20 outubro 2020
O discurso do Presidente
(demonstrativo da coragem que um líder invulgar ostenta ao mundo
inteiro em tempo de pandemia)
Eis, eis! Aqui estou
acenando-vos com a mão e retirando da cara, com energia, este trapo
que parece uma mordaça com que saí do hospital, disposto a retomar
o lugar de great president do nosso país very great.
Antes de mais, thank you very much
pelo amor que tendes demonstrado para com a minha pessoa. Uma
mensagem patriótica vos quero transmitir nesta hora do recomeço.
Não tenham medo da Covid 19. Afinal, não presta para nada,
asseguro-vo-lo. É muito fácil debelar a doença. Acabo de ter a
experiência disso. Sou o vosso presidente e, por isso mesmo, quis
desafiar o vírus e enfrentá-lo sem medo, como um valente que não
teme arrostar a adversidade, seja que adversidade for. Vocês sabem
muito bem que sou um homem teso, no verdadeiro sentido da palavra, e
que não sou como os maricas desses democratas que andam mascarados.
Comigo não há máscaras. Apanhei o vírus com a coragem e a
frontalidade que vocês conhecem. Posso mesmo dizer: cacei o vírus
e vi a realidade de que é feito. Não é nada do que dizem para aí.
Ele é mesmo chinês, um fracalhão. Agora posso dizer com mais
fundamento ao presidente Xi que o império dele não vale nada e que
nós não vamos deixar que esse falso império nos ultrapasse.
Encarei o vírus e eis-me aqui
à vossa frente, são como um pêro, como estais a ver; sinto-me
melhor do que nunca, depois de o ter derrotado em tempo recorde
(comigo, não há cá forma de engonhar: it’s make or breake.
Vocês conhecem-me). Eu andei pelas ruas e pelo meio das multidões
sem medo desse vírus, sempre de cara destapada, como deve andar um
homem que se preza, e a verdade é que o apanhei e dei com ele em
pantanas. Fi-lo para vos demonstrar, como vosso presidente, que é
preciso não ter medo.
É certo que já sucumbiram ao
vírus mais de duzentos mil dos nossos compatriotas, mas não receiem
pelas vossas vidas. Esses compatriotas eram, na sua maioria,
democratas timoratos (as informações em contrário são fake
news) e não tinham o segredo da resistência ao vírus. Foi
preciso que eu me expusesse insistentemente ao risco de o apanhar
para que esse segredo fosse descoberto. Estou rodeado dos melhores
médicos, porque, sendo o vosso presidente, tenho naturalmente o
direito de tê-los e é preciso que a minha saúde seja bem cuidada
para que possa continuar a ser o vosso presidente, embora correndo
riscos com toda a generosidade e valentia. Foi graças à minha
equipa de brilhantes médicos e à minha serenidade face ao vírus,
que estoicamente recebi no meu corpo quando ele resolveu atacar-me,
que se descobriu a arma para o fulminar. Claro que eu tive que
voluntariar-me (fi-lo pela nossa grande Nação e pelos meus queridos
compatriotas) para experimentar a mezinha apta a liquidá-lo. E agora
estou aqui rijo como sempre (porventura até mais fortalecido pela
crise que atravessei), estou aqui a dizer-vos que aprendi com a minha
experiência como se comporta o vírus que Xi nos mandou para cá e a
maneira de o liquidar. É muito fácil anulá-lo. Não se acreditem
nesses gajos da Ciência que andam para aí a dizer que ele é muito
perigoso. Olhem para mim. Estou sem máscara e imunizado de vez. A
primeira dama também lá está na Mansão Presidencial, bem de
saúde, mofando do vírus. Eu vou revelar-vos o segredo de o
derrotar. É muito fácil. Coisa de um coktail e mais umas
beberagens. Já sei que os democratas preferem andar mascarados,
porque eles são maricas com medo do vírus, mas os meus apoiantes
são homens e mulheres que vão em frente como eu, de cara destapada.
Aprecio esses homens e sobretudo essas mulheres, que são grandes
entusiastas e fãs da minha pessoa.
Thank God o vírus
atacou-me perto das eleições, dando-me a oportunidade de mostrar ao
nosso povo a coragem que me caracteriza e de descobrir a fórmula
para o debelar. Ele vai desaparecer, vai… Vamos ter doravante um
período dourado. E o candidato democrata que venha enfrentar-me sem
máscara. Mando-lhe um bafo, que o deito por terra.
(Transcrito com a fidelidade
que sempre tem demonstrado este vosso criado)
Jonathan Swift (1665-1745)
Publicado por Artur Costa (
23:05)
07 agosto 2020
China VIII
De
regresso a Hong Kong, reatamos a ligação com Ken, o guia que
deixámos na partida para Macau. Vamos a um passeio na baía de Hong
Kong e ao porto de Aberdeen, uma vila piscatória. De barco,
percorremos a baía, por entre juncos, yates, traineiras e as
célebres casas flutuantes, onde vivem muitas famílias com seus
animais, roupas estendidas a secar ao sol, antenas de televisão a
ligarem-nas ao mundo exterior.
De
novo em terra, vamos em demanda do pico Vitória. No início da
subida que vai caracolando em curva e contracurva até ao cimo,
paramos numa praia magnífica, uma estância balnear no oceano
Pacífico, bem servida de adequadas instalações. Praia deserta
neste quase fim-de-tarde, mas banhada em doce tranquilidade, sol a
esmorecer por cima da água em repouso, uma ilhota erguendo-se no mar
em majestosa melancolia, colinas diluindo-se ao fundo em esfumada
distância. Apetecia dar um mergulho e umas braçadas valentes, mas
não é ocasião de praia. Há quem se contente em ir até à borda
de água para molhar os pés, atravessando o vasto areal.
Seguimos
em frente, na ascensão ao Victoria
Peak,
550 m. de altitude. É um local de muito turismo. Do alto, obtém-se
uma vista soberba sobre Hong Kong, o casario com seus arranha-céus
avultando, a baía, as montanhas que rodeiam a cidade. É ao
escurecer, as luzes começam a acender-se. Restaurantes e dois
centros comerciais povoam o alto. Junto a um dos centros comerciais
tem paragem final o funicular. Porém, não é aqui que tem lugar o
nosso jantar. Este ocorre num restaurante na baixa da cidade, para
onde vamos no autocarro, sempre encaminhados pelo Ken. Por sinal, um
jantar muito agradável, com muitos pratos, como é típico na China,
dos melhores que temos saboreado. Comida cantonesa.
Instalados
no hotel, saio para a rua antes de dormir. Não há por aqui grandes
coisas para observar, nem grandes vistas. Como já referi, o hotel
fica num alto, que é ocupado praticamente pelo complexo que inclui o
centro comercial Metropolis. Ao fundo, vêem-se estradas alcatroadas
cruzando-se em vários níveis. Porém, saio para contemplar, pelo
menos, a grande fachada do hotel, que se desenvolve em harmónio, o
grande átrio buliçoso, onde os funcionários do câmbio trocam
divisas estrangeiras pelos dólares de Hong Kong. Fora, há um espaço
ajardinado bastante agradável, iluminado durante a noite, com
pequenos lagos e chafarizes e bancos para as pessoas se sentarem. Há
uma escadaria para descer a colina e que, por baixo de uma das
estradas acima referidas, conduz os peões ao outro lado, onde parece
haver uma estação de Metro. Este local onde está situado o hotel
não olha para a cidade, o casario, o movimento das pessoas; em
contrapartida, está muito perto das vias de acesso e saída da
cidade, nomeadamente da estrada que conduz ao grande túnel
subaquático, no termo do qual está o cais onde se apanham os barcos
para Macau, como já referido.
Eis
um novo dia cheio de sol – um sol companheirão que não nos tem
largado nestes dias de viagem. Ele entra pelo quarto em jorros, mal
corrida a cortina, proclamando estridentemente o seu carácter
festivo.
Esta
é uma manhã livre em que cada qual pode dispor do tempo como lhe
aprouver. Tomado o pequeno-almoço nas calmas na sala de aspecto muio
íntimo com mesinhas de duas ou quatro pessoas devidamente atoalhadas
e onde se detectam hóspedes de várias proveniências, atestando o
ar cosmopolita do hotel, pondero entre sair para o centro da cidade
num dos pequenos autocarros a isso destinados, ou ficar por aqui na
sorna. Hoje é o último dia útil de viagem; os dias gastos nas
viagens de ida e volta não os incluo no tempo útil de fruição.
Estes são consumidos a andar de avião em que se vai atarracado em
bancos sem espaço para cruzar as pernas, numa total ausência de
paisagem, fingindo dormir quando o sono aperta, ansiando pelo dia ou
hora de chegada.
Opto
por ficar no hotel. Por volta do meio-dia, há que pôr as malas à
porta do quarto, a fim de que os funcionários a isso destinados as
carreguem em carrinhos próprios e as levem para o autocarro que nos
há-de transportar durante todo o longo dia que temos pela frente,
até à hora de avançarmos para o aeroporto. Se fosse para o centro
da cidade, teria que sujeitar-me às horas dos autocarros que levam e
trazem os hóspedes, embora com frequência de 20 em 20 minutos e,
preocupado com a hora das malas, pouco disfrutaria da cidade. Não
seria assim, se me tivesse levantado muito cedo. Fico, pois, e vou
lendo, de meu vagar, os guias que trouxe comigo, escritos em inglês.
