30 março 2007

 

Um discurso contra o messianismo penal no combate à corrupção



Intervenção do Vice-Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, Cons. António Henriques Gaspar, na sessão de abertura do colóquio "Combate à Corrupção, Prioridade da Democracia", na AR, em 26 de Março


O tema da corrupção está, hoje, no centro do discurso político, e por pressuposto ou refracção, na agenda da comunicação que se assume como mediadora das projecções de cidadania.
O fenómeno da corrupção, muito exposto nas representações sociais, ou, porventura, com maior rigor, na apresentação externa das representações sociais, está, porém, presente em todas as latitudes em diversas modalidades e graus de intensidade.
A corrupção é hoje apresentada pela opinião e pressentida como um obstáculo principal ao desenvolvimento económico e como uma ameaça real para a qualidade da democracia.
O discurso político e as percepções sobre a corrupção parecem revelar mais, no essencial, a emergência da imposição social e democrática de rigor nos costumes e na moral política e administrativa, do que verdadeiramente uma agravação do fenómeno ou das suas implicações como problema.
A actualidade e o lugar central do discurso, bem como a generalidade da proclamação que traz frequentemente coligada, não podem nem devem, porém, ofuscar ou fazer esquecer a necessidade de compreensão dos mecanismos da corrupção, a densidade do problema, a tipologia dos agentes implicados, as condições e os ambientes de emergência e as consequências associadas.
A primeira das referências para a compreensão do fenómeno está, no entanto, na delimitação das noções e na questão das definições, em que a semântica se situa na intersecção da história, da sociologia, da antropologia política e do direito.
A aparente homogeneidade que se surpreende na utilização corrente da noção cobre, com efeito, uma acentuada diversidade de representações que andam associadas. A projecção sociológica e antropológica e o conteúdo social das representações sobre a «nebulosa da corrupção» ou o «complexo da corrupção» vão frequentemente para além dos formatos jurídicos das categorias do fenómeno.
As expressões da comunicação, recorrentemente enunciadas, reflectem a dificuldade das definições, que partem de modelos de abordagem diversos e com perímetros de delimitação fluidos.
O recentramento das noções e o rigor das definições constitui um pressuposto essencial da lisibilidade do discurso sobre a corrupção, porque é necessário saber do que falamos quando falamos de corrupção.


Através do vocábulo acusador são estigmatizados diversos tipos de comportamentos não lícitos ou ilícitos ou como tal considerados nas expressões externas das representações sociais.
O termo “corrupção” tem sido, não poucas vezes, vítima de ambiguidade no senso comum, com a utilização generalizada de uma noção genérica e cultural que pretende englobar todas as formas de abuso ou de mau uso de uma função pública ou privada.
São diversos os ambientes em que se revelam práticas genericamente identificadas como corrupção.
Segundo algumas análises, a existência ou a exposição das práticas de corrupção anda associada à emergência de contextos de crise, de alterações económicas ou políticas, e a momentos em que os critérios e os valores comuns parecem conhecer reavaliações significativas.
Em contextos de crise e de reavaliação de valores, a erosão das virtudes republicanas banaliza as reacções sociais ao fenómeno e a importância das percepções em ambiente de relativismo histórico e cultural.
Por isso, a ambiguidade que, não poucas vezes, parece rodear tanto os princípios como as práticas de controlo, impõe exigências de rigor nas grelhas de leitura e no reordenamento dos critérios que evitem a anomia nas percepções e nas reacções; a resposta ao problema exigirá mais resultados do que retórica.
Mas no labirinto das múltiplas definições e das diversas práticas que pode abranger, a corrupção continua matéria controversa e por vezes dificilmente enquadrada tanto sociológica como cientificamente.
Da ideia clássica de degradação das instituições, à denúncia de todas as formas de abuso de poder e de estratégias de influência, as acepções do termo são múltiplas e cada cultura privilegia, por vezes, alguma das dimensões produzindo o seu próprio modo de eufemização.
A corrupção como metáfora de denúncia dos abusos tem um problema de definição recorrente desde a filosofia clássica, associando-se a degenerescência das instituições públicas e à desintegração dos princípios que constituem o fundamento do sistema político.
O domínio heterogéneo das concepções gera incerteza e descontinuidade nas qualificações aplicáveis, e o espaço difuso das generalidades não é propício à identificação dos problemas, à procura de estratégias de intervenção e à instituição de mecanismos de recomposição.

