30 abril 2006

 

Um discurso que vale a pena ler

Não é vulgar nos discursos oficiais produzir-se reflexão de relevo. Geralmente é um vazio de ideias. Quando muito fazem-se críticas e mandam-se "recados" (modalidade muito utilizada e que faz a delícia dos jornalistas, que se empenham na "descodificação"). No âmbito da justiça ainda mais rara é a reflexão, abundando, sim, a mistificação. Saliente-se, como excepção, as intervenções de Jorge Sampaio nas cerimónias de abertura do ano judicial no STJ.
Também de excepção é o discurso proferido no passado dia 27 deste mês, na sua tomada de posse como vice-presidente, por António Henriques Gaspar. Porque merece uma leitura atenta e porque é um óptimo ponto de partida para o debate e para o aprofundamento dos temas abordados, aqui o transcrevo.


Discurso na tomada de posse como vice-presidente do STJ

As minhas primeiras palavras vão ser, sentidamente, de memória.
De memória do Vice-Presidente Neves Ribeiro, que na transitoriedade efémera da circunstância do ser humano partiu cedo demais.
Magistrado de excepção, com o mais elevado sentido de serviço e de dedicação nas funções em que serviu a República, solidário, comprometido com o bem comum e com os outros, especialmente os mais desfavorecidos, Amigo, sempre com a irradiante simpatia e com o saber e a humildade dos espíritos de eleição.
E de memória do Conselheiro Araújo de Barros, que na pujança intelectual e na intensidade da sua vida profissional, académica e cívica nos deixou tão fora do tempo.
Partiram Homens Bons e ficamos empobrecidos.
Mas recordando-os, estão presentes entre nós.

Queria também dizer-vos, Senhores Conselheiros, da honra que constitui para mim a vossa designação para servir o Supremo Tribunal de Justiça nas funções em que fico investido.
Possa eu corresponder ao mandato que me conferem, e no prazo que é da lei solver o crédito da vossa confiança.

Agradeço a Vossa Excelências, Senhores Convidados, a distinção que quiseram conceder-nos com a vossa presença, que em muito oferece prestígio a este acto.

Na sobriedade do acto que assinala o início de funções de um Vice-Presidente do STJ, seja-me permitido partilhar convosco algumas breves reflexões que penso serem impostas pela seriedade do momento e pelo ambiente em que têm sido envolvidas as instituições de justiça.
No discurso, na opinião, na amplificação mediática e na consequente projecção no sentimento comum, por tudo de manifesta e insidiosamente se foi sedimentando uma visão pré-apocalíptica sobre o sistema de justiça.
Tem sido recorrente e apriorístico o discurso da crise.
Discurso muitas vezes ou quase sempre de sentido único, impressionista, nascido de fragmentos, frequentemente assente em inexactidões ou descontinuidade de conhecimento, em actos dispersos e acidentais, ou decorrente de singulares experiências pessoais numa visão marcadamente a-sistémica.
As afirmações repetidas sobre a crise, dir-se-á mesmo em modo totalitário, com conclusões definitivas sem discussão séria e racional sobre causas, dificultam a reposição da razão de análise e a abordagem serena e objectiva.
Abordagem serena e objectiva que, todavia, se nos impõe por indeclinável assunção de dever.