Antes, porém, vou dar um curto passeio a pé, descendo a rampa que
vai do hotel a uma das estradas asfaltadas, lá em baixo. É uma
forma de quebrar o mistério: saber o que há para esses lados. E há
prédios altos na continuação do hotel, grandes armazéns ou
empresas de largas portas, algumas escancaradas, mostrando largos
pátios interiores onde se movimenta um ou outro trabalhador e se
divisa um carro pesado; no fundo, apenas confluência de estradas e
avenidas. Nada que mostre a malha urbana.
Após
o almoço, já no autocarro, paramos no Mercado de Jade. Ocasião
para umas compras, como não podia deixar de ser e oportunidade para
gastar os últimos dólares de Hong Kong (também aceites em Macau,
onde a moeda própria é a célebre pataca,
de cotação inferior). Há entre nós alguns que têm muito jeito
para marralhar e correm num repente todas as bancas. Em toda a China,
pelo menos neste tipo de comércio, começa-se por pedir alto e
oferecer baixo, muito baixo, com um longo marralhanço pelo meio,
fingindo-se desprezar a peça que se pretende e os mais avezados a
este tipo de mercadejo abandonando mesmo o local, em sinal de
desapego ou desinteresse, à espera que o vendedor vá no seu
encalço. Não é teatro para mim. Apesar de que acabei por comprar,
mas sem marralhar muito (apenas um tímido questionar o preço) um
pequeno buda.
Seguimos
para o famoso templo Wong
Tai Sin,
também situado no Kowloon. É um templo apresentado como taoísta,
mas onde confluem o taoísmo, o confucionismo e o budismo. Ocupando
uma vasta área com seus pavilhões construídos na tradicional
arquitectura chinesa de telhados de bordos revirados, dispõe de
zonas ajardinadas (O Jardim dos Bons Desejos), ampla escadaria
ascendente e descendente, esculturas, um lago e um fontanário de
belo efeito cénico, passadiços e uma ponte sobre a água. Rodeada
pelos típicos arranha-céus de Hong Kong, a levantarem os seus topos
sobre o arvoredo que circunda o templo ou a mostrarem-se na sua
inteireza através dos espaços sem árvores, diz-se que nesta área
de culto confluem os cinco elementos: metal no Pavilhão de Bronze,
madeira no Salão de Arquivo, água no fontanário Yuc Yic, fogo no
santuário Yue Heung, onde arde a lanterna de Buda, terra na Parede
de Terra.
O
templo honra a memória do monge Wong Tai Sin, nascido no século IV
e venerado como divindade. O seu retrato está exposto no templo e
foi trazido por um padre taoísta do sul da China em 1915, mas, como
vimos, o culto estende-se a Buda e ao confucionismo, patente no Salão
confucionista.
São
muitos os fiéis que acorrem a este local, munindo-se dos
tradicionais pauzinhos de incenso, que acendem num queimador colocado
à entrada e apagam de seguida, deixando evolar-se o fumo –
pauzinhos esses que depositam num dispositivo próprio perto do altar
principal. Como são muitos os fiéis e cada qual transporta uma mão
cheia de pauzinhos de incenso, o fumo que se evola é muito e o
cheiro que se espalha é intenso.
No
recinto onde os fiéis se ajoelham em almofadas, há um contínuo
batuque produzido pelo barulho de cilindros ou caixas de bambú
contendo pequenas pedras numeradas que os crentes agitam, como se
estivessem a tanger um instrumento. A dada altura, uma dessas
pedrinhas sai da caixa e cai no chão. O número que lhe corresponde
é depois decifrado através de um rolo de papel com o mesmo número,
que os crentes obtêm dirigindo-se ao sítio onde se encontra um
monge encarregado de tal tarefa. O desejo que os fiéis formulam ou
em que pensam no momento em que abanam o cilindro é ou não
satisfeito consoante a resposta obtida, que se encontra escrita no
papel.
Uma
das atracções deste recinto de culto é o conjunto de avantajadas
esculturas de animais que simbolizam os doze signos do zodíaco
chinês. Numerosos chineses e estrangeiros circulam pelo meio dessas
figuras, tentando encontrar o animal do seu signo e tirando fotos
junto dele. “Como cada signo no horóscopo chinês rege para um
ano e são doze: o Ano do Porco, do Tigre, do Dragão, da Serpente,
etc… é só saber qual o signo deste ano e andar para trás até
encontrar o ano do nascimento e o signo que lhe corresponde”,
diz-me um dos companheiros de viagem que já tinha descoberto o seu
signo. Mas não será bem assim, porque o ano chinês não coincide
com o ano do calendário ocidental, o que torna mais complexas essas
contas. Quem for à internet,
pode descobrir facilmente o seu signo, escrevendo o ano e a data do
nascimento.
Como
o dia é longo e a tarde ainda é comprida, vamos de visita ao Jardim
de Nan Lian,
um recanto paradisíaco com belos arruamentos, esplanadas e pequenos
declives, povoado de bonsai,
árvores de todos os estilos, algumas delas de madeira que ardeu e
que aqui se conservam como relíquias ao alto, mas de efeito
singular, pedras de vários formatos, construções de arquitectura
chinesa entalhadas no arvoredo, lagos, uma azenha movendo-se num
cenário rústico, pontes, canteiros, miríades de nenúfares boiando
na água em variegadas cores. Logo à entrada do jardim, o visitante
é surpreendido com uma série de pavilhões onde se abrigam
magníficas peças em madeira, reproduzindo diversos objectos e
construções representando mosteiros em miniatura, mas de complexa
factura e cobrindo áreas assinaláveis. Uma visita reconfortante a
um lugar não muito frequentado por turistas.
Ainda
sobrou tempo para uma surtida ao centro da cidade. Ruas
compridíssimas (duas ou três paralelas umas às outras, que nos
foram indicadas pelo Ken como nevrálgicas em termos comerciais),
cruzadas por outras de través, correndo entre arranha-céus e
parecendo, por isso, estreitas. Uma corrida de fim de tarde,
vistoriando estabelecimentos e farejando mais qualquer coisa para
comprar, pois que outra coisa sabem fazer os turistas nos intervalos
dos programas de visitas? Muitos dos nossos companheiros de viagem
regressam ao autocarro afobados da corrida às compras, exibindo com
alvoroço o objecto que adquiriram ou enaltecendo a pechincha que
conseguiram. E com isto são horas de jantar, pelo que vamos em
direcção ao restaurante situado também no centro e com uma
particularidade que mencionarei. É a nossa última refeição em
solo chinês.
Um
jantar digno de um fim-de-festa. Foi um belo repasto composto de
vários pratos chineses, colocados na placa giratória que existe no
centro das mesas chinesas: os convivas vão-se servindo disto e
daquilo, fazendo rodar a placa de modo a acederem ao prato desejado.
Houve direito a vinho (raro nos sítios por onde passámos), cerveja
ou água, para além, claro!, do chã que sempre faz parte de
qualquer refeição chinesa. Havia bons bolos para sobremesa, para
além de fruta. Café – nicles. Mas a derradeira surpresa estava
para vir: um espectáculo de luminotecnia observado de uma grande
esplanada que havia na parte de trás do restaurante e se debruçava
sobre a água, ali em corrente como um rio, onde de vez em quando um
barco passava, talvez transportando turistas. Do outro lado
postavam-se os edifícios iluminados, acompanhando o monte. A dada
altura, o espectáculo começou com um singular jogo de luzes que se
projectavam do outro lado e vinham reflectir-se nas águas num
cromatismo variado e de belo efeito, não só cénico, como
coreográfico e sinfónico, ao mesmo tempo que trechos de música,
criteriosamente seleccionados, acompanhavam em acordes condizentes o
bailado luminotécnico. Isto durante uns 20 minutos a meia hora. Uma
noite de S. João no Oriente. “Todos os dias isto?”, perguntei.
“Sim, todos os dias”, respondeu Ken. Uma festa todas as noites é
obra. Porventura, mais com vista nos turistas, do que nos residentes,
para os quais isto será a rotina diária. A festa pressupõe a
raridade, segundo penso. Não me refiro, evidentemente, à falsa
festa permanente das nossas sociedades de consumo, dos hipermercados,
dos shopping
centers, etc.
- que essa é a festa da sociedade
do espectáculo
[da mercadoria], de Guy Debord.
Bem,
mas assim entrando em filosofices, já vamos a caminho do aeroporto,
onde é preciso estar umas horas antes do embarque para as muito
demoradas e penosas formalidades de controle. Ken ajudou-nos a
ultrapassar algumas das vicissitudes surgidas no decurso dessas
operações. A mim, sobretudo, que, para além das malas – a mala
grande, de rodinhas, uma mochila grande e outra pequena - tinha o
empecilho do edredon, causando desconfianças. Tive que abrir o saco
onde vinha metido, mas passou, felizmente. Agora, ia ter uma longa
noite para pensar na viagem e ordenar ideias sobre o país que me
preparava para deixar – um dos países que ardentemente aspirava
conhecer desde há muitos anos. Mas, primeiro, vou à procura de um
café verdadeiro num desses estabelecimentos do aeroporto. E, sim,
encontro um sítio onde posso tomar um café expresso e, por cima do
café, tenho o desejo dum cigarro, talvez também pela enorme
descompressão que sinto por ver-me livre do stress
do controle (actualmente só fumo de tempos a tempos). Andando a pé
metros e metros, acabo por encontrar um recinto fechado com
aspiradores de fumo onde se pode fumar, mas não tenho isqueiro para
acender o cigarro, pois tive que o deitar fora para poder passar no
controle. Peço lume a um dos fumadores, que deve ter arranjado
isqueiro algures dentro do aeroporto, ou então teve artes de o
subtrair à vigilância dos funcionários.