Está estudado que cada sistema político cria e combina estruturas de oportunidade próprias para a corrupção. A circularidade de posições de poder gera oportunidades políticas e administrativas e os sistemas de alianças informais diluem não poucas vezes os valores de referência.
Na perspectiva de enfrentamento e domínio do fenómeno pelos mecanismos institucionais, a delimitação a que há que proceder não pode ser sociológica, mas tem que ser essencialmente jurídica.
A hierarquia de valores e interesses sociais tocados tem de ser medida e construída pelo direito numa perspectiva de normatividade.
Há, por isso, que centrar o problema mais do que nas percepções, qualificações e julgamento social das ofensas à probidade pública e à honestidade, na sua específica dimensão e perspectiva jurídica, especialmente pelas delimitações de conteúdo penal.
O modelo jurídico das definições e a identificação das categorias pelo rigor das normas e dos conteúdos materiais que efectivamente lhes correspondem, constituem os quadros de referência na análise e na escolha das estratégias e na alocação dos meios adequados para enfrentar o problema na cultura de legitimidade republicana.
O discurso e o registo comunicacional das generalizações pode ser sedutor pela redução, mas acaba por se volver contra o sistema de controlo formal, já que as respostas que pode dar, dependentes do quadro traçado pelas categorias penais, podem ficar aquém da expectativa do sentido comum condicionado por conceitos gerais nem sempre com exacta correspondência penal.
As Convenções Internacionais e as leis penais constituem a referência jurídica e é por este eixo que deve passar a definição operativa.

A compreensão do fenómeno exige que sejam identificados os espaços de análise que permitam organizar os modelos de resposta.
A começar pela apreensão da medida e do volume – isto é, da amplitude sentida ou pressentida do fenómeno. As estratégias e os meios- e porque não, o discurso – devem ser proporcionados á dimensão real, ou à dimensão realmente conhecida e não apenas suposta do problema.
A dificuldade de medição ou de estimativa da corrupção acrescenta complexidade na identificação das causas e das consequências do fenómeno.
As estimativas resultam, por regra, de instrumentos de análise empíricos, produto do tratamento de microrealidades fragmentadas, constituindo apenas índices que, por não revelarem mais de que uma parte, não podem ser tomados pelo todo.
Estudos e análises desenham, com efeito, vários ambientes, graus, níveis e formas – corrupção «negra», «cinzenta» e branca» - com diferentes repercussões sociais e consequências, e que aconselham, certamente, diversos modos de abordagem e a adequação e proporcionalidade dos modelos de resposta.

No modo de abordagem jurídica, o complexo da corrupção pode acolher vários tipos de crimes.
Além da corrupção como nome próprio de crime, vêm associados na «nebulosa da corrupção», o peculato, a participação económica em negócio, o abuso de poder, a concussão, o favorecimento pessoal ou o tráfico de influência, que têm em comum o uso desviante das funções para fins desligados do interesse público, mas, cada um, com perspectivas, elementos e modos de abordagem diversos.
No estudo, percepção e abordagem dos modos, das formas e dos instrumentos de combate deverá estar suposta a complexidade das formulações, reduzindo-a, porém, pela identificação dos objectivos próprios de cada dimensão sectorial.

Enfrentar o fenómeno exige estratégias culturais, de prevenção e a intervenção de instrumentos formais de controlo.
Na base dos comportamentos que estão definidos como crimes no complexo associado à corrupção está a violação de princípios da ética republicana e do que constitui o mais fundamental dos deveres de serviço público.
A educação e a formação para a ética desde a escola, como exigência indeclinável de cidadania, as formações profissionais e a densificação dos valores culturais específicos dos agentes públicos serão aqui essenciais.
Nas formulações de prevenção devem ser certamente adensados modelos de prevenção primária e de prevenção situacional adaptados à especificidade e às expressões de conformação do fenómeno.
Prevenção primária, pela instituição de contra-medidas que contribuam para eliminar, bloquear ou enfraquecer os factores de emergência.
A construção de espaços com menor amplitude de poderes discricionários e com mais fortes vinculações naqueles campos em que a decisão de excepção vem prevalecendo frequentemente sobre decisões estritamente vinculadas; melhor regulação de procedimentos de decisão, eliminando factores intermédios e não estritamente essenciais propícios a compensações ou a manipulação de informação técnica; atenção particular à construção dos novos modelos de parcerias público-privadas onde pode residir alguma ambiguidade sobre o limite material do interesse público; o risco dos modelos voláteis de transição funcional do sector público para o privado, com espaços de indefinição do sentido material dos vínculos; ou mesmo, em plano que anda arredado do discurso, regulações adequadas que dificultem a emersão de situações de nepotismo directo ou cruzado, podem constituir critérios operativos em função preventiva primária.
Como também, na prevenção situacional, a utilização sistémica, integrada e cruzada dos resultados e verificações dos diversos serviços de inspecção e auditorias, seja de legalidade administrativa, de comprovação do mérