que gozam do direito de sucessão. Porém, com a condição de o direito transmitido ficar sujeito ao limite dos tais 70 anos, o que não será muito distinto do que se passa entre nós. Setenta anos será presumivlmente o tempo de duração da própria construção.
Pelo exposto, será fácil de concluir que a liberalização económica, iniciada no tempo de Deng Xiaoping, trouxe uma certa liberalização de costumes e mesmo algumas liberdades, como a liberdade religiosa e a liberdade de deslocação. Jung Chang, a autora de Cisnes Selvagens que já citei, a viver em Londres, onde se doutorou e ficou a leccionar no ensino superior, diz que, entre 1983 e 1989, regressou à China todos os anos para ver a mãe e que, na primavera de 1989, viajou por todo o território para fazer pesquisa para aquele seu livro. Sem entraves, num país que ela tinha conhecido peado de movimentos e onde os pais, militantes comunistas de certa envergadura, não tinham escapado à repressão maoísta, mais tarde tendo sido reabilitados, o pai já falecido.
Ela reconhece, no final dessa obra, que muita coisa mudou na China nos anos 80 ao nível das reformas económicas, com a abertura ao comércio e ao investimento estrangeiros e à autorização de um sector privado, ao nível das comunicações com o exterior, nos contactos interpessoais, na facilidade de deslocação e mobilidade, nos noticiários da TV, embora filtrados e, consequentemente, numa maior liberdade de expressão e de informação e mesmo de crítica, reconhecendo, todavia, que o caso de Tiananmen, parecia fazer regressar o medo que uma grande parte dos cidadãos incautamente tinha esquecido.
Os chineses podem inclusive emigrar para tentarem obter outros meios de fortuna e, segundo o que apurei, recebem mesmo auxílio material do Estado para o efeito, se necessitarem. A condição é a de, quando regressarem ao país, darem ao Estado uma contrapartida, não sei em que termos.
Outra das conclusões que é fácil de extrair do exposto até aqui é que a referida liberalização reforçou os traços capitalistas do regime, criando uma classe capitalista de vulto, como se tem visto entre nós com a história dos vistos gold, em que chineses particulares são dos maiores investidores no nosso país. Há, assim, uma estrutura de classes na China, em que uma burguesia construída à sombra do Estado desempenha um papel fundamental na dinamização económica, cabendo, no entanto, ao Estado a detenção de importantes e estratégicos meios de produção e a primordial função de controle, direcção e estímulo de todo o sistema económico, sob uma férrea disciplina autoritária.
Isto constituirá, então, o capitalismo de Estado chinês? Um capitalismo que, sob a ditadura do Partido Comunista, visa o desenvolvimento mais rápido das forças produtivas como via para atingir o almejado socialismo? E beneficiando, entretanto, as elites dirigentes do Partido, constituídas como uma classe burguesa dominante? Que seria dissolvida como? Por meio de outra revolução?
Eis questões que fui formulando insistentemente durante esta viagem. Em Pequim, ganhei confiança com Zhao Naipu e confrontei-o com uma questão fundamental tratada por Lenine em O Estado e a Revolução. O Estado é sempre um instrumento especial de repressão de uma classe sobre outra. Se o socialismo, na sua fase superior ou comunismo, pressupõe o desaparecimento das classes sociais, mesmo do proletariado, erigido transitoriamente em classe dominante, como é possível falar em Estados Comunistas? Não há Estados Comunistas.
Zhao Naipu não se desmanchou, nem perdeu a sua fleuma habitual. Respondeu-me ele: “Sim. Não há Estados Comunistas. O Comunismo só é possível a nível mundial, quando houver condições para isso.” Ou seja, esta teoria corresponderá ao cerne da doutrina marxista clássica, segundo a qual o comunismo só é possível numa perspectiva internacionalista, em que os países mais desenvolvidos fazem a revolução, arrastando para ela os países dependentes.
Penso, então, nestas incomensuráveis horas de voo: Quererão os dirigentes chineses levar a China a ser a primeira potência mundial e ir ganhando preponderância no aparelho produtivo global pelo assenhoreamento de importantes sectores de produção? Há uma frase de Deng Xiaoping, o principal obreiro da abertura da China e também o chefe de Estado que ordenou o massacre de Tiananmen, que me vem bailando no espírito: “Escondei a vossa força, ganhai tempo, não desanimeis”.

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