Os anos recentes têm sido tempos de transformações radicais.
Diversamente de um modelo axiológico herdado do Iluminismo, em que diversas esferas sociais se acomodavam em agregação de valores e referências, e a esfera pública assimilava a função de composição e resolução de conflitos em hierarquização de valores, confrontamo-nos hoje com diferentes lógicas e com diferentes sistemas, simultaneamente com diversas representações, modos, valores, imagens e linguagem; coexistem várias racionalidades interpostas num mesmo tempo e no mesmo espaço.
A fragmentação da realidade e a horizontalidade de valores, a multiplicidade de sistemas discursivos interpostos no mesmo tempo e no mesmo espaço, reclamam a emergência de regulações parcelares, com sistemas próprios de valores e referências e com o consequente auto-enfraquecimento dos poderes tradicionais e a aparente ou real multiplicidade de esferas de justiça.
A emergência de diversas entidades reguladoras justapostas por espaços, e a consequente retracção do Estado tradicional e dos seus poderes, evidenciam o reordenamento dos modelos da contemporaneidade.
Tudo surge como uma revolução intensa e extensa, mas quase silenciosa e anestesiante.
E nesta verdadeira revolução, a Justiça, como sistema de valores e de modelação dos poderes do Estado, confronta-se com novos paradigmas que parecem alterar o sentido, se não do tempo, essencialmente do seu espaço.
A Justiça é instituição central e suporte essencial do Estado de Direito e do sistema democrático sem o qual não existe Estado de Direito.
Mas, por ser assim e para ser assim, tem de continuar a ser pensada como instituição de resolução de conflitos, de conciliação e de apaziguamento, na afirmação dos direitos fundamentais, assumindo-se como instância de definição e de realização da concordância prática entre valores fundamentais.
No entanto, este modelo, que pressupõe a hierarquização e a definição de juízos de prevalência em situações de conflito, em aparência contrária à justaposição dos diversos sistemas discursivos, parece situar-se, na linguagem contemporânea, à margem dos novos paradigmas.
Por isso, a intervenção das instituições de justiça, e primeiramente do juiz, na superação e na definição da concordância prática em caso de conflito de valores, provoca, com frequência, uma leitura crítica, extrema e parcelar, própria das esferas que supõem os seus valores isentos de qualquer modulação externa.
Por exemplo, a auto-ponderação dos valores subjacentes a alguns segredos, não admite no seu discurso que tenha de haver, em casos de conflito, hetero-valoração preponderante.
Está, aqui, uma das grandes aporias das reponderações institucionais e uma enorme exigência na compreensão do espírito do tempo.
A Justiça não pode ser repartida em diversas esferas de justiça, mas deve manifestar elevada prudência na consideração das várias racionalidades, sobrepondo-lhes sempre, no entanto, a razão federadora dos valores constitucionais.

Por outro lado, as instituições de justiça enfrentam novas realidades: – as globalizações modificaram, aceleradamente, um certo modo racional e dogmático de compreender o direito.
Numa nova ordem sócio-económica poliédrica e multicêntrica, emerge a alteração da própria compreensão da realidade e da capacidade da ordem jurídica para dar resposta às exigências de um tempo que se precipita em futuro contínuo.
A dissolução das coordenadas de espaço e tempo anda de par com alguma porosidade do direito estadual e da concepção sistemática que lhe é inerente, e com a emergência de nexos colaterais de complexas redes normativas.
As instituições de justiça – e falo sobretudo nos tribunais – têm de saber enquadrar a complexidade do momento para superar algum anarquismo metodológico e prevenir, na dispersão normativa, a anomia ou o caos.
É, pois, imensa a responsabilidade que os tempos novos impõem.

