10 julho 2020

 

China VII




De manhã cedo atravessámos, de autocarro, um comprido túnel que, por baixo do mar, liga a cidade de Hong Kong ao cais onde se apanham os ferries para Macau. Fomos acompanhados pelo guia chinês, que, no seu fluente castelhano, nos foi ministrando conhecimentos sobre as construções subaquáticas na região da península do Caulum, onde se encontra Hong Kong. Actualmente existe uma ponte que liga os dois territórios e que tem uma extensão total de 55 kms. (a maior ponte do mundo?), inaugurada em Outubro de 2018.
Munidos dos respectivos bilhetes, pré-comprados, embarcámos num agradável turbo-jet, que fez a travessia do grande delta do rio das Pérolas em apenas 1 hora (num ferry tradicional levar-nos-ia pelo menos três horas). Estava um belo dia de sol, como tem estado sempre nesta viagem, pelo que pudemos desfrutar plenamente o prazer de navegar a uma velocidade considerável, contemplando a vastidão do delta, através dos vidros das janelas, que a água, arremessada com a força da deslocação, vinha borrifar de gotículas, deparando-se-nos, de quando em quando, as arribas cobertas de verdura de alguma ilhota. Antigamente, estas águas estariam enxameadas de arrojadíssimos piratas, que assaltavam com perícia e ferocidade as embarcações que passavam. Segundo uma versão que se conta, os portugueses que andavam pelos mares desta parte da Ásia, ajudaram os chineses a combater os piratas e a vencê-los, ao cabo de três anos de porfiados esforços, o que fez com que as autoridades chinesas tivessem premiado Portugal com a doação de Macau.
Aqui, uma vez desembarcados, esperava-nos a guia que nos iria acompanhar durante o tempo da nossa permanência. Chamava-se Maria Eugénia, uma senhora de origem portuguesa, com uns ligeiros traços achinesados. A língua em que se exprime é o português, com uma ou outra palavra em castelhano. Diz que não percebe os chineses, porque não fala o mandarim, mas o cantonês. É uma mulher desembaraçada e cheia de bom humor, alegre, muito expressiva e satisfeita da vida. Aparenta mais de sessenta anos, mas diz que não chegou aos cinquenta com uma tal graça, que põe toda a gente a rir. É esta mulher que, de microfone em punho no interior do autocarro, nos vai dando indicações sobre Macau, as pontes que fazem a ligação às ilhas da Taipa e de Coloane, a Hong Kong e à China continental. Fala com entusiasmo dos progressos do território, da religião cristã que é a sua e do seu conforto em viver neste canto do mundo, onde não a parece incomodar a integração na vasta China dita comunista. Ah!… e também fala de Sun Ya Tsen. Como poderia não falar desse homem, fundador da República da China em 1911 e seu primeiro presidente, que varreu do mapa o regime dos imperadores, esse médico natural de Cantão, que viveu e exerceu em Macau? “Sabem que foi ele que acabou com o enfaixamento dos pés, esse bárbaro costume que vitimava as mulheres? Uma coisa horrível que obrigava as mulheres a andarem com os pés amarrados, encolhendo os dedos e fazendo feridas. E sabem que o Dr. Sun Ya Tsen trouxe a medicina ocidental para Macau?”
Eis que, levados pela loquacidade e a boa disposição da D. Eugénia, chegamos à Porta do Cerco. Uma porta que não tem nada de imponente, é até relativamente modesta, ao menos em comparação com aquilo que nos pintava o nosso imaginário, que nos inculcava uma porta muito mais avantajada para servir de fronteira entre Macau e o vasto território da China continental. A verdadeira fronteira, aliás, seria mais acima. D. Eugénia narra um pouco da história desta porta e fala de um governador português – Ferreira do Amaral, que teve um final trágico: os chineses assassinaram-no e decapitaram-no. D. Eugénia fala da abertura de uma estrada ordenada pelo governador, que ia de Macau até às designadas portas do cerco (isto é, até à fronteira com a China) e que, para o efeito, foram escavados cemitérios chineses que para ali existiam, dando origem a que os camponeses se revoltassem e o matassem. Insatisfeito com a explicação, procurei mais informações, designadamente na internet. Sumariando o que investiguei, aqui vai algo mais:
Ferreira do Amaral foi governador de Macau no tempo de D. Maria II. Distinguiu-se por reforçar a soberania da colónia, aliás, em consonância com os desígnios políticos manifestados pela rainha, acabando com certas dependências chinesas em termos alfandegários e direitos correlacionados, pagamento de rendas anuais, etc..., declarando Macau como um porto franco e ordenando a expulsão dos mandarins.
