25 julho 2006
Hipocrisia
Hipocrisia significa "fingimento de qualidades, princípios, ideias ou sentimentos que não se possuem". A sua origem etimológica é, porém, a de desempenho de um papel no teatro.
Vêm estas palavras a propósito de um interessante artigo de Ernesto Garzon Valdés sobre privacidade e publicidade e que discorre sobre as relações sociais e a sua interacção nos vários âmbitos, esferas e papéis por nós desempenhados.
Nele pode ler-se, em traços largos, que são três as esferas em que nos movemos: íntima, privada e pública. A íntima caracteriza-se pela sua total opacidade, a pública pela transparência total e a privada pela relativa transparência ou, noutra perspectiva, a relativa opacidade .
Quando ingressamos no público levamos connosco a couraça da intimidade e o manto da privacidade, o que cria situações ambíguas e até paradoxais. Acertadamente, refere-se que é pouco cortês chamar a atenção para os nossos próprios êxitos ou expressar insegurança pessoal, temor perante a morte ou sentimentos veementes sobre pessoas presentes, excepto num contexto de intimidade, onde é possível tratar estes temas e espraiar-se a seu respeito*. Concluindo-se, assim, que este passo de saída do âmbito do privado para o público se caracteriza por uma redução da veracidade e justamente porque existe uma certa divergência entre o que sustentamos em privado e o que proclamamos em público é que se produz o fenómeno da hipocrisia.
Mas e será isto censurável? Deveremos todos nós impor-nos uma franqueza tal e sinceridade pública, de forma a que o nosso papel público funcione tal qual espelho do nosso privado?
Exemplificando: qual de nós em público se atreve afirmar-se racista, machista, feminista ou anti-semita? Ou quem, a não ser que queira ser indelicado, responde de forma veraz à pergunta "Como tens passado?" E quantos, por vezes, em privado não produziram já afirmações que contradizem aquela moral social, o politicamente correcto e as elementares regras de cortesia.
Pois é. Hipocrisia.
Hipocrisia na medida em que são vários os nossos papéis sociais e são estas as regras do jogo social que permitem o avanço com êxito no público.
Transpondo estas considerações para o judiciário a questão que se impõe é a de em que medida a hipocrisia não deverá ser cultivada. Dito de outra forma, as ideias, valores e pensamentos mais íntimos, podem ou não transparecer nas decisões que se tomam e na forma como se desempenha o papel de "operador judiciário".
Estas palavras não devem, porém, ser entendidas como a defesa da representação do papel de Iago, pois não nos podemos esquecer que este era o antagonista...
* tradução livre do original