A contemporaneidade criou também alguns mitos, erigidos em supostos valores fundamentais, que confrontam a Justiça a um tempo com a força simbólica da invenção de valores e com a fragilidade racional dos mitos.
Refiro-me à transparência e à densidade do tempo, ou, como alguns referem, a tirania da urgência.
A transparência, filha da nova visibilidade, tem-se transformado por desvios de compreensão, com diz o juiz Antoine Garapon, numa espécie de “voyeurismo” erigido em virtude pública.
A transparência oferece, aparentemente, um contacto directo com a realidade, sem intermediação de qualquer composição, sem o travão de qualquer substância e sem obstrução por qualquer filtro. Mas não permite qualquer elaboração.
Não estando isenta de sérias ambiguidades, a transparência, assim como tem sido apresentada, pode oferecer as bases intelectuais a novas formas de populismo.
Não permitindo qualquer elaboração, o imediato não explica, mas pretende a reconstituição em tempo real e sem regras.
Devemos, por isso, em rigor de linguagem, falar antes de publicidade como valor democrático.
No funcionamento da justiça, a publicidade democrática constitui um valor essencial.
A justiça tem regras que constituem fundamento da democracia; sem regras e sem espaço, os discursos entram em concorrência agreste que beneficia quem fala mais forte ou quem tem capacidade para se fazer ouvir melhor.
Por isso, o processo - e a sua inerente forma – é inseparável do acto de julgar, e na sua ambivalência constitutiva ao mesmo tempo que encerra liberta o acto de julgar.
A publicidade democrática não pode ser separável da formalidade do processo, que é um necessário espaço de garantia e de verificação e escrutínio interno e externo.
É um espaço simbólico como condição da eficácia do discurso; apenas o espaço do processo, no mínimo necessário mas no máximo exigível, permite a elaboração pela argumentação contra a efusão e a espontaneidade dos sentimentos.
O processo é, pois, um espaço democrático onde todos os interessados podem intervir no modo de reconstrução da realidade como pressuposto necessário do acto de julgar.
Espaço e tempo, são condições essenciais da realização da justiça.
Não é possível dizer o direito não dando tempo.
O tempo do processo é, porém, um tempo necessariamente separado do tempo da vida real, regulado por prescrições objectivas, que permita que o julgamento realize os seus efeitos performativos e instituintes: os efeitos jurídicos - declaração do direito do caso, condenação; absolvição; e os efeitos sociais - apaziguamento do conflito.
As instituições de justiça e os cidadãos têm de estar atentos aos riscos de destemporalização: a contradição entre o tempo imediato da comunicação mediática e o tempo mediato de reflexão.