Por outro lado, teve a pretensão de estender o seu domínio sobre toda a comunidade macaense, estabelecendo impostos que oneravam também a comunidade chinesa e acabando com o seu estatuto especial, isto para compensar a perda de receitas provocada pelo facto de Macau passar a ser um porto franco. A comunidade chinesa reagiu revoltando-se e a revolta foi sufocada pelas forças militares portuguesas. Dias depois, em 22 de Agosto de 1849, Ferreira do Amaral foi assassinado, tendo sido decapitado e tendo-lhe sido decepado o braço direito. Quanto à abertura da estrada, encontrei efectivamente alusão a esse facto, mas não vi nada que se relacionasse com a escavação de cemitérios.
Esta cena deu origem a um confronto entre os militares portugueses e as tropas imperiais chinesas, refugiadas num forte que se situava do lado chinês. Um oficial macaense, chamado Vicente Nicolau de Mesquita, reuniu umas dezenas de soldados, os quais atacaram o forte, acertando-lhe com um único tiro disparado por uma peça de artilharia e espalhando a confusão no forte, que depois assaltaram, expulsando os cerca de 500 chineses que lá se encontravam. Como represália, trouxeram a cabeça e a mão de um mandarim.
Os dois acontecimentos – a morte do governador e o assalto ao forte, conhecido como Passaleão -, ficaram registados a um lado e outro da porta do cerco, cujo arco foi mandado erigir em 1871 para comemorar esses feitos. A porta não data dessa altura, mas anteriormente seria em madeira. Do lado esquerdo está gravada a data da morte de Ferreira do Amaral – 22 de Agosto de 1849 – e do lado direito, a da btalha de Passaleão – 25 de Agosto de 1849. Na barra por cima do arco, a inscrição: A Pária Honrai Que A Pátria Vos Contempla.
De autocarro, seguimos para outra paragem. Desta feita, vamos visitar alguns monumentos do centro histórico, fazendo parte do património mundial classificado pela UNESCO em 2005. Há um conjunto de igrejas situadas próximo umas das outras, as quais vamos percorrendo, entrando nesta ou naquela: igrejas de Santo António, Santo Agostinho, S. Lourenço, S. Domingos, esta com uma fachada mais imponente, de estilo barroco, mas nenhuma delas com uma riqueza digna de uma menção especial, quer pelo que toca ao exterior, quer no respeitante ao interior. A igreja efectivamente mais relevante é uma ruína, de que apenas se conserva a grandiosa fachada, barroca, mas com outros estilos à mistura, ostentando uma profusão de imagens. É a igreja de S. Paulo, aliás, da Madre de Deus, que é praticamente um ex libris de Macau.
Construída pelos jesuítas no século XVI (1565), sofreu um incêndio no final do século. Sujeita a reparação, esta veio a ficar concluída em 1602, mas um novo incêndio, em 1735, veio a destruir a igreja por completo, assim como o colégio anexo, esse, sim, denominado Colégio de S. Paulo, uma espécie de instituto universitário, onde faziam estudos superiores os aspirantes a missionários, que depois iam evangelizar para diversas paragens da Ásia. Elevada no cimo de vasta escadaria, a fachada é o testemunho sobrevivente de uma das maiores, senão a maior igreja católica do Oriente. Está construída em vários níveis, terminando num frontão triangular; cada nível e o frontão encerram uma determinada simbologia.
A célebre Gruta de Camões não podia deixar de estar inscrita no cardápio de visitas obrigatórias. É talvez daqueles lugares míticos que o viajante português almeja com mais ardor. Talvez por isso o confronto com a realidade deixe um certo sabor de decepção. Já se sabe que realidade alguma preenche as dimensões de um mito, seja ele de que natureza for. Porém, esta gruta resume-se a três calhaus, dois ao alto e um de través, em cima daqueles. O viajante pergunta, incrédulo: «Foi aqui que o nosso épico se refugiou a urdir a gesta dos descobrimentos?» A lembrá-lo lá está a inscrição numa lápide da primeira estrofe d’Os Lusíadas.
Os pedregulhos sugerirão a possível rudeza, mas não certamente a beleza primitiva do lugar, hoje inserido num belo e cuidado parque urbano com vegetação tropical, que ascende pelo outeiro, dispondo de uma ampla escadaria de pedra; o local que se diz ter sido a gruta fica sensivelmente a meio do escadório, num recanto pavimentado, como aliás todo o recinto. Ajustadas serão as palavras que Ferreira de Castro escreveu sobre o local:
«É um admirável parque, cheio de amáveis recantos, de árvores seculares, de flores, de chineses que meditam sobre os bancos, de pares que buscam as sombras e de crianças que brincam nas clareiras. Situado junto ao porto interior, o outeiro oferece belas perspectivas sobre os juncos ancorados, a Ilha Verde no flanco da península, e as distantes montanhas de Chung Shan. A única coisa feia é, justamente, a gruta onde o épico teria escrito parte d´”Os Lusíadas”. Dois penedos verticais, sobre eles um penedo horizontal, eis o sítio que se julga eleito por Camões para nele trabalhar.» (A Volta Ao Mundo, edição monumental, Empresa Nacional de Publicidade, 1942, p. 480).
A propósito da gruta de Camões, um pensamento que me ocorre é como foi ele um profundo renovador da língua portuguesa e um exímio estilista, que abriu caminho ao português moderno, e ao mesmo tempo um vastíssimo conhecedor da mitologia e da cultura da Antiguidade Clássica, da literatura, da cosmografia, da história e de várias outras ciências do seu tempo, de que deu provas sobejas de erudição n’Os Lusíadas e também na sua obra lírica, tendo levado a vida que levou. Como foi ele um tal portento, tendo sido um boémio brigão, um viajante de largo espectro e um aventureiro como Fernão Mendes Pinto, em suma, um homem de vida instável e acidentada, sobretudo no Oriente, escrevendo em lugares silvestres como terá sido este e noutros locais precários e não podendo transportar consigo grande bagagem, principalmente em apoio bibliográfico. É certo que terá adquirido vasta soma de conhecimentos em Coimbra, pelo menos através de um tio que era prior do Mosteiro de Santa Cruz e chanceler da Universidade, que a frequência da Corte lhe alargou os horizontes culturais e que a enorme experiência do mundo e da vida que acumulou nas suas andanças lhe proporcionou uma visão das coisas assente no real vivido, como lembram certos dos seus biógrafos, como Hernâni Cidade na sua obra Camões, mas tudo isso não explica a sua capacidade para suprir a falta dos referidos apoios no acto da criação. Era, certamente um homem dotado de uma craveira excepcional.
Aproveito para perguntar à D. Eugénia por outro grande poeta português, embora de escassa produção: Camilo Pessanha, que viveu e morreu em Macau. Não há nada que o lembre? D. Eugénia encolhe os ombros em sinal de vago conhecimento de tal personalidade. Por fim, diz que lhe parece que há em local que não identifica uma estátua. E com isso me fico, resignado a essas magríssimas referências, aliás, conformado também com o limitado tempo que nos é dado para conhecimentos mais pormenorizados e mais fora do habitual. Entretanto, seguindo em frente, perto da hora do almoço, dou-me conta de que outras coisas se vão perdendo mesmo entre monumentos normalmente enquadrados no rol turístico: a Sé Catedral, a Fortaleza do Monte e a Fortaleza de Nossa Senhora da Guia, todas incluídas no centro de Macau classificado pela Unesco em 2005. Apenas uma referência em andamento ao cemitério protestante, que fica ao lado do parque que acabámos de visitar e onde estão sepultadas algumas proeminentes personalidades britânicas que passaram por aqui.