Às
primeiras horas da madrugada embarcámos na aeronave da Emirates
com
destino a Dubai. Aqui, apanharemos outro avião com destino a Lisboa.
Longas horas, grande parte delas de noite, as cortinas opacas das
minúsculas janelas totalmente descidas, aumentando a sensação de
imobilidade, nave suspensa no ar, cercada de escuridão, os motores
ronronando monotonamente. A mim, que viajo solitariamente, calha-me o
lugar da janela, como quase sempre tem sucedido, obrigando-me a ter
de pedir licença aos dois viajantes que ocupam os lugares à minha
esquerda, se quiser ir à casa de banho ou libertar as pernas da
prisão onde se encontram. Mas nada de azar. Trata-se de um casal que
me tem acompanhado durante a viagem e, durante o voo, que durará 8
horas e 20 minutos, segundo as previsões, há intervalos para as
refeições: uma maior (ceia) e outra mais pequena, equivalente ao
pequeno-almoço. Durante elas, as pessoas sempre palram e mexem-se de
um lado para o outro. Entre Dubai e Lisboa, outras 8 horas e tal, mas
já com sol entrando pelas vigias, haverá mais duas refeições;
outro pequeno-almoço e almoço. A chegada está prevista para as 12
horas. Com as formalidades e recolha de malas, só pelas 13 horas
estaremos a sair do aeroporto para tomarmos (os viajantes do Norte)
assento no autocarro que nos levará ao Porto. Mais 4 horas de
viagem.
Muito
tempo para dormitar e reflectir sobre várias coisas, principalmente
sobre a excursão à China. Uma viva impressão que me ficou foi o
desenvolvimento económico. Trata-se, sem dúvida, de um país
altamente desenvolvido, ao nível dos países capitalistas mais
avançados. Pode-se dizer que, se há benefício que a revolução
trouxesse para tão vasto território foi no tocante ao
desenvolvimento das forças produtivas, que sofreram um incremento
notável num país atrasado da Ásia, onde dominava o campesinato e
mesmo o feudalismo. Tal incremento, a meu ver, deve-se sobretudo ao
regime político, que é ditatorial, regime de ditadura de um partido
– o Partido Comunista -, que não é a mesma coisa que a célebre
ditadura
do proletariado,
e não sei se será mesmo ditadura do Partido propriamente dito,
ou apenas de uma clique – a sua fracção dirigente.
Foi
essa ditadura, a meu ver, que permitiu a gigantesca acumulação de
capital e o desenvolvimento acelerado das forças produtivas durante
alguns decénios em que a total ausência de direitos fundamentais,
como a liberdade de expressão, a liberdade de imprensa e de
comunicação social, os direitos de reunião e manifestação, o
direito de livre sindicalismo, o direito de greve, etc. e ainda um
sistema sufocante de controle no trabalho e em outras esferas da
sociedade, principalmente durante o maoísmo, aplanaram o caminho
para esse desenvolvimento, eliminando todos os obstáculos que se lhe
poderiam opor. Tudo em nome da diabolização da democracia burguesa
e das virtudes inquestionáveis da democracia popular, ou do Estado
Socialista, ou como lhe queiram chamar.
Do
ponto de vista económico, é, pois, visível a abertura da China ao
mundo exterior e ao entrosamento do país na trama das relações
económicas mundiais, às leis do mercado, à concorrência do
capital estrangeiro, permitindo a entrada das grandes empresas que
dominam o mercado mundial, cuja presença é palpável em todo o
território, abertura, enfim, às seduções múltiplas do consumo
(dos centros comerciais, à comida de fast
food,
à moda, etc...). Nada diferencia as grandes cidades chinesas das
metrópoles ocidentais, a começar pela intensidade do tráfego e
pelos incómodos correspondentes. Carros e carros particulares, em
competição com os transportes públicos, dando azo a
engarrafamentos de trânsito e grandes delongas na chegada aos
locais. Carros de marcas sonantes no Ocidente, como Mercedes,
Volkswagen, BMW, Porshe, a par de marcas dos países asiáticos, como
Mitshubichi, Toyota, Nissan, Honda, Kia, etc. Grande parte dessas
marcas têm sede na própria China, sendo os carros lá fabricados e
montados.
A
China abriu largos sectores da economia à iniciativa privada,
continuando, porém, o Estado a controlar grandes empresas
estratégicas e o sector financeiro, segundo deduzi das respostas que
os guias, sobretudo Zhao Naipu, o guia de Pequim (para mim o de maior
arcaboiço), deram às questões que lhes foram formuladas por
alguns. É, assim, possível encontrar gente muito rica na China,
donos de meios de produção consideráveis. Por exemplo, donos de
empresas de transporte, como as que fazem excursões turísticas de
barco em Xangai e Guilin, se estão correctas as informações
fornecidas pelos guias locais, a quem fiz a pergunta. Aliás, estes
guias faziam alusões frequentes a compatriotas com muito dinheiro.
Na
cidade de Xian, passámos numa avenida com vivendas e a senhora que
nos acompanhava fez referência aos donos delas, dizendo que eram
chineses com posses, encarecendo o seu estatuto social. Os chineses
podem ser proprietários de imóveis, mas, de um modo geral vivem em
casas mais modestas, possuídas no regime de propriedade horizontal.
O terreno onde as casas estão implantadas pertence ao Estado, que
cede o direito de superfície por 70 anos, se bem entendi, como em
qualquer país ocidental. Os proprietários podem vender as casas e
deixá-las em herança aos familiares que gozam do direito de
sucessão. Porém, com a condição de o direito transmitido ficar
sujeito ao limite dos tais 70 anos, o que não será muito distinto
do que se passa entre nós. Setenta anos será presumivlmente o tempo
de duração da própria construção.
Pelo
exposto, será fácil de concluir que a liberalização económica,
iniciada no tempo de Deng Xiaoping, trouxe uma certa liberalização
de costumes e mesmo algumas liberdades, como a liberdade religiosa e
a liberdade de deslocação. Jung Chang, a autora de Cisnes
Selvagens que
já citei, a viver em Londres, onde se doutorou e ficou a leccionar
no ensino superior, diz que, entre 1983 e 1989, regressou à China
todos os anos para ver a mãe e que, na primavera de 1989, viajou
por todo o território para fazer pesquisa para aquele seu livro. Sem
entraves, num país que ela tinha conhecido peado de movimentos e
onde os pais, militantes comunistas de certa envergadura, não tinham
escapado à repressão maoísta, mais tarde tendo sido reabilitados,
o pai já falecido.
Ela
reconhece, no final dessa obra, que muita coisa mudou na China nos
anos 80 ao nível das reformas económicas, com a abertura ao
comércio e ao investimento estrangeiros e à autorização de um
sector privado, ao nível das comunicações com o exterior, nos
contactos interpessoais, na facilidade de deslocação e mobilidade,
nos noticiários da TV, embora filtrados e, consequentemente, numa
maior liberdade de expressão e de informação e mesmo de crítica,
reconhecendo, todavia, que o caso de Tiananmen, parecia fazer
regressar o medo que uma grande parte dos cidadãos incautamente
tinha esquecido.
Os
chineses podem inclusive emigrar para tentarem obter outros meios de
fortuna e, segundo o que apurei, recebem mesmo auxílio material do
Estado para o efeito, se necessitarem. A condição é a de, quando
regressarem ao país, darem ao Estado uma contrapartida, não sei em
que termos.
Outra
das conclusões que é fácil de extrair do exposto até aqui é que
a referida liberalização reforçou os traços capitalistas do
regime, criando uma classe capitalista de vulto, como se tem visto
entre nós com a história dos vistos
gold,
em que chineses particulares são dos maiores investidores no nosso
país. Há, assim, uma estrutura de classes na China, em que uma
burguesia construída à sombra do Estado desempenha um papel
fundamental na dinamização económica, cabendo, no entanto, ao
Estado a detenção de importantes e estratégicos meios de produção
e a primordial função de controle, direcção e estímulo de todo o
sistema económico, sob uma férrea disciplina autoritária.
Isto
constituirá, então, o capitalismo de Estado chinês? Um capitalismo
que, sob a ditadura do Partido Comunista, visa o desenvolvimento mais
rápido das forças produtivas como via para atingir o almejado
socialismo? E beneficiando, entretanto, as elites dirigentes do
Partido, constituídas como uma classe burguesa dominante? Que seria
dissolvida como? Por meio de outra revolução?
Eis
questões que fui formulando insistentemente durante esta viagem. Em
Pequim, ganhei confiança com Zhao Naipu e confrontei-o com uma
questão fundamental tratada por Lenine em O
Estado e a Revolução.
O Estado é sempre um instrumento especial de repressão de uma
classe sobre outra. Se o socialismo, na sua fase superior ou
comunismo, pressupõe o desaparecimento das classes sociais, mesmo do
proletariado, erigido transitoriamente em classe dominante, como é
possível falar em Estados Comunistas? Não há Estados Comunistas.
Zhao
Naipu não se desmanchou, nem perdeu a sua fleuma habitual.
Respondeu-me ele: “Sim. Não há Estados Comunistas. O Comunismo só
é possível a nível mundial, quando houver condições para isso.”
