17 julho 2006

 

Brave New World


O Mundo é, cada vez mais, um lugar perigoso. E não apenas por causa dessa vil espécie dos terroristas. Vem isto a propósito daquela que é, porventura, a evolução mais recente da experiência constitucional alemã a propósito dos limites de utilização de tecnologia de vigilância em processo penal. Trata-se do aresto do Tribunal Constitucional Alemão (TCA) de 12 de Abril de 2005 em que aquela alta instância considerou que violaria (no condicional, porque a tese do recorrente – um membro de uma organização terrorista conhecida como a “Célula Anti-imperialista” – veio a ser julgada improcedente) a Lei Fundamental a utilização cumulativa, em investigação criminal, de tecnologia GPS, de escutas telefónicas e de vigilância visual (ou ainda outros meios) na medida em que se pudesse reconduzir a uma hipótese de “vigilância total”, susceptível de possibilitar a construção de um perfil de personalidade do suspeito. Não obstante essa violação (da dignidade humana e da esfera íntima) só possa ser aferida numa apreciação casuística, a tese do TCA é a de que a cumulação de meios invasivos é susceptível de produzir um dano que excede os resultantes da mera soma desses meios. Neste sentido, o Tribunal recomendou, para evitar a “vigilância total”, uma efectiva coordenação entre as autoridades estaduais e federais e entre autoridades de polícia criminal e dos serviços secretos. Recomendou ainda a concretização de directivas para regular os termos em que aquela coordenação se deva efectivar.
As questões que essa decisão suscita são sortidas e interessantes. Desde logo (e não deve esquecer-se que a tecnologia sob escrutino no aresto está, hoje, largamente ultrapassada), remete-nos para a questão da resposta que se deve dar ao uso (mesmo entre nós) corriqueiro do chamado “trace back”, que permite uma muito mais eficaz localização de suspeito através do seu telefone móvel, estratégia que é usada, ao que julgo sem excepção, com escutas telefónicas. Depois, coloca-nos a questão mais difusa (e mais funda) de sabermos quais os limites que devemos assinalar ao uso de tecnologia intrusiva em processo penal. Como é referido num dos estudos para o qual adiante remeterei, é interessante notar uma clivagem de perspectivas, a esse respeito, entre duas instituições tão respeitáveis como o Supremo Tribunal Federal dos E. U. A. e o TCA: para este o legislador deveria erguer limites ao uso de tal maquinaria que acompanhasse ou até ultrapassasse os desenvolvimentos técnicos neste ponto (uma perspectiva, pode dizer-se, “objectiva” da protecção dos direitos individuais); para o primeiro, as expectativas de protecção do cidadão recuam à medida em que eles “não devam esperar que não estão sendo vigiados” (uma perspectiva subjectiva, portanto). Aquela mais sedutora, mas não menos ingénua; esta mais realista, mas não menos perturbante. Por fim, nestas coisas como noutras paralelas, em matéria de reforço dos poderes do Estado perante o cidadão, é preciso não perder de vista o seguinte: sempre que se aumentam molduras penais, sempre que se exponenciam os meios de intrusão do Estado na esfera de cada um, é bem provável que não sejam aqueles em função dos quais foi pensada a musculação da resposta penal a sofrer em medida (ao menos proporcionalmente) maior os rigores e provações que vêm substanciados nessa resposta. A isso – ainda que a propósito do tema de agravamento das penas – já se chamou de “hydraulic effect” ou “thrickle-up effect”. Esse efeito nota-se bem, entre nós, a propósito do crime de tráfico de droga: está descrito de forma tão abrangente que lá cabem não só os Pablo Escobar mas qualquer traficante de vão de escada – todos punidos, em abstracto, com a mesma pena. E nem por isso são conhecidas, entre nós, condenações de gente do jaez de Pablo Escobar & C.ª. Depois, em relação a tal fenómeno (e sobretudo em relação a ele) são levadas a cabo escutas telefónicas a eito. As mesmas que o poder político – irretractável em relação ao regime ultraconservador do direito penal da droga – agora execra.
Comentários à decisão acima referida podem ver-se no recente (e excelente) German Law Journal, aqui e acolá.





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