A pé, vamos andando pelas ruas antigas, de sabor muito português e familiar, enfiamos por uma rua pedonal (qual o seu nome, em que não atentei?), animada à hora a que passamos, com lojas comerciais, restaurantes, cafés e pastelarias. À porta de duas delas, uns simpáticos jovens, com tabuleiros nos braços, vão oferecendo aos passantes biscoitos e pequenos bolos.
E já estamos no Largo do Senado. É uma bonita praça com o chão em calçada portuguesa formando desenhos ondulantes, um fontanário ao centro, ao fundo o icónico edifício que albergou o Leal Senado, que foi o centro do governo e administração colegial do território e depois e actualmente, de actividades ligadas com funções municipais. Bordejando a praça, edifícios seculares de boa arquitectura, entre os quais o da Santa Casa da Misericórdia.
O edifício que foi sede do Leal Senado é uma digna construção neoclássica, dividida em três corpos, com janelas de sacada em ferro forjado sobrepujadas por áticas, no piso nobre, e um frontão triangular na parte central a rematar o frontispício, e na parte de baixo, de um lado e outro da entrada principal aberta ao centro, janelas de peito, com resguardos de ferro forjado. Não visitámos o interior, onde se destaca o jardim, a sua, pelos vistos, bela biblioteca, a sala de reuniões do antigo Senado e seus tectos apainelados, os seus corredores dignos de nota. Tudo isso fica para outra encarnação.
Após o almoço, o autocarro deixou-nos junto da emblemática Torre de Macau, uma das maiores torres do mundo, com 338 metros de altura, construída em 2001. Não subimos ao cimo, onde há um restaurante giratório que deve ter vistas magníficas e onde se vêem alguns jovens a praticar desportos radicais (500 euros para saltar, diz a D. Eugénia).
Dali seguimos para o templo de A-Ma’, muito perto da Torre, também conhecido por Pagode da Barra, assim designado por se encontrar em frente à baía que forma o porto interior de Macau. A-Ma’Gao significa exactamente, em cantonês, “baía de A’Ma, de onde teria derivado o nome de Macau, como lhe chamaram os portugueses ali desembarcados pela primeira vez em 1554 ou 1557 (datas estas que colhi na Wikipédia).
A-Ma seria a Deusa do Céu, venerada no Sul da China e considerada protectora dos marinheiros e pescadores, que teriam erguido o templo que lhe é dedicado e que datará do século XIV ou XV (nenhum dos guias fornece uma data exacta). A-Ma é uma deusa taoísta, que, segundo a lenda, teria salvo pescadores no mar, a quem aparecera em espírito.
O templo é composto por vários pavilhões de várias épocas, que se estendem pela Colina da Barra acima, sendo o último um templo budista. Está incluído no património histórico de Macau classificado pela Unesco. O mais rico deles todos é, justamente, aquele que ostenta a imagem da deusa A-Ma. Todo o conjunto está impregnado do penetrante cheiro a incenso queimado pelos crentes que aqui acorrem. Pelos vistos, trata-se do maior monumento religioso de Macau e aquele que faz o cruzamento de várias culturas que estão na orgem da civilização chinesa: confucionismo, taoísmo, budismo.