Ou seja, esta teoria corresponderá ao cerne da doutrina marxista
clássica, segundo a qual o comunismo só é possível numa
perspectiva internacionalista, em que os países mais desenvolvidos
fazem a revolução, arrastando para ela os países dependentes.
Penso,
então, nestas incomensuráveis horas de voo: Quererão os dirigentes
chineses levar a China a ser a primeira potência mundial e ir
ganhando preponderância no aparelho produtivo global pelo
assenhoreamento de importantes sectores de produção? Há uma frase
de Deng Xiaoping, o principal obreiro da abertura da China e também
o chefe de Estado que ordenou o massacre de Tiananmen, que me vem
bailando no espírito: “Escondei a vossa força, ganhai tempo, não
desanimeis”.
Publicado por Artur Costa (
18:26)
10 julho 2020
China VII
De
manhã cedo atravessámos, de autocarro, um comprido túnel que, por
baixo do mar, liga a cidade de Hong Kong ao cais onde se apanham os
ferries para Macau. Fomos acompanhados pelo guia chinês, que, no
seu fluente castelhano, nos foi ministrando conhecimentos sobre as
construções subaquáticas na região da península do Caulum, onde
se encontra Hong Kong. Actualmente existe uma ponte que liga os dois
territórios e que tem uma extensão total de 55 kms. (a maior ponte
do mundo?), inaugurada em Outubro de 2018.
Munidos
dos respectivos bilhetes, pré-comprados, embarcámos num agradável
turbo-jet, que fez a travessia do grande delta do rio das Pérolas
em apenas 1 hora (num ferry tradicional levar-nos-ia pelo menos três
horas). Estava um belo dia de sol, como tem estado sempre nesta
viagem, pelo que pudemos desfrutar plenamente o prazer de navegar a
uma velocidade considerável, contemplando a vastidão do delta,
através dos vidros das janelas, que a água, arremessada com a força
da deslocação, vinha borrifar de gotículas, deparando-se-nos, de
quando em quando, as arribas cobertas de verdura de alguma ilhota.
Antigamente, estas águas estariam enxameadas de arrojadíssimos
piratas, que assaltavam com perícia e ferocidade as embarcações
que passavam. Segundo uma versão que se conta, os portugueses que
andavam pelos mares desta parte da Ásia, ajudaram os chineses a
combater os piratas e a vencê-los, ao cabo de três anos de
porfiados esforços, o que fez com que as autoridades chinesas
tivessem premiado Portugal com a doação de Macau.
Aqui,
uma vez desembarcados, esperava-nos a guia que nos iria acompanhar
durante o tempo da nossa permanência. Chamava-se Maria Eugénia, uma
senhora de origem portuguesa, com uns ligeiros traços achinesados. A
língua em que se exprime é o português, com uma ou outra palavra
em castelhano. Diz que não percebe os chineses, porque não fala o
mandarim, mas o cantonês. É uma mulher desembaraçada e cheia de
bom humor, alegre, muito expressiva e satisfeita da vida. Aparenta
mais de sessenta anos, mas diz que não chegou aos cinquenta com uma
tal graça, que põe toda a gente a rir. É esta mulher que, de
microfone em punho no interior do autocarro, nos vai dando indicações
sobre Macau, as pontes que fazem a ligação às ilhas da Taipa e de
Coloane, a Hong Kong e à China continental. Fala com entusiasmo dos
progressos do território, da religião cristã que é a sua e do seu
conforto em viver neste canto do mundo, onde não a parece incomodar
a integração na vasta China dita comunista. Ah!… e também fala
de Sun Ya Tsen. Como poderia não falar desse homem, fundador da
República da China em 1911 e seu primeiro presidente, que varreu do
mapa o regime dos imperadores, esse médico natural de Cantão, que
viveu e exerceu em Macau? “Sabem que foi ele que acabou com o
enfaixamento dos pés, esse bárbaro costume que vitimava as
mulheres? Uma coisa horrível que obrigava as mulheres a andarem com
os pés amarrados, encolhendo os dedos e fazendo feridas. E sabem que
o Dr. Sun Ya Tsen trouxe a medicina ocidental para Macau?”
Eis
que, levados pela loquacidade e a boa disposição da D. Eugénia,
chegamos à Porta do Cerco. Uma porta que não tem nada de imponente,
é até relativamente modesta, ao menos em comparação com aquilo
que nos pintava o nosso imaginário, que nos inculcava uma porta
muito mais avantajada para servir de fronteira entre Macau e o vasto
território da China continental. A verdadeira fronteira, aliás,
seria mais acima. D. Eugénia narra um pouco da história desta porta
e fala de um governador português – Ferreira do Amaral, que teve
um final trágico: os chineses assassinaram-no e decapitaram-no. D.
Eugénia fala da abertura de uma estrada ordenada pelo governador,
que ia de Macau até às designadas portas do cerco (isto é, até à
fronteira com a China) e que, para o efeito, foram escavados
cemitérios chineses que para ali existiam, dando origem a que os
camponeses se revoltassem e o matassem. Insatisfeito com a
explicação, procurei mais informações, designadamente na
internet. Sumariando o que investiguei, aqui vai algo mais:
Ferreira
do Amaral foi governador de Macau no tempo de D. Maria II.
Distinguiu-se por reforçar a soberania da colónia, aliás, em
consonância com os desígnios políticos manifestados pela rainha,
acabando com certas dependências chinesas em termos alfandegários e
direitos correlacionados, pagamento de rendas anuais, etc...,
declarando Macau como um porto franco e ordenando a expulsão dos
mandarins.
Por
outro lado, teve a pretensão de estender o seu domínio sobre toda a
comunidade macaense, estabelecendo impostos que oneravam também a
comunidade chinesa e acabando com o seu estatuto especial, isto para
compensar a perda de receitas provocada pelo facto de Macau passar a
ser um porto franco. A comunidade chinesa reagiu revoltando-se e a
revolta foi sufocada pelas forças militares portuguesas. Dias
depois, em 22 de Agosto de 1849, Ferreira do Amaral foi assassinado,
tendo sido decapitado e tendo-lhe sido decepado o braço direito.
Quanto à abertura da estrada, encontrei efectivamente alusão a esse
facto, mas não vi nada que se relacionasse com a escavação de
cemitérios.
Esta
cena deu origem a um confronto entre os militares portugueses e as
tropas imperiais chinesas, refugiadas num forte que se situava do
lado chinês. Um oficial macaense, chamado Vicente Nicolau de
Mesquita, reuniu umas dezenas de soldados, os quais atacaram o forte,
acertando-lhe com um único tiro disparado por uma peça de
artilharia e espalhando a confusão no forte, que depois assaltaram,
expulsando os cerca de 500 chineses que lá se encontravam. Como
represália, trouxeram a cabeça e a mão de um mandarim.
Os
dois acontecimentos – a morte do governador e o assalto ao forte,
conhecido como Passaleão -, ficaram registados a um lado e outro da
porta do cerco, cujo arco foi mandado erigir em 1871 para comemorar
esses feitos. A porta não data dessa altura, mas anteriormente seria
em madeira. Do lado esquerdo está gravada a data da morte de
Ferreira do Amaral – 22 de Agosto de 1849 – e do lado direito, a
da btalha de Passaleão – 25 de Agosto de 1849. Na barra por cima
do arco, a inscrição: A Pária Honrai Que A Pátria Vos Contempla.
De
autocarro, seguimos para outra paragem. Desta feita, vamos visitar
alguns monumentos do centro histórico, fazendo parte do património
mundial classificado pela UNESCO em 2005. Há um conjunto de igrejas
situadas próximo umas das outras, as quais vamos percorrendo,
entrando nesta ou naquela: igrejas de Santo António, Santo
Agostinho, S. Lourenço, S. Domingos, esta com uma fachada mais
imponente, de estilo barroco, mas nenhuma delas com uma riqueza digna
de uma menção especial, quer pelo que toca ao exterior, quer no
respeitante ao interior. A igreja efectivamente mais relevante é uma
ruína, de que apenas se conserva a grandiosa fachada, barroca, mas
com outros estilos à mistura, ostentando uma profusão de imagens. É
a igreja de S. Paulo, aliás, da Madre de Deus, que é praticamente
um ex libris de Macau.
Construída
pelos jesuítas no século XVI (1565), sofreu um incêndio no final
do século. Sujeita a reparação, esta veio a ficar concluída em
1602, mas um novo incêndio, em 1735, veio a destruir a igreja por
completo, assim como o colégio anexo, esse, sim, denominado Colégio
de S. Paulo, uma espécie de instituto universitário, onde faziam
estudos superiores os aspirantes a missionários, que depois iam
evangelizar para diversas paragens da Ásia. Elevada no cimo de vasta
escadaria, a fachada é o testemunho sobrevivente de uma das maiores,
senão a maior igreja católica do Oriente. Está construída em
vários níveis, terminando num frontão triangular; cada nível e o
frontão encerram uma determinada simbologia.
A
célebre Gruta de Camões não podia deixar de estar inscrita no
cardápio de visitas obrigatórias. É talvez daqueles lugares
míticos que o viajante português almeja com mais ardor. Talvez por
isso o confronto com a realidade deixe um certo sabor de decepção.