As novas exigências e a sobreposição mediática – não a exposição pública, que é necessária e democrática – exponenciam o ambiente em que se proclama a crise da justiça.
Crise afirmada, mas não racionalizada nos fundamentos e muito induzida pelo discurso da crise.
No entanto, a vida social funda-se, em boa parte, na confiança na justiça.
Já na cidade ateniense as virtudes cívicas se centravam na justiça e na temperança, valor indissociável da justiça, como sabedoria do tempo, da justa medida, acordo e harmonia.
A erosão da confiança na justiça abala decisivamente um dos pilares da sociedade democrática.
A prioridade que hoje enfrentamos – todos o reconheceremos – está, por isso, na recuperação da confiança nas instituições judiciárias, e sobretudo nos tribunais como órgãos de identificação externa do próprio sistema de justiça.
A reposição da confiança é mesmo uma questão actual de centralidade política, identificada como um “desafio” – o terceiro desafio - no discurso de posse do Senhor Presidente da República: «criação de condições para o reforço da credibilidade e eficiência do sistema de justiça».
A confiança é, porém, da ordem dos sentimentos não directa e imediatamente racionalizáveis, e ganha-se ou perde-se pelo cuidado ou pela falta de cuidado no discurso e na acção.
Mas, enquanto valor imaterial, a confiança quebra-se mais pelo discurso do que se recompõe pela acção. A intensidade da proclamação da crise atingiu e condicionou a opinião de um modo já não tolerável, impondo-se, na urgência do tempo, o recentramento tanto dos modos de abordagem como do rigor na acção.
Missão maior – o “desafio” – em que todos devem assumir os seus deveres e responsabilidades.
Sendo as instituições do Estado inseparáveis dos agentes que em cada momento nelas servem a República e os cidadãos, fractura gravemente a confiança o discurso de leveza insustentável, que tenha como efeito objectivo uma desqualificação dos agentes que servem a justiça.
E de tal registo tivemos afloramentos recentes.
A teoria dos “privilégios” das “corporações”, a linguagem que envolveu o anúncio de algumas medidas, ou por exemplo, a apresentação da nova lei de responsabilidade da Administração, que é identificada, subliminarmente, nas alusões externas que a comunicação transmite, como lei de responsabilização dos juízes, são casos de discurso pouco cuidado e objectivamente desqualificador.
O efeito objectivo de desqualificação liberta pulsões de baixo perfil, enfraquece as referências e descredibiliza.
Com efeitos devastadores na confiança.
Por outro lado, a independência, interna e externa, constitui a garantia nuclear do estatuto dos juízes, não como garantia pessoal ou direito próprio, mas enquanto direito fundamental dos cidadãos a tribunais independentes e imparciais, e conatural ao sistema democrático.
Direito dos cidadãos, afirmado como direito fundamental na Constituição e em instrumentos de direito internacional, e essencial à qualidade da justiça e da democracia e à garantia da igualdade.
A relação com outros órgãos do Estado, ou de outros órgãos do Estado com os Tribunais tem, por isso, de ser marcada pelo intransigente respeito institucional recíproco, prevenindo os sinais que possam transportar o risco objectivo de desconsideração ou deslegitimação, com reflexos na percepção externa da independência.
Não irei referir nada em que possa ter lido esses sinais.
Não queria deixar, no entanto, de salientar, a propósito, exemplos ou episódios recentes, vindos de outras paragens, que constituem motivos para reflexão e prevenção.
A difícil situação italiana, com a expressão intensa de conflitualidade anti-judicial na linguagem e acção políticas, e com a opinião pública e a intelligentsia universitária tomando a parte da magistratura; a recente discussão em França sobre a intervenção de uma comissão parlamentar a propósito de um concreto caso judicial; a ocorrência patológica, mas que poderia ter produzido gravíssimas consequências, tendo como motivo desencadeante a expressão de divergências sobre a compreensão dos limites da separação de poderes entre as Cortes e o Presidente do Tribunal Supremo de Espanha, tudo são exemplos que devem exigir reflexão, com sobriedade e sentido de Estado, no rigor do respeito interinstitucional pela independência externa dos tribunais e dos seus juízes.
Questão também muito recentemente sublinhada por Sandra O’Connor, juíza emérita da Supreme Court, que em conferência proferida na Universidade de Georgetown denunciou, em termos muito vigorosos, as consequências induzidas pela utilização de linguagem política pouco cuidada relativamente ao sistema judicial e a concretas decisões dos tribunais.
Constituindo a independência dos juízes direito fundamental dos cidadãos, temos o dever de estar atentos e identificar os sinais que possam criar a aparência de enfraquecimento ou deslegitimação, sem condicionamento pelo anátema do nefando horror da reacção corporativa.