Com isto, passa-se uma boa parte da tarde e é altura de irmos ao hotel para atribuição do quarto (a bagagem é reduzida, visto que as malas ficaram em Hong Kong, como já referi). Antes de lá chegarmos, percorremos a pé algumas ruas do centro, onde a D. Eugénia nos vai apontando este ou aquele edifício emblemático e dando outras indicações sobre a cidade e o seu ambiente: os seus casinos, que são numerosos (36), fazendo da cidade um dos principais centros de jogo na Ásia, conhecida por isso mesmo como a Las Vegas do Oriente, o seu circuito automobilístico da categoria Fórmula 3, sendo também conhecida por isso como a cidade Monte Carlo da Ásia, e D. Eugénia acentua essa característica com evidente orgulho.
O nosso hotel é um dos mais, se não mesmo o mais sonante de Macau, com uma arquitectura moderníssima e uma torre de arrojadas formas, que é uma das referências da cidade – o Hotel Lisboa, tendo ao lado o casino do mesmo nome, sedeado no mesmo edifício, da autoria de dois arquitectos de Hong Kong.
Depois de feita a instalação, ainda sobrou tempo para umas voltas pela cidade. Saindo sozinho do hotel, acabei por acamaradar com um médico e a sua mulher, que já me tinham acompanhado na excursão à muralha da China, exactamente a seguir ao incidente, que eles lamentaram comigo, de uma lufada de vento me ter levado o boné e me ter exposto a cabeça ao gélido frio da Mongólia.
Fomos até junto do porto interior, onde nos fotografámos mùtuamente; percorremos depois várias ruas e avenidas do centro, cheias de movimento, como se numa grande e buliçosa cidade, contemplando o colorido das numerosas luzes dos estabelecimentos, onde sobressaíam as das bizarras torres do Casino Lisboa e de outros casinos e hotéis, cada qual parecendo disputar a primazia do efeito cénico, mas não suplantando a daquele na sua singularidade.
Andámos pela Avenida Almeida Ribeiro para a qual dá parte da fachada do Leal Senado, agora com as janelas todas iluminadas, e voltámos a admirar o bonito largo em frente, com o fontanário também a resplender de luz (uma luz líquida); percorremos assim várias ruas e avenidas com sonoros nomes portugueses. Numa dessas avenidas, a Avenida do Infante D. Henrique, entrámos em vários estabelecimentos (eu comprei um boné para substituir o que o vento desabrido de Pequim me tinha levado) e encontrámos por mero acaso o edifício-sede da Escola Portuguesa, onde se leccionam em português as matérias do 1.º ao 12.º ano de escolaridade (inaugurado em 1998). Neste passeio descontraído, chegámos ao hotel a horas de jantar. Foi um bom e animado jantar, que a todos agradou.
No final, saí sozinho para a noite. Havia ainda grande movimento pelas ruas. Ao lado do hotel, uma vistosa fiada de riquexós, com os condutores aguardando qualquer cliente. A cidade resplandecia na sua féerie de luzes. É, sem dúvida, uma bonita cidade. Pena era que ali não permanecêssemos mais do que uma noite e pouco mais do que um dia e meio. Infelizmente, não dispúnhamos da faculdade soberana de Ferreira de Castro, quando andou a dar a sua volta ao mundo; era para lá ficar dois dias e acabou por decidir ficar duas semanas. Não será fácil voltar aqui com outra disponibilidade. Já estive para vir a Macau em 1998, convidado para um colóquio sobre liberdade de imprensa, mas acabei por desistir, por achar que fazer uma tão longa viagem de avião para cá permanecer apenas três ou quatro dias não valia o sacrifício.
Volteando por aqui e por ali, acabei por entrar no casino Lisboa, ao lado do hotel. A sala de jogo estava repleta e, entre os jogadores, encontravam-se muitos jovens. Não sei em que tipo de jogo se envolveriam, porque não percebo patavina do assunto. Andei em torno das mesas, observando sem nada entender: a roleta, o bacará e também o tradicional jogo chinês – o fantan? Estive assim que tempos. Por fim, saí e fui para o hotel. O quarto era magnífico, com uma casa-de-banho ultramoderna, mas não era muito amplo.