Já se sabe que realidade alguma preenche as dimensões de um mito,
seja ele de que natureza for. Porém, esta gruta resume-se a três
calhaus, dois ao alto e um de través, em cima daqueles. O viajante
pergunta, incrédulo: «Foi aqui que o nosso épico se refugiou a
urdir a gesta dos descobrimentos?» A lembrá-lo lá está a
inscrição numa lápide da primeira estrofe d’Os Lusíadas.
Os
pedregulhos sugerirão a possível rudeza, mas não certamente a
beleza primitiva do lugar, hoje inserido num belo e cuidado parque
urbano com vegetação tropical, que ascende pelo outeiro, dispondo
de uma ampla escadaria de pedra; o local que se diz ter sido a gruta
fica sensivelmente a meio do escadório, num recanto pavimentado,
como aliás todo o recinto. Ajustadas serão as palavras que
Ferreira de Castro escreveu sobre o local:
«É
um admirável parque, cheio de amáveis recantos, de árvores
seculares, de flores, de chineses que meditam sobre os bancos, de
pares que buscam as sombras e de crianças que brincam nas clareiras.
Situado junto ao porto interior, o outeiro oferece belas perspectivas
sobre os juncos ancorados, a Ilha Verde no flanco da península, e as
distantes montanhas de Chung Shan. A única coisa feia é,
justamente, a gruta onde o épico teria escrito parte d´”Os
Lusíadas”. Dois penedos verticais, sobre eles um penedo
horizontal, eis o sítio que se julga eleito por Camões para nele
trabalhar.» (A Volta Ao Mundo, edição monumental, Empresa Nacional
de Publicidade, 1942, p. 480).
A
propósito da gruta de Camões, um pensamento que me ocorre é como
foi ele um profundo renovador da língua portuguesa e um exímio
estilista, que abriu caminho ao português moderno, e ao mesmo tempo
um vastíssimo conhecedor da mitologia e da cultura da Antiguidade
Clássica, da literatura, da cosmografia, da história e de várias
outras ciências do seu tempo, de que deu provas sobejas de erudição
n’Os Lusíadas e também na sua obra lírica, tendo levado a vida
que levou. Como foi ele um tal portento, tendo sido um boémio
brigão, um viajante de largo espectro e um aventureiro como Fernão
Mendes Pinto, em suma, um homem de vida instável e acidentada,
sobretudo no Oriente, escrevendo em lugares silvestres como terá
sido este e noutros locais precários e não podendo transportar
consigo grande bagagem, principalmente em apoio bibliográfico. É
certo que terá adquirido vasta soma de conhecimentos em Coimbra,
pelo menos através de um tio que era prior do Mosteiro de Santa Cruz
e chanceler da Universidade, que a frequência da Corte lhe alargou
os horizontes culturais e que a enorme experiência do mundo e da
vida que acumulou nas suas andanças lhe proporcionou uma visão das coisas assente no real vivido, como lembram certos dos seus
biógrafos, como Hernâni Cidade na sua obra Camões, mas tudo isso
não explica a sua capacidade para suprir a falta dos referidos
apoios no acto da criação. Era, certamente um homem dotado de uma
craveira excepcional.
Aproveito
para perguntar à D. Eugénia por outro grande poeta português,
embora de escassa produção: Camilo Pessanha, que viveu e morreu em
Macau. Não há nada que o lembre? D. Eugénia encolhe os ombros em
sinal de vago conhecimento de tal personalidade. Por fim, diz que lhe
parece que há em local que não identifica uma estátua. E com isso
me fico, resignado a essas magríssimas referências, aliás,
conformado também com o limitado tempo que nos é dado para
conhecimentos mais pormenorizados e mais fora do habitual.
Entretanto, seguindo em frente, perto da hora do almoço, dou-me
conta de que outras coisas se vão perdendo mesmo entre monumentos
normalmente enquadrados no rol turístico: a Sé Catedral, a
Fortaleza do Monte e a Fortaleza de Nossa Senhora da Guia, todas
incluídas no centro de Macau classificado pela Unesco em 2005.
Apenas uma referência em andamento ao cemitério protestante, que
fica ao lado do parque que acabámos de visitar e onde estão
sepultadas algumas proeminentes personalidades britânicas que
passaram por aqui.
A
pé, vamos andando pelas ruas antigas, de sabor muito português e
familiar, enfiamos por uma rua pedonal (qual o seu nome, em que não
atentei?), animada à hora a que passamos, com lojas comerciais,
restaurantes, cafés e pastelarias. À porta de duas delas, uns
simpáticos jovens, com tabuleiros nos braços, vão oferecendo aos
passantes biscoitos e pequenos bolos.
E
já estamos no Largo do Senado. É uma bonita praça com o chão em
calçada portuguesa formando desenhos ondulantes, um fontanário ao
centro, ao fundo o icónico edifício que albergou o Leal Senado, que
foi o centro do governo e administração colegial do território e
depois e actualmente, de actividades ligadas com funções
municipais. Bordejando a praça, edifícios seculares de boa
arquitectura, entre os quais o da Santa Casa da Misericórdia.
O
edifício que foi sede do Leal Senado é uma digna construção
neoclássica, dividida em três corpos, com janelas de sacada em
ferro forjado sobrepujadas por áticas, no piso nobre, e um frontão
triangular na parte central a rematar o frontispício, e na parte de
baixo, de um lado e outro da entrada principal aberta ao centro,
janelas de peito, com resguardos de ferro forjado. Não visitámos o
interior, onde se destaca o jardim, a sua, pelos vistos, bela
biblioteca, a sala de reuniões do antigo Senado e seus tectos
apainelados, os seus corredores dignos de nota. Tudo isso fica para
outra encarnação.
Após
o almoço, o autocarro deixou-nos junto da emblemática Torre de
Macau, uma das maiores torres do mundo, com 338 metros de altura,
construída em 2001. Não subimos ao cimo, onde há um restaurante
giratório que deve ter vistas magníficas e onde se vêem alguns
jovens a praticar desportos radicais (500 euros para saltar, diz a D.
Eugénia).
Dali
seguimos para o templo de A-Ma’, muito perto da Torre, também
conhecido por Pagode da Barra, assim designado por se encontrar em
frente à baía que forma o porto interior de Macau. A-Ma’Gao
significa exactamente, em cantonês, “baía de A’Ma, de onde
teria derivado o nome de Macau, como lhe chamaram os portugueses ali
desembarcados pela primeira vez em 1554 ou 1557 (datas estas que
colhi na Wikipédia).
A-Ma
seria a Deusa do Céu, venerada no Sul da China e considerada
protectora dos marinheiros e pescadores, que teriam erguido o templo
que lhe é dedicado e que datará do século XIV ou XV (nenhum dos
guias fornece uma data exacta). A-Ma é uma deusa taoísta, que,
segundo a lenda, teria salvo pescadores no mar, a quem aparecera em
espírito.
O
templo é composto por vários pavilhões de várias épocas, que se
estendem pela Colina da Barra acima, sendo o último um templo
budista. Está incluído no património histórico de Macau
classificado pela Unesco. O mais rico deles todos é, justamente,
aquele que ostenta a imagem da deusa A-Ma. Todo o conjunto está
impregnado do penetrante cheiro a incenso queimado pelos crentes que
aqui acorrem. Pelos vistos, trata-se do maior monumento religioso de
Macau e aquele que faz o cruzamento de várias culturas que estão na
orgem da civilização chinesa: confucionismo, taoísmo, budismo.
Com
isto, passa-se uma boa parte da tarde e é altura de irmos ao hotel
para atribuição do quarto (a bagagem é reduzida, visto que as
malas ficaram em Hong Kong, como já referi). Antes de lá chegarmos,
percorremos a pé algumas ruas do centro, onde a D. Eugénia nos vai
apontando este ou aquele edifício emblemático e dando outras
indicações sobre a cidade e o seu ambiente: os seus casinos, que
são numerosos (36), fazendo da cidade um dos principais centros de
jogo na Ásia, conhecida por isso mesmo como a Las Vegas do Oriente,
o seu circuito automobilístico da categoria Fórmula 3, sendo também
conhecida por isso como a cidade Monte Carlo da Ásia, e D. Eugénia
acentua essa característica com evidente orgulho.
O
nosso hotel é um dos mais, se não mesmo o mais sonante de Macau,
com uma arquitectura moderníssima e uma torre de arrojadas formas,
que é uma das referências da cidade – o Hotel Lisboa, tendo ao
lado o casino do mesmo nome, sedeado no mesmo edifício, da autoria
de dois arquitectos de Hong Kong.
Depois
de feita a instalação, ainda sobrou tempo para umas voltas pela
cidade. Saindo sozinho do hotel, acabei por acamaradar com um médico
e a sua mulher, que já me tinham acompanhado na excursão à muralha
da China, exactamente a seguir ao incidente, que eles lamentaram
comigo, de uma lufada de vento me ter levado o boné e me ter exposto
a cabeça ao gélido frio da Mongólia.
Fomos
até junto do porto interior, onde nos fotografámos mùtuamente;
percorremos depois várias ruas e avenidas do centro, cheias de
movimento, como se numa grande e buliçosa cidade, contemplando o
colorido das numerosas luzes dos estabelecimentos, onde sobressaíam
as das bizarras torres do Casino Lisboa e de outros casinos e hotéis,
cada qual parecendo disputar a primazia do efeito cénico, mas não
suplantando a daquele na sua singularidade.