Cuidar o discurso é, por isso, essencial, porque é imensa a responsabilidade política na recuperação da confiança e na «criação de condições para o reforço da credibilidade e eficiência do sistema de justiça».
Mas importa também desconstruir alguns equívocos perturbadores na linguagem crítica, que, por vezes, porventura por excesso, se qualifica como anti-judicial.
Refiro-me ao “governo dos juízes”, à accountability ou prestação de contas, e ao escrutínio.
A expressão “governo dos juízes”, de que há referências esparsas nos fins do séc. XIX e princípios do séc. XX nos Estados Unidos, entrou na linguagem europeia a partir de 1921 (com a publicação de Edouard Lambert).
Por associação de termos antinómicos, a fórmula foi afectada desde a nascença, sobretudo na vertente europeia, por um sentido claramente negativo, e transformou-se em forma cómoda e desviante usada em ambiência política de discurso crítico anti-judicial.
Porém, na sua origem, e não obstante a promoção histórica do mito, esteve apenas a discussão sobre as virtudes e defeitos do modelo americano de judicial review of legislation, e sobre o modo como em certo contexto histórico de transição de sec. XIX para o sec. XX a Supreme Court exerceu a função de controlo da constitucionalidade das leis.
Situada no contexto, resulta evidente a corrosão semântica e a adjacente manipulação da fórmula, e a sua utilização como arma com efeitos deslegitimadores na discussão crítica sobre a justiça.
É, por isso, hoje, uma fórmula vazia de sentido, e insistir nela sugere, com evidência, a deslocalização e a afasia do discurso.
Os tribunais não exercem funções executivas, e não podem transformar-se, por usurpação, em legislador, porque os juízes estão apenas sujeitos à lei, que é a fonte da sua legitimidade interna.
Mesmo quando, na densificação de princípios normativos, integram, fundamentadamente, espaços de indeterminação ou de incompletude da lei, é porque o legislador, nos seus próprios critérios ou por imperfeita previsão, deixou a integração á margem de apreciação motivada do juiz.
Revela, pois, alguma demagogia falar em “governo dos juízes”.
A exigência de accountability ou prestação de contas está também na ordem do dia.
O princípio não pode ser discutido, e é da essência do sistema democrático que os poderes e as instituições prestem contas.
Não é essa a questão.
Mas a prestação de contas, pelos modos que forem constitucionalmente adequados na engenharia institucional, refere-se à dimensão organizatória e aos resultados de funcionamento enquanto sistema complexo, e não a actos jurisdicionais concretos onde se deve actuar com independência.
A accountability não afecta nem pode afectar a natureza e a função da independência como garantia estatutária, que não constitui, nunca é demais sublinhá-lo, privilégio dos juízes, mas direito fundamental dos cidadãos.
A prestação de contas pelos resultados do funcionamento das instituições, enquanto organizações complexas, não pode ser confundida, por isso, com prestação de contas por actos de julgamento em que se manifesta a independência dos juízes.
Mas na linguagem da exigência, esta delimitação necessária não tem sido, voluntária ou involuntariamente, a regra.
As decisões dos tribunais, nesta perspectiva, apenas podem ser institucionalmente questionadas, como é inerente ao sistema de garantias, no plano interno do processo e no âmbito do direito aos recursos.
Por fim, o escrutínio.
Acusa-se a justiça de estar fechada ao escrutínio.
Esta acusação contém, no entanto, uma forte ambiguidade.
Escrutínio significa possibilidade de verificação de procedimentos e de conhecimento público dos fundamentos dos actos e decisões, e não, como parece estar pressuposto na acusação feita, visibilidade imediata e em tempo real ou intromissão em directo nas acções da justiça.
A publicidade é contrária à inexistência de escrutínio, e a transparência, quando compreendida no rigor das noções, respeita aos procedimentos e não às pessoas.
Situadas as noções no seu exacto espaço conceptual, pode dizer-se que a justiça está submetida ao mais amplo escrutínio democrático.
Escrutínio interno pelo processo e externo também pela publicidade dos actos.
No processo, e no âmbito dos recursos, os actos e decisões podem ser sujeitos a verificações no domínio funcional da hierarquia dos tribunais.
Mas igualmente o processo é um espaço aberto a quem demonstrar interesse legítimo na verificação, e esta possibilidade constitui também escrutínio público.
Pela publicidade da audiência, o escrutínio é imediato, não podendo, contudo, a publicidade ser assimilada a exasperação de acesso ao público por transmissão à distância.
Alguns momentos processuais, transitoriamente sob necessária reserva, não impedem o escrutínio quando a natureza pública abrir o processo.
A justiça é, pois, interna e externamente susceptível de escrutínio democrático, no sentido de público, e escrutínio da maior intensidade entre as instituições da República.
Mas o exercício do escrutínio democrático, neste sentido de escrutínio público, supõe e exige, também, uma forte responsabilidade, e sobretudo rigor intelectual, na missão essencial de mediação informativa e formativa da opinião.
A apresentação não rigorosa, fragmentária, com negligência intelectual, com desconsideração ou descontinuidade de pressupostos de facto essenciais à compreensão das decisões, e por vezes com intolerável manipulação das emoções, não é nem serve o escrutínio democrático, e constitui um desvio grave aos deveres e responsabilidades de quem escrutina para informar.
Em tais circunstâncias, impõe-se, como garantia democrática, que sejam repostos o rigor, ao menos factual, e a exactidão dos pressupostos de análise pelo esclarecimento claro e objectivo, que tem de ser institucional, e não dispensado por intervenções pessoais avulsas ou através de entidades não institucionais.

