20 fevereiro 2006
A religião e a liberdade de expressão
Ainda mais duas ou três coisas com pretexto nas caricaturas de Maomé:
1 - As caricaturas que eu conheço não ofendem os muçulmanos em geral nem o islamismo, como às vezes se tem afirmado. O que elas atingem é uma certa utilização da religião e do profeta Maomé para fins terroristas. Não é a essência dessa religião que é satirizada, mas uma certa concepção dela que desemboca numa das formas mais odiosas do fanatismo religioso. Será que os muçulmanos em geral professam essa forma de fanatismo? O que me levou a opor-me às caricaturas foi a conjuntura internacional que atravessamos. Tendo em vista esse contexto, o meio utilizado e a própria finalidade que presidiu à sua publicação, elas pareceram-me uma provocação gratuita.
2 - Não se pode argumentar com o facto de ser um interdito para os muçulmanos a representação icónica do profeta. E depois? Os que não professam essa religião estão obrigados a respeitar esse interdito? Digo: os que não professam essa religião, independentemente de serem árabes ou europeus, ou deste ou daquele canto do mundo Se é preciso respeitar as crenças de quem é crente e, dentro das crenças, as diferenças de cada uma delas, também é preciso tolerar as convicções de quem não é crente e não acredita na divindade, nem em dogmas, nem se deixa tocar por símbolos religiosos e, por isso, não se sente obrigado a respeitá-los, podendo exprimir o que sente e pensa por qualquer meio de expressão, incluindo a caricatura e a sátira. Isto não significa que não se respeite as crenças dos crentes, que têm de ser livres não só para exercerem o seu culto e afirmarem as suas convicções e desenvolverem o seu apostolado, como também para criticarem e manifestarem a sua indignação em relação àqueles que põem em causa aquilo em que acreditam. O que não podem é exigir o silenciamento dos «infiéis». Aliás, quantas vezes tem sucedido que as críticas mais virulentas e as sátiras mais mordazes a determinados aspectos de uma religião ou as reacções mais iconoclastas procedem exactamente de espíritos religiosos, mas que não se conformam com a irracionalidade mais absurda que há em todas as religiões?
3 - Não se pode limitar a liberdade de expressão a pretexto de um interdito relativamente ao sagrado, seja qual for a forma que ela revista, isto ao contrário do que parecia defender há tempos Eduardo Prado Coelho numa das suas crónicas habituais no «Público». A nossa cultura e a nossa civilização encontram também aí o seu fundamento. Basta lembrar entre muitos outros, Voltaire, Sade, Lautréamont, muitos surrealistas, quer nas artes plásticas, quer na literatura, Guerra Junqueiro, isto para só falar em alguns clássicos europeus que eu, nos meus limitados horizontes culturais, conheço melhor. Foi graças à ousadia de muitos desses que se progrediu alguma coisa no caminho de uma secularização que encontra o seu correlativo numa cada vez maior afirmação da autonomia humana e nos correspondentes direitos humanos, quando não no caminho da humanização das religiões. A própria liberdade de expressão foi uma conquista à esfera do sagrado, o «sagrado violento», para empregar uma expressão do filósofo Gianni Vatimo («Acreditar Em Acreditar»), que inclui Cristo no número dos secularizadores, considerando que «talvez o próprio Voltaire seja um efeito positivo da cristianização (autêntica) da humanidade e não um blasfemo inimigo de Cristo».
E por que é que o sagrado só há-de compaginar-se com a sisudez, o temor reverencial e a veneração, quando a mesma divindade que nos criou à sua imagem e semelhança, segundo uma perspectiva teológica, nos deu esta imensa faculdade de riso, de humor e de irreverência? Não será isso tributário do tal «sagrado violento»?
4 - Os sentimentos religiosos não podem fundar indiscriminadamente uma limitação da liberdade de expressão, sobretudo com o pretexto de ofensa a sentimentos difusos de uma comunidade. Será preciso lembrar os perigos que isso acarreta e buscar exemplos antigos e recentes (dos nossos dias) que tornam palpáveis esses perigos? Então relativamente à obra de arte, que constitui um universo autónomo de significações, não deverá o princípio da livre criatividade e de uma auto-referencialidade específica prevalecer sobre quaisquer outros princípios e considerações?