Levantámo-nos cedo para prosseguir na visita. Fomos então visitar as ilhas de Coloane e da Taipa, atravessando de autocarro as pontes que ligam o território àquelas ilhas. Dia magnífico, de sol. A D. Eugénia quis presentear-nos com uma oferta em Coloane (primeira paragem); levou-nos a um café simpático, com os donos do qual ela tinha familiaridade. Aí pudemos tomar um café expresso e comer um pastel de nata. Este último era a sua oferta. O pastel de nata associado ao café, uma imagem gastronómica de Portugal, muito recente, já chegou à China.
Passeámos a pé por bairros típicos de casas chinesas, com arruamentos estreitos, livres de trânsito e muito sossegados, com nomes portugueses. Numa praça, em frente da baía, a capela de S. Francisco Xavier, um humilde templo evocativo da passagem do missionário por Macau, a caminho da China e do Japão, sem grande interesse artístico. Em frente, um obelisco com canhões em ferro fixados no pavimento comemora o rechaçamento do último ataque de piratas, em 1910. Era nas grutas e falésias desta ilha, habitada por indígenas, que os piratas se acoitavam. Os portugueses chegaram aqui no século XIX e depois integraram a ilha no território de Macau.
A ilha de Coloane, conforme a fomos vendo de autocarro, está repleta de prédios altos, mansões, parques e resorts, sugerindo ambiente de lazer, a que a existência de praias dará o cenário adequado, embora com águas impróprias, segundo parece. Nesta ilha está a ser construída a que será a maior universidade de Macau, segundo informa a D. Eugénia, apontando para o lugar onde está a decorrer a construção. Através do istmo de Cotai, actualmente urbanizado graças ao alargamento do aterro, chegámos à ilha de Taipa.
Aqui parece existir uma maior abundância de arranha-céus e residências de luxo e é o sítio onde se localizam numerosos casinos. O complexo urbanístico dominante é o denominado Veneza de Macau, imitando o Veneza de Las Vegas; inclui hotel e casino com 40 andares, um edifíco que será um dos maiores do mundo, sendo o casino mesmo o maior a nível mundial, com 800 mesas de jogo, 3.400 máquinas também de jogo, uma vasta área para espectáculos, feiras e congressos, resorts na sua cintura, milhares de suites. Tudo lá dentro tem um ar de requinte, sobretudo a decoração da denominada Praça de S. Marcos, imitando essa praça veneziana com céu e tudo; este parece mesmo natural. A sensação que dá é que, naquele espaço interior, o tecto é mesmo o céu. Em toda a parte, patamares, corredores, salas, os tectos são um luxo, decorados com pinturas, e os lustres são peças de arte. A decoração ficou a cargo de artistas, arquitectos e decoradores italianos. Tenho nos meus apontamentos de viagem que esta construção durou apenas dois anos (condição imposta pelo governo chinês), tendo ocupado 30.000 trabalhadores 24 horas por dia. Trata-se, evidentemente, de uma maravilha ofuscante, de uma catedral moderna de comércio e consumo, diante da qual o turista não podia deixar de ficar embasbacado e nenhuma agência de viagens poderia deixar de incluir no seu cardápio de visitas. Por isso, foi aqui que se gastou o tempo praticamente todo dedicado a Coloane. É certo que esse tempo era escasso e que passámos pela pitoresca rua do Cunha, mas foi mesmo uma passagem fugaz que ficou obnubilada pela visita à “catedral”. Outras catedrais, como a de Macau, como já referi, ficaram no olvido.
A seguir ao almoço, à vontade de cada um no centro comercial do edifício Veneza, seguimos para Macau. Despedimo-nos da D. Eugénia e apanhámos o turbo jet para Hong Kong. Sulcando o vasto estuário do rio das Pérolas sob um sol magnífico, de que temos sido sempre bem servidos, eu transportava comigo uma sombra, que me coava os raios solares, por ser tão fugaz o encontro com a bela cidade que conserva tantos vestígios da nossa estadia de vários séculos nesta parte do Oriente.

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