Desconstruídos os mitos e clarificados os equívocos discursivos que os sustentam, e recolocada a linguagem no rigor imposto pela dimensão política e institucional, poderemos ver um fio de optimismo na recomposição da confiança.
E como corpo da instituição na contingência da nossa passagem pela permanência das instituições, temos o direito de exigir que sejam assumidas responsabilidades que não são nossas.
Mas, também por isso mesmo, temos o exigente dever de assumir as nossas próprias responsabilidades.
Responsabilidades sobretudo na acção, que se deve traduzir em eficiência e qualidade.
Como em nenhuma outra função de soberania a legitimidade do juiz assume uma tão intensa reflexividade pela acção, pois é apenas pela função e pela acção que se reconfigura permanentemente a sua legitimidade material.
A eficiência do sistema de justiça avalia-se, em geral, através de vários critérios que permitam verificar o grau de satisfação dos cidadãos ao serviço de quem as instituições judiciais devem estar.
Podem ser considerados, entre outros, cinco critérios, qualitativos e quantitativos: a garantia de acesso especialmente no que respeita aos cidadãos com insuficientes recursos; a defesa da legalidade no respeito pelo princípio constitucional da igualdade; soluções justas quando não seja possível a composição; a duração razoável dos processos; custos públicos e privados não excessivos.
A complexidade e a carga simbólica da instituição colocam, no entanto, problemas acrescidos na definição de critérios de avaliação da eficiência.
Na eficiência está pressuposto um impacto positivo, que é o efeito da actividade das instituições de justiça, e particularmente dos tribunais, sobre a sociedade. Não pode, porém, ser avaliada por um puro produtivismo materialista, mas pela capacidade de organização para obter os melhores resultados possíveis a partir dos factores existentes e disponíveis.
A eficácia e a qualidade realizam-se, em boa medida, pelo uso racional dos meios e pela intervenção moldada em critérios fundamentais, de rigor, e na consideração de princípios essenciais.
Na percepção, na elaboração e na função constitui um corte na racionalidade lançar sobre a lei a causa de algumas disfunções: uma lei imperfeita pode recompor-se através de boas práticas, mas nenhuma boa lei resistirá a más práticas.
Racionalizar os meios pressupõe, em procedimento lógico, identificar carências.
Identificados, como estão, os fundamentos do vocabulário da crise, nomeadamente no domínio da razoabilidade do tempo de decisão - morosidade da justiça - que tem sido verdadeiramente o modelo de identificação da crise, há que enfrentar permanentemente o problema onde exista em termos reais, encontrando de modo pragmático as soluções sem experimentalismos ou recomposições de modelos não testadas.
A reorganização ou reordenamento tem de responder em tempo às exigências que não são, no essencial, estruturais; mas esta resposta pragmática e de gestão não aconselhará a experimentação de modelos alternativos e não tratados de reconversão organizacional.
No contexto da racionalização de meios, a desjudiciarização tem, é bom não esquecê-lo, limites impostos pela Constituição e pelas vinculações internacionais.
É que o direito ao juiz, ou direito ao tribunal, constitui um direito fundamental dos cidadãos para a decisão de qualquer controvérsia sobre direitos ou obrigações de carácter civil, com a amplitude em que a noção tem sido elaborada, ou para a decisão sobre uma acusação em matéria penal, como noção material e não de nome ou de forma. É deste modo que está inscrito, por exemplo, no artigo 6º, § 1 da CEDH o direito ao tribunal independente e imparcial.
As dimensões da qualidade requerem que, na análise, se parta de uma reflexão sobre as funções da justiça, mas a avaliação da qualidade terá de atender sempre aos limites constitucionalmente impostos pela independência.
O respeito pelo princípio e elementos do processo equitativo, a realização da igualdade, a garantia e afirmação dos direitos fundamentais, e a elaboração de soluções jurisprudenciais que estabeleçam quadros de previsibilidade das decisões para segurança das relações, constituem, a um tempo, pressupostos e resultados que teremos que ter sempre presentes para assegurar a qualidade da justiça, criando confiança nos cidadãos.
Mas este dever, mesmo antes de grandes princípios, concretiza-se em “boas práticas” e nos “pequenos nadas” do quotidiano.
Nos procedimentos há, como efeito, muito ou quase tudo de racionalidade e de exigência de boa gestão e de “boas práticas”, e pouco de intervenção de juízos que relevem já da independência inerente à função de julgamento e decisão.
Regras e procedimentos que devem ser comuns sobre a melhor forma de direcção e condução do processo, ou questões de pura organização do trabalho, ou de rigor e atenção na convocação de pessoas e no respeito pelos tempos previstos no agendamento dos actos, podem perfeitamente ser modeladas e objecto de elaboração de regras que se imponham no exercício quotidiano.
A atenção e o cuidado aos actos do dia a dia, especialmente na relação directa com os cidadãos, constituem também factores relevantes na construção de modos de comunicação aberta imediatamente sentidos, onde a confiança se começa a ganhar ou se perde.
Todas estas responsabilidades são nossas e devemos assumi-las, reconhecendo com toda a humildade intelectual e democrática tudo quanto, aqui e ali, se tenha passado menos bem.