1 - As caricaturas que eu conheço não ofendem os muçulmanos em geral nem o islamismo, como às vezes se tem afirmado. O que elas atingem é uma certa utilização da religião e do profeta Maomé para fins terroristas. Não é a essência dessa religião que é satirizada, mas uma certa concepção dela que desemboca numa das formas mais odiosas do fanatismo religioso. Será que os muçulmanos em geral professam essa forma de fanatismo? O que me levou a opor-me às caricaturas foi a conjuntura internacional que atravessamos. Tendo em vista esse contexto, o meio utilizado e a própria finalidade que presidiu à sua publicação, elas pareceram-me uma provocação gratuita.
2 - Não se pode argumentar com o facto de ser um interdito para os muçulmanos a representação icónica do profeta. E depois? Os que não professam essa religião estão obrigados a respeitar esse interdito? Digo: os que não professam essa religião, independentemente de serem árabes ou europeus, ou deste ou daquele canto do mundo Se é preciso respeitar as crenças de quem é crente e, dentro das crenças, as diferenças de cada uma delas, também é preciso tolerar as convicções de quem não é crente e não acredita na divindade, nem em dogmas, nem se deixa tocar por símbolos religiosos e, por isso, não se sente obrigado a respeitá-los, podendo exprimir o que sente e pensa por qualquer meio de expressão, incluindo a caricatura e a sátira. Isto não significa que não se respeite as crenças dos crentes, que têm de ser livres não só para exercerem o seu culto e afirmarem as suas convicções e desenvolverem o seu apostolado, como também para criticarem e manifestarem a sua indignação em relação àqueles que põem em causa aquilo em que acreditam. O que não podem é exigir o silenciamento dos «infiéis». Aliás, quantas vezes tem sucedido que as críticas mais virulentas e as sátiras mais mordazes a determinados aspectos de uma religião ou as reacções mais iconoclastas procedem exactamente de espíritos religiosos, mas que não se conformam com a irracionalidade mais absurda que há em todas as religiões?
3 - Não se pode limitar a liberdade de expressão a pretexto de um interdito relativamente ao sagrado, seja qual for a forma que ela revista, isto ao contrário do que parecia defender há tempos Eduardo Prado Coelho numa das suas crónicas habituais no «Público». A nossa cultura e a nossa civilização encontram também aí o seu fundamento. Basta lembrar entre muitos outros, Voltaire, Sade, Lautréamont, muitos surrealistas, quer nas artes plásticas, quer na literatura, Guerra Junqueiro, isto para só falar em alguns clássicos europeus que eu, nos meus limitados horizontes culturais, conheço melhor. Foi graças à ousadia de muitos desses que se progrediu alguma coisa no caminho de uma secularização que encontra o seu correlativo numa cada vez maior afirmação da autonomia humana e nos correspondentes direitos humanos, quando não no caminho da humanização das religiões. A própria liberdade de expressão foi uma conquista à esfera do sagrado, o «sagrado violento», para empregar uma expressão do filósofo Gianni Vatimo («Acreditar Em Acreditar»), que inclui Cristo no número dos secularizadores, considerando que «talvez o próprio Voltaire seja um efeito positivo da cristianização (autêntica) da humanidade e não um blasfemo inimigo de Cristo».
E por que é que o sagrado só há-de compaginar-se com a sisudez, o temor reverencial e a veneração, quando a mesma divindade que nos criou à sua imagem e semelhança, segundo uma perspectiva teológica, nos deu esta imensa faculdade de riso, de humor e de irreverência? Não será isso tributário do tal «sagrado violento»?
4 - Os sentimentos religiosos não podem fundar indiscriminadamente uma limitação da liberdade de expressão, sobretudo com o pretexto de ofensa a sentimentos difusos de uma comunidade. Será preciso lembrar os perigos que isso acarreta e buscar exemplos antigos e recentes (dos nossos dias) que tornam palpáveis esses perigos? Então relativamente à obra de arte, que constitui um universo autónomo de significações, não deverá o princípio da livre criatividade e de uma auto-referencialidade específica prevalecer sobre quaisquer outros princípios e considerações?