03 abril 2007

 

Os Grandes Portugueses

Ainda continuam os debates sobre o resultado do concurso “Os Grandes Portugueses” que a televisão pública, sempre à cata das grandes sumidades em todos os domínios, nomeadamente as nacionais, resolveu patrioticamente empreender. Esse resultado não podia ser mais deprimente do que foi, e mais culpabilizante para quem o quis levar a cabo, se é que os seus promotores têm algum sentimento de pudor e alguma réstia de responsabilidade. Porém, serviu para demonstrar algumas realidades:
1.º - a santa ingenuidade dos nossos programadores televisivos, que terão confiado demasiado na solidez democrática e cultural dos telespectadores portugueses, confundindo-os com os de países como a Inglaterra, onde, em concurso similar, ganhou a figura emblemática de Churchil;
2.º - a falta de inventividade desses programadores, que não sabem fazer outra coisa senão transpor mecanicamente para a nossa televisão aquilo que se faz nas televisões estrangeiras, sem terem em conta a realidade nacional;
3.º A sobrevalorização do espectáculo, do “show” mediático, sobre o conteúdo (in)formativo de qualquer realização televisiva, mesmo que se apresente com cariz cultural;
4.º A sobrevivência de fantasmas, como o de Salazar, que supostamente deviam estar enterrados, mas que, na realidade, nunca foram devidamente “exorcizados” e cujo recalcamento acaba por os trazer de volta, em todo o seu negro esplendor, como se viu a propósito das peripécias que se conhecem com a inclusão ou não do nome do ditador na lista dos “grandes portugueses”;
5.º A ausência, segundo penso, de um estudo crítico e criterioso da nossa História recente ao nível da formação escolar, logo a partir do ensino básico, e a ausência de divulgação do que foi o Estado Novo em programas (in)formativos de carácter geral, transmitidos no chamado “horário nobre” da televisão e que, de ordinário, só é “nobre” na exacta e inversa proporção da sua confrangedora indigência.

É claro que o resultado obtido no citado programa não é para ser encarado “literalmente”, isto é, como índice de que os portugueses, de uma forma geral, encaram Salazar como “o maior português de sempre”. As razões para esse entendimento têm sido avançadas por muitos e variados analistas, desde o facto de se tratar de um simples concurso televisivo, até à oportunidade encontrada por minorias activas de ambos os extremos para levarem a cabo as suas campanhas de promoção e, assim, condicionarem, como condicionaram, os resultados, passando pelo facto de muita gente que “votou” ter sobretudo querido manifestar, por uma espécie de “espírito de contradição”, o seu desagrado em relação à situação que presentemente se vive no país. De resto, se esses “votos” traduzissem uma real tendência do povo português, não se explicariam os resultados eleitorais, que têm incidido sobretudo nos partidos do chamado “bloco central”, nem as sondagens, que, apesar do descontentamento dos portugueses, não manifestam nenhuma inclinação especial para os extremismos, sobretudo o de extrema direita.
De qualquer forma, já vai fazendo corpo a ideia de que, no salazarismo, nem tudo foi mau e de que houve aspectos positivos e negativos, sendo que alguns responsáveis, como eu ouvi num debate da Antena 1, a seguir ao concurso, vão ao ponto de dizer que os aspectos positivos superaram os negativos. Ora, só a ideia de que “nem tudo foi mau” já é arrepiante, porque há uma diferença abissal entre o fascismo, mesmo como nós o tivemos, sem as características de violência e de grandes movimentos de massas alienadas à volta do “duce”, como outros fascismos, mas fascismo apesar de tudo, e a democracia, e essa diferença, de tal modo abissal, não se compadece com critérios idiotas de “positivo e negativo”.
Ora, a televisão pública, no seu canhestro concurso, acabou por (não intencionalmente, creio) fazer propaganda ao salazarismo. Mas também acabou por revelar, sem querer, a nossa triste realidade e os nossos fantasmas persistentes. Talvez seja altura, por isso, de ela, colhendo as lições que se impõem, se redimir e, pelo que lhe toca, contribuir de uma forma mais séria e empenhada para a (in)formação dos telespectadores portugueses, isto é, cumprir, ao fim e ao cabo, a sua missão de serviço público.
Por mim, em época quaresmal, seria a penitência que lhe daria, se tivesse para isso o beneplácito do Altíssimo.





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