Deixei algumas reflexões breves, e porventura deslocadas, pois pela natureza do acto que nos reúne deveria ter falado antes do Supremo Tribunal de Justiça.
Aceitarei o reparo, mas pela posição do Supremo Tribunal quanto neste lugar possa ser dito interessa a toda a instituição judicial.
O Supremo Tribunal é o órgão superior da hierarquia dos tribunais judiciais – assim vem caracterizado na expressa integração constitucional.
A constitucionalização do Supremo Tribunal de Justiça não significa, porém, na interpretação que faço, a assunção de um qualquer modelo de Supremo Tribunal: a Constituição assumiu e fixou o modelo pré-constitucional, sedimentado de quase dois séculos, de tribunal supremo de plena jurisdição em matéria de direito, nas suas competências complexas de recurso hierárquico e de recurso normativo.
A tradição nacional, a história das instituições, a posição institucional, material e simbólica, no sistema de justiça, conjugam-se para a essencial persistência do modelo como património inalienável da cultura judiciária portuguesa e síntese considerada perfeita dos vários modelos de tribunais supremos.
As exigências de um sistema equilibrado de garantias internas aconselham a que o Supremo Tribunal de Justiça permaneça como órgão superior de plena jurisdição e como órgão judicial de Revision, não sendo transformado, em inversão da sua natureza histórica e constitucional, em órgão com competência reduzida ao chamado recurso normativo.
Se é certo que o espaço funcional da competência para uniformização de jurisprudência é essencial, reduzir o Supremo Tribunal a tribunal de “Grandes Decisões” seria eliminar garantias substanciais de reapreciação dos casos, por um lado, e por outro, deferir, no rigor das coisas, aos tribunais de recurso de 1º grau a função de elaboração e afinamento de referentes jurisprudenciais, com o risco de descontinuidade não facilmente acomodável às imposições de previsibilidade e da consequente certeza e segurança nas relações jurídicas dos cidadãos.
A força de convencimento e de aceitação do precedente, mesmo nos sistemas continentais, é tanto maior se emanar de um Tribunal Supremo prestigiado, e a sedimentação das correntes jurisprudenciais será sempre mais consistente se decorrer da elaboração a partir da pluralidade de casos, do que, como remédio de imposição, pela decisão apenas em recurso normativo de uniformização de jurisprudência.
Nos ajustamentos que a evolução dos tempos e as exigências de optimização pragmática impõem, é necessário, mas é possível, compatibilizar a natureza das competências históricas com as acrescidas solicitações e os limites da elasticidade organizatória do Supremo Tribunal.
As soluções podem ser várias, e têm sido pensadas na elaboração e aplicadas em reformulações recentes em outros sistemas.
Desde o melhor enquadramento dos pressupostos materiais ou processuais objectivos para a admissibilidade dos recursos, passando pela intervenção de mecanismos expeditos de decisão nos casos de manifesta falta de fundamento, até à possibilidade intra-orgâncica de decisão sobre o recebimento do recurso segundo critérios gerais de importância objectiva e subjectiva (o procedimento de leave to appeal), todas são soluções possíveis e testadas em outros lugares, e que podem contribuir para racionalizar a função, sem alterar a natureza simbólica, cultural e histórica do Supremo Tribunal.