Andámos
pela Avenida Almeida Ribeiro para a qual dá parte da fachada do Leal
Senado, agora com as janelas todas iluminadas, e voltámos a admirar
o bonito largo em frente, com o fontanário também a resplender de
luz (uma luz líquida); percorremos assim várias ruas e avenidas com
sonoros nomes portugueses. Numa dessas avenidas, a Avenida do Infante
D. Henrique, entrámos em vários estabelecimentos (eu comprei um
boné para substituir o que o vento desabrido de Pequim me tinha
levado) e encontrámos por mero acaso o edifício-sede da Escola
Portuguesa, onde se leccionam em português as matérias do 1.º ao
12.º ano de escolaridade (inaugurado em 1998). Neste passeio
descontraído, chegámos ao hotel a horas de jantar. Foi um bom e
animado jantar, que a todos agradou.
No
final, saí sozinho para a noite. Havia ainda grande movimento pelas
ruas. Ao lado do hotel, uma vistosa fiada de riquexós, com os
condutores aguardando qualquer cliente. A cidade resplandecia na sua
féerie de luzes. É, sem dúvida, uma bonita cidade. Pena era que
ali não permanecêssemos mais do que uma noite e pouco mais do que
um dia e meio. Infelizmente, não dispúnhamos da faculdade soberana
de Ferreira de Castro, quando andou a dar a sua volta ao mundo; era
para lá ficar dois dias e acabou por decidir ficar duas semanas.
Não será fácil voltar aqui com outra disponibilidade. Já estive
para vir a Macau em 1998, convidado para um colóquio sobre liberdade
de imprensa, mas acabei por desistir, por achar que fazer uma tão
longa viagem de avião para cá permanecer apenas três ou quatro
dias não valia o sacrifício.
Volteando
por aqui e por ali, acabei por entrar no casino Lisboa, ao lado do
hotel. A sala de jogo estava repleta e, entre os jogadores,
encontravam-se muitos jovens. Não sei em que tipo de jogo se
envolveriam, porque não percebo patavina do assunto. Andei em torno
das mesas, observando sem nada entender: a roleta, o bacará e também
o tradicional jogo chinês – o fantan? Estive assim que tempos. Por
fim, saí e fui para o hotel. O quarto era magnífico, com uma
casa-de-banho ultramoderna, mas não era muito amplo.
Levantámo-nos
cedo para prosseguir na visita. Fomos então visitar as ilhas de
Coloane e da Taipa, atravessando de autocarro as pontes que ligam o
território àquelas ilhas. Dia magnífico, de sol. A D. Eugénia
quis presentear-nos com uma oferta em Coloane (primeira paragem);
levou-nos a um café simpático, com os donos do qual ela tinha
familiaridade. Aí pudemos tomar um café expresso e comer um pastel
de nata. Este último era a sua oferta. O pastel de nata associado ao
café, uma imagem gastronómica de Portugal, muito recente, já
chegou à China.
Passeámos
a pé por bairros típicos de casas chinesas, com arruamentos
estreitos, livres de trânsito e muito sossegados, com nomes
portugueses. Numa praça, em frente da baía, a capela de S.
Francisco Xavier, um humilde templo evocativo da passagem do
missionário por Macau, a caminho da China e do Japão, sem grande
interesse artístico. Em frente, um obelisco com canhões em ferro
fixados no pavimento comemora o rechaçamento do último ataque de
piratas, em 1910. Era nas grutas e falésias desta ilha, habitada por
indígenas, que os piratas se acoitavam. Os portugueses chegaram aqui
no século XIX e depois integraram a ilha no território de Macau.
A
ilha de Coloane, conforme a fomos vendo de autocarro, está repleta
de prédios altos, mansões, parques e resorts, sugerindo ambiente de
lazer, a que a existência de praias dará o cenário adequado,
embora com águas impróprias, segundo parece. Nesta ilha está a ser
construída a que será a maior universidade de Macau, segundo
informa a D. Eugénia, apontando para o lugar onde está a decorrer a
construção. Através do istmo de Cotai, actualmente urbanizado
graças ao alargamento do aterro, chegámos à ilha de Taipa.
Aqui
parece existir uma maior abundância de arranha-céus e residências
de luxo e é o sítio onde se localizam numerosos casinos. O complexo
urbanístico dominante é o denominado Veneza de Macau, imitando o
Veneza de Las Vegas; inclui hotel e casino com 40 andares, um edifíco
que será um dos maiores do mundo, sendo o casino mesmo o maior a
nível mundial, com 800 mesas de jogo, 3.400 máquinas também de
jogo, uma vasta área para espectáculos, feiras e congressos,
resorts na sua cintura, milhares de suites. Tudo lá dentro tem um ar
de requinte, sobretudo a decoração da denominada Praça de S.
Marcos, imitando essa praça veneziana com céu e tudo; este parece
mesmo natural. A sensação que dá é que, naquele espaço interior,
o tecto é mesmo o céu. Em toda a parte, patamares, corredores,
salas, os tectos são um luxo, decorados com pinturas, e os lustres
são peças de arte. A decoração ficou a cargo de artistas,
arquitectos e decoradores italianos. Tenho nos meus apontamentos de
viagem que esta construção durou apenas dois anos (condição
imposta pelo governo chinês), tendo ocupado 30.000 trabalhadores 24
horas por dia. Trata-se, evidentemente, de uma maravilha ofuscante,
de uma catedral moderna de comércio e consumo, diante da qual o
turista não podia deixar de ficar embasbacado e nenhuma agência de
viagens poderia deixar de incluir no seu cardápio de visitas. Por
isso, foi aqui que se gastou o tempo praticamente todo dedicado a
Coloane. É certo que esse tempo era escasso e que passámos pela
pitoresca rua do Cunha, mas foi mesmo uma passagem fugaz que ficou
obnubilada pela visita à “catedral”. Outras catedrais, como a de
Macau, como já referi, ficaram no olvido.
A
seguir ao almoço, à vontade de cada um no centro comercial do
edifício Veneza, seguimos para Macau. Despedimo-nos da D. Eugénia e
apanhámos o turbo jet para Hong Kong. Sulcando o vasto estuário do
rio das Pérolas sob um sol magnífico, de que temos sido sempre bem
servidos, eu transportava comigo uma sombra, que me coava os raios
solares, por ser tão fugaz o encontro com a bela cidade que conserva
tantos vestígios da nossa estadia de vários séculos nesta parte do
Oriente.
Publicado por Artur Costa (
19:38)
02 junho 2020
Os grandes estadistas do nosso tempo
Nestes tempos conturbados de
pandemia não podemos deixar de medir o pulso aos grandes estadistas
contemporâneos. Com efeito, é em circunstâncias peculiares como
estas que sobressaem os grandes chefes, os grandes condutores de
povos, os verdadeiros líderes. Pois é de dois desses valorosos
estadistas que me proponho falar hoje. São eles o Senhor Fake News e
o Senhor Resfriadinho. Penso
que toda a gente os tem em mente, quando se fala nos dois mais
eminentes vultos destes dias. Por isso, acho que é inútil
referi-los com outros sinais de identificação, bastando que diga o
Senhor Fake News e o Senhor Resfriadinho para que logo toda a gente
os reverencie no seu íntimo como duas figuras verdadeiramente
exemplares que a história há-de perpetuar como marcos indeléveis.
Na
verdade, eles são como as duas faces de uma mesma moeda (a face A e
a face B); como que foram moldados na mesma liga, a ponto de se poder
afirmar que pertencem à mesma progénie. Ambos estadistas de grandes
países, de grandes uniões de Estados (United States A e United
States B), eles têm-se distinguido pela firmeza e pela audácia das
suas decisões. Aparentemente não são decisões de grande espectro,
mas, passada a surpresa do primeiro impacto, logo começa a ganhar
relevo a sua verdadeira dimensão, a sua grandiosa simplicidade, ou
talvez mesmo simplismo, a sua expedita rudimentaridade, como já há
tantas décadas, ou talvez mesmo centúrias, não se via.
Decisões
dotadas de firmeza e audácia, repita-se. Firmeza pela força de
pulso (de músculo) de que vêm animadas; audácia pelo destemor com
que arrepiam caminho contra a opinião dos aparentemente mais
circunspectos espíritos. Veja-se o caso por que temos vindo a
passar desta pandemia originada por um vírus destruidor e
avassalador. Ambos estes notáveis presidentes se têm disitnguido
pela forma absolutamente soberana com que têm mandado
às urtigas
(permita-se aqui o plebeísmo) conselhos
de peritos, médicos, epidemologistas, tanto nacionais, como
estrangeiros, que têm recomendado, maioritariamente, contenção e
prudência, recolhimento em casa e afastamento social.
Quando
toda a gente, por esse mundo fora, se refugiava em casa, desertando
das ruas e dos locais de trabalho, estes denodados chefes-de-estado
riram-se das imprudentes recomendações dos “sábios” com a
superioridade que os caracteriza e não se vergaram à ditadura do
vírus. Era agora o que faltava que um insignificante inimigo, que
nem se consegue enxergar à vista desarmada, um miserável vírus,
virasse
a sociedade do avesso! Homens verdadeiros, com a devida testosterona
nos seus sítios, jámais o deveriam permitir, seguindo o exemplo
destes líderes. Ambos eles mostraram a sua fibra de políticos
enérgicos e independentes não só desprezando os melados conselhos
da gente de ciência, como despedindo na hora certa os conselheiros e
ministros da saúde que teimavam em contrariar ou franzir o nariz às
suas decisões. Rua com eles! A política está acima da ciência, da
arte, da moral e provavelmente da divindade.