E, nesta perspectiva, há que dizer e reafirmar, com a certeza das convicções demonstráveis, que o Supremo Tribunal de Justiça tem exercido, e continuará a exercer, com o rigor nascido da elevada competência e da profunda dedicação dos seus juízes, a função de tribunal supremo e de decisão última sobre relações da vida, mas também de construção e elaboração de referências que se imponham pela força do convencimento e não pelo convencimento da força da posição institucional.
As questões problemáticas da justiça não estão no sistema de recursos, nem aqui se manifestará a urgência de intervenção.
No entanto, em registo funcional, permitam-me que, de modo mais concretizado, refira alguns pontos que poderiam merecer ponderação no plano mais imediato das soluções desejáveis.
- alargamento ao processo civil e laboral de disciplina idêntica à do processo penal sobre a rejeição do recurso por manifesta falta de fundamento;
- clarificação legislativa sobre a inadmissibilidade de recurso da decisão da Relação no incidente de recusa, para obviar, imediatamente, ao desvio da finalidade e abuso com que o incidente tem sido utilizado;
- desobjectivação dos pressupostos no recurso extraordinário para fixação de jurisprudência em processo penal, admitindo a intervenção de critérios de dignidade e relevância da questão suscitada;
-. instituição, por modo informal, de uma conferência de presidentes das secções cíveis para identificação e prevenção de divergências jurisprudenciais que requeiram a utilização do meio previsto no artigo 732º-A do Código de Processo Civil;
-. instituição pela forma que for considerada adequada, no âmbito conjunto das secções criminais, de modos de abordagem e discussão de critérios e práticas de sentencing, vista a função essencial do Supremo Tribunal, e a necessidade de garantir coerência na aplicação das penas, com refracções no princípio da igualdade, e especialmente no estabelecimento de critérios que se afirmem para as instâncias na determinação da pena do concurso de crimes, que possam prevenir “disfunções de aplicação” – como alertou, numa das suas últimas intervenções, o anterior Presidente da República.

Tomei por tempo demais o espaço benevolente da vossa paciência.
Peço que me absolvam da falta.
Em minha defesa invoco a interpretação que faço dos sinais dos tempos, e a afirmação da consciência de que são imperiosas a reversão do estado da opinião e a recomposição pública da confiança, transmitindo por palavras e acções aos cidadãos, em nome de quem a justiça é administrada, o sentimento de que podem confiar nas instituições de justiça da República e nos seus magistrados.
Esta é a urgência do tempo.
Para tanto, todos, mas todos, têm que assumir as responsabilidades que são de cada um, com espírito de serviço e dedicação empenhada, mas também com cuidado e rigor no discurso.
Não poderemos dizer, como Sophia, «que este é o tempo em que os homens renunciam».
Este é antes o tempo em que diremos, com Torga, que «todo o semeador semeia a seara do futuro».

Muito obrigado pela vossa atenção.


António Henriques Gaspar





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