O
presidente Fake News veio a público mostrar que o remédio para o
vírus era uma decisão política e não da medicina e que as pessoas
podiam perfeitamente obter a imunidade se infiltrassem em si próprias
desinfectante, ou se bebessem um xarope feito em casa com detergente
para limparem as entranhas. O presidente Resfriadinho, por seu
turno, não lhe ficando atrás,veio para a rua desafiar o vírus, num
acto de impavidez digno de um antigo capitão de armas, e disse ao
povo que podia vir para a rua e dansar o samba. São actos tão
destemidos estes e tão demonstrativos de uma invulgar entrega à
causa pública, que ambos os presidentes já provavelmente
conquistaram a sua figuração icónica para a eternidade: o
presidente Fake News numa estátua, no lugar mais central da capital
do seu país, com uma seringa gigantesca a combater o vírus e o
presidente Resfriadinho, em lugar destacado da sua moderníssima
capital, a enfrentar o mesmo vírus com um passo de samba.
Apesar
destas atitudes premonitórias, muita gente tem sucumbido aos ataques
do vírus nos países dos dois estadistas aqui focados. Contudo, os
mesmos não se deixam arrastar por essa onda de mortandade, nem mover
pelas fragilidades da compaixão, agindo sempre com coragem e alto
sentido de Estado. O presidente Resfriadinho, aliás, definiu como
ninguém, numa frase sábia, a essência do que tem vindo a acontecer
no seu país: “É
a vida!”
E rematou com esta modesta auto-apreciação, tão característica
dos grandes homens, que medem sempre por baixo o seu valor: Eu
não faço milagres.
A
profissão de fé de ambos eles, quer face a esta pandemia, quer a
outras lérias
inventadas por falsos cientistas,
como a das alterações climáticas, é esta: “Salve-se a economia
e morra quem tem de morrer”. Ora aqui está o princípio salutar da
vida humana.
Estes
dois estadistas são aves
rarae na
história
dos
povos e será preciso recuar vários séculos para se encontrar
alguma personalidade que se lhes equipare, pois os estadistas de
envergadura são mesmo muito raros. O presidente Fake News com o seu
gesto magnânimo de enviar, em nome pessoal, envelopes aos seus
concidadãos com quantias de mil dólares para mitigarem os efeitos
da pandemia faz, talvez, lembrar o imperador Calígula, o qual,
segundo o biógrafo dos Doze
Césares,
o imortal Suetónio, distribuiu por duas vezes ao povo trezentos
sestércios por cabeça, para
além de ter mandado chover sobre
o mesmo
povo
dinheiro
em moedas,
durante
vários dias, ao
passo que o presidente Resfriadinho talvez pudesse
arremedar o imperador Nero a
contemplar
o incêndio sobre Roma que ele próprio mandara atear tocando cítara
e cantando, figurando-se
desta feita o
presidente Resfriadinho a tocar violão, contemplando um incêndio na
Amazónia.
É
possível encontrar mais semelhanças nobilitantes entre os
dois estadistas.
Por exemplo: na forma como ambos reagem tão destemidamente aos
jornalistas que não são capazes de perceber a excelência dos seus
actos, não obstante a evidência do seu valor: o presidente Fake
News vociferando:
go
out!;
o presidente Resfriadinho: Cala
a boca!
Acima
de tudo o que vai exposto, há uma virtude raríssima que é preciso
assinalar-se-lhes:
a incrível leveza
com que exercem os seus cargos, provando que a aparente complexidade
da arte ou da ciência de governar está, afinal, ao alcance de
qualquer um, e que não é preciso ter conhecimentos por aí além
para governar países de grande dimensão e exigência. Formidável
pedagogia que
o
cidadão comum universal daí
pode colher!
Enfim,
quase se poderia afirmar que os presidentes Fake News e Resfriadinho,
se vivessem no mesmo país, poderiam
formar um consórcio e serem o presidente e o vice-presidente um do
outro, alternadamente, revezando-se
nos respectivos cargos e
perpetuando-se no poder,
a bem do povo que tivesse a sorte de os merecer. Há
exemplos, porventura mais toscos, por esse mundo fora, que lhes
poderiam servir de modelo.
Estou
certo de que há-de aparecer um novo Cervantes para fixar
literariamente as aventuras épicas desta dupla de estadistas: o
presidente Fake News no seu Rocinante a brandir uma grande seringa
de desinfectantes, arremetendo contra o vírus e, a seu lado, o
impagável Resfriadinho, cavalgando
a sua alimária e ajudando-o
com os alforges carregados de detergentes injectáveis.
Jonathan
Swift (1665-1745)
Publicado por Artur Costa (
20:06)
21 maio 2020
China VI
Guilin
Hoje
foi cedo o acordar: 06H30 locais.
Após
o pequeno-almoço no hotel, eis que vamos a caminho do cais do rio Li
para uma excursão de barco. O guia foi aproveitando a viagem de
autocarro para nos continuar a fornecer indicações sobre a cidade
de Guilin e a região. A cidade tem 800.000 habitantes (quatro
milhões se se contarem as zonas contíguas) e é puro o ar que aqui
se respira, límpidas as águas, que se podem beber directamente das
fontes e correntes, dispondo de invejáveis condições de
salubridade, graças à sua situação geográfica e condições
naturais. O governo protege, por meio de medidas adequadas, o
ecossistema deste espaço urbano e zonas envolventes. Por exemplo:
retirou daqui as indústrias poluentes e deslocou-as para outros
locais, nomeadamente a área de Cantão; preserva as tradições e
impôs limites à construção imobiliária, não podendo os
edifícios exceder determinada altura. Por isso, não se vêem por
aqui arranha-céus.
É
vulgar as pessoas atingirem idades provectas: mais de 100 anos. Há
uma mulher com 110 anos e outra faleceu com 118 anos. A reforma, em
toda a China, é aos 60 anos para os homens e 55 para as mulheres e
muitos chineses, depois de reformados, querem fixar-se aqui para
viverem outro tanto. Esta é a legenda da cidade, segundo o guia, o
simpático José. Só mais uma nota: Na China há cinco regiões
autónomas: Macau, Hong-Kong, Guanshi, Mongólia Interior e Tibete.
Nas regiões autónomas pode ter-se mais do que um filho. Guilin
pertence à região autónoma de Guanshi.
E
com isto, depois de 1 hora de viagem, já estamos a apear-nos, cada
qual com a caixinha do farnel que o hotel nos preparou, já
atravessamos as guardas que dão acesso ao cais, munidos do bilhete
que nos foi fornecido e por entre a vasta multidão de turistas,
encaminhamo-nos para o nosso barco (há vários), transpondo a
prancha de madeira que conduz ao portaló.
A
viagem ao longo do rio é um deslumbarmanto, que se prolonga durante
4 horas. Uma sucessão interminável de colinas de formas arrojadas,
mesmo inverosímeis, de vertentes muito abruptas e picos a furarem o
céu, oferecendo perspectivas inesperadas a cada volta do rio, umas
isoladas, outras agrupadas, em duetos como se fossem irmãs, ou em
magotes, com os pináculos formando serrania, esta estrangulando a
corrente, a outra mais além obstruindo ilusoriamente a passagem,
aquelas duas estando dispostas de tal maneira nas curvas do rio que
simulam uma garganta entre gigantes, como Sila e Caríbedes, as mais
longínquas envoltas em neblina, esfumadas e como se estivessem
grudadas ao céu. Muitas têm nomes que evocam as figuras que as
formas sugerem, como a célebre colina da Tromba de Elefante. Este é
o cenário de muitas pinturas clássicas evocativas das paisagens
chinesas.
O
almoço foi a bordo, cada qual extraindo o conteúdo da caixinha que,
desde o hotel, o acompanhava, o que contribuiu para dar uma agradável
sugestão de viagem campestre.
O
regresso foi no autocarro que nos levou de manhã cedo. Já chegámos
para lá do meio da tarde. O tempo até ao jantar foi ocupado como
cada um quis. E havia onde passar esse bocado da tarde, nomeadamente
nas margens rústicas do lago que se encontra mesmo perto do hotel do
outro lado da rua. Já falei dos seus arruamentos em terra, por entre
árvores, arbustos e plantas da mais variada espécie, conferindo ao
local um resguardo protector para os dias de grande calor.
Após
o jantar, fomos fazer uma excursão de barco pelos lagos do centro,
denominados o lago Cedro (Shanhu) e o lago Figueira (Ronghu),
ligados um ao outro e navegáveis como se fossem um rio. A embarcação
tinha um aspecto de bar nocturno, com mesas e bancos, onde nos fomos
sentando. Como a noite estava boa, muitos subiam à amurada para
melhor desfrutarem da viagem. Ao longo da passeata, a cidade
ia-se-nos revelando, iluminada e multicolorida (os chineses parecem
apreciar muito as iluminações nocturnas das cidades e pôr nisso um
brio especial). Zonas ribeirinhas, jardins, parques, pontes, casebres
das margens iam desfilando a um lado e outro.
A
pesca ncturna foi uma das atracções mais inéditas e bizarras que
se nos deparou. Os pescadores postavam-se no meio do rio, de pé, em
barquitos pequenos, quase pranchas de surf, cada qual em seu
barquito, um aqui, outro lá adiante, trajados com fatos
fosforescentes e iluminados por uma lanterna ou coisa parecida.
Tinham como companheiros corvos marinhos e eram estes que,
devidamente amestrados, mergulhavam nas águas a um sinal gutural
dos pescadores. Quando regressavam ao barquito, depois de uns
momentos em mergulho, não aparentavam trazer nada com eles. Porém,
os pescadores apertavam-lhes o pescoço, num gesto sacudido que
parecia de estrangulamento, e eles largavam, inteirinho, o peixe que
tinham engolido. Disse-nos o guia (o tal José) que os corvos são
recompensados e procuram os maiores peixes.
Outra
das surpresas que a viagem nos porporcionou foi um bailado executado
num terraço sobre o rio por um conjunto de jovens beldades
pertencentes a uma minoria étnica. Não seria nada de especial, se
não tivesse surgido como uma espécie de espectáculo onírico,
deusas marinhas ou ninfas que tivessem surgido do fundo das águas
para deslumbrarem o viajante.
Uma
última curiosidade foram as torres octogonais dos dois pagodes
conhecidos como o Sol e a Lua, erguendo-se no lago Shanhu (Cedro),
cada qual delas trepando nas alturas em vários andares com os seus
telhados típicos. A mais alta, a do Sol, está iluminada em tons
dourados e a da Lua, um pouco inferior, em tons prateados. Ambas
produzem um belíssimo efeito na noite de Guilin, que as toma como ex
libris.
No
regresso, o barco foi mesmo transformado em bar nocturno com uma
jovem chinesa tocando piano chinês e difundindo aquelas sonoridades
orientais tão delicadas e sonhadoras.
Como
se intui do descrito, a viagem tem o seu quê de menu turístico, o
que mais uma vez prova a actual capacidade demonstrada pela China
para atrair o forasteiro, dando- lhe a comer as iguarias que são as
preferidas de quase todo o turista, mas não deixa de ser
interessante e reconfortante. Valeu a pena sobretudo para ver a
cidade à noite no multicolorido das suas luzes e as torres dos
pagodes, que têm outra beleza iluminadas.
Estamos
num outro dia, mas ainda em Guilin. O acordar foi às 07h00. Saída
de autocarro em direcção ao museu das pérolas, que de museu tem
pouco. Uma visita dirigida ao turista consumidor e à promoção da
produção e comércio locais.
A
coisa começou num auditório, onde houve desfile de beldades
exibindo as jóias com que adornavam o colo e os braços,
movimentando-se no tablado para trás e para a frente, ao som de
música, pondo em evidência os seus enfeites. De seguida, passou-se
à sala da exposição das jóias, onde uma senhora fez uma parlenda
sobre a cultura das pérolas. Estas são provenientes de ostras, as
quais produzem nácar como forma de defesa contra objectos estranhos
que entram nas suas conchas – processo esse que, demorando anos, dá
origem às pérolas. Há-as de água salgada e de água doce, sendo
as de água salgada de melhor qualidade. Exemplificou com a abertura
de um ou outro molusco, que retirou de aquários onde se cultivavam.
Também deu explicações sobre os tamanhos e os feitios (as de forma
redonda é que são aproveitáveis para colares e pulseiras de
qualidade) e sobre a maneira de distinguir as pérolas verdadeiras
das falsas (aquelas, sendo friccionadas, largam umas particulazinhas
quase imperceptíveis de pó, as outras, não).
Passou-se
de seguida à venda, no fundo o acto mais importante para que tendiam
todos os passos anteriores. E foi um corrupio à volta dos
mostradores e balcões, um fervilhar de desejos e de pequenas
explosões de entusiasmo, com os da casa incentivando à compra com
acenos de aprovação e palavras de encarecimento (normalmente em
inglês) dos objectos sobre que se detinham mais demoradamente os
olhares ou sobre os quais incidiam as inclinações dos potenciais
compradores. Foi assim que gastei os últimos yenes, confortando-me
com a necessidade de gastar aquela moeda, dado que, daí para a
frente, a mesma já não tinha cotação. Haveria de ser o dólar de
Hong-Kong.
Em
Guilin ainda fomos visitar a Gruta da Flauta de Cana. É uma das
grutas maiores e mais célebres desta zona de rios, lagos, colinas e
grutas. Trata-se de uma enorme galeria, na qual se desce em
profundidade, com estalactites e estalagmites formando as mais
fantásticas figuras: leão, homem da neve, queda de água e muitas
outras figuras imaginárias. Um microcosmo com elementos naturais e
artificiais, estes consistentes sobretudo nos arranjos de luzes e
sonoridades, onde se percebiam chilreios de pássaros, que na
realidade não existiam. Em tempos ancestrais, fluiria por aqui um
rio. No final, junto de um dos lagos da gruta, houve espectáculo com
alusão cosmogónica e bailado. Na verdade, não se pode dizer que os
chineses não sabem explorar convenientemente os seus recursos também
do ponto de vista da indústria turística.
Terminada
a visita, metemo-nos no autocarro com destino à estação dos
caminhos-de-ferro. Despedimo-nos do José (afinal, Dong, o seu nome
chinês, soube-o nesta altura). Dirigimo-nos para o comboio, que
acabara de parar na plataforma, à procura da carruagem que o bilhete
designava. Num rápido, num rápido, que o tempo urgia. Com toda a
bagagem (mala grande, uma mochila, o volume do edredon e ainda uma
caixinha com o lanche ou almoço, que tinha sido preparada no hotel).
Toda a gente se precipita para as portas, as pessoas demoram a
subir, demoram a entrar, por causa dos engarrafamentos, uma aflição.
Por fim, consegui subir com toda a tralha e arrastá-la lá para
dentro. Na coxia, as pessoas permandeciam de pé, atarefadas a
colocar a bagagem nas prateleiras, completamente repletas. Quando
consegui mover-me lá para dentro, vi um espaço livre numa
prateleira, por cima do lugar onde iam duas jovens. Atirei a mala
grande para esse sítio e, por felicidade, ela coube lá, embora com
um dos rodados ligeiramente de fora, o que não pareceu agradar às
referidas jovens. Verifiquei as condições de segurança e
mostrei-lhes que a mala estava segura. Entalei o volume do edredon,
mais espalmado, num espaço que havia entre as costas do último
banco da carruagem e a parede do compartimento, confiando em que
ninguém me pegaria nele. Fui depois à procura do meu lugar.
Acomodei a mochila aos pés e respirei fundo, já o comboio, tipo
Alfa, rodava a boa velocidade. Embalado entre estações, atingia 300
kms. por hora.
Fui
lendo uns contos maravilhosos de Gao Xinjiang, prémio Nobel da
Literatura no ano 2000 (Uma Cana De Pesca Para O Meu Avô,
publicações Dom Quixote) e espreitando a paisagem. Planícies a
perder de vista, áreas cultivadas, relevos boleados, povoações
aqui e acolá, centros urbanos, tudo incaracterístico, assim me
pareceu. Sobretudo no que diz respeito aos edifícios, que a paisagem
era agradável à vista, inundada de sol. O comboio parou em várias
estações e, já perto de Hong Kong, parou em Cantão, uma grande
mole urbana com prédios trepando para o céu, mas onde também não
divisei nada que chamasse a atenção.
Ao
cabo de três horas e meia de viagem estávamos em Hong Kong. Já
estava o autocarro à nossa espera com o respectivo guia, que falava
castelhano. Enquanto a viagem durou, foi-nos dando explicações
sobre a cidade. No hotel – o Harbour Plaza Metropolis, de 4
estrelas – coube-me o quarto n.º 69 no 17.º andar. O hotel ficava
num alto e dele se divisavam estradas rápidas, cruzadas,
sobrepostas, passagens aéreas, carros circulando a alta velocidade.
O centro ficava a uns 20 ou 30 minutos de distância. Pequenos
autocarros do hotel transportavam quem quisesse para lá, de meia em
meia hora, se não estou em erro. Nesse dia, porém, com o cansaço
da viagem e a freima da instalação, mais o tempo gasto no câmbio
(troca de euros pelos tais dólares de Hong Kong – os funcionários
examinavam cada uma das notas minuciosamente, virando-as de um lado e
outro), acho que ninguém saiu. Entretanto já eram horas de jantar,
que não houve (o único dia em que tal aconteceu). Andando perdido
pelo foyer do hotel, depois de arrumadas as malas, acabei por
encontrar duas pessoas que também vagueavam pelo mesmo local (duas
senhoras, que eram companheiras de viagem e partilhavam o mesmo
quarto). Desprezamos o restaurante e o bar do hotel e fomos para o
centro comercial contíguo (Metropolis), que comunicava com aquele.
Circulámos por corredores vazios, com lojas praticamente desertas
àquela hora, num cenário universalmente estereotipado. Acabámos
por ir dar a um pequeno restaurante que não tinha ninguém – uma
dessas manjedouras de centro comercial. Mandámos vir lasagna à
bolonhesa para todos (não havia muito mais) e uma sopinha de tomate
picante. Acompanhámos com chá. Foi um pouco desolador em termos
gastronómicos, mas divertimo-nos com piadas ao que nos rodeava. No
quarto, o mais acanhado em toda a viagem, telefonei para casa, mas o
WatsApp não deu (finalmente experimentava a interdição que
impendia sobre essa rede social). Tive que fazer chamada pelo Rooming
só para dizer olá, porque o preço escalda. Dormi com as malas por
desmanchar, porque no dia seguinte partiríamos para Macau, de onde
regressaríamos dois dias depois a Hong Kong. O grosso da bagagem,
contudo, ficaria nos arrumos do hotel.
Publicado por Artur Costa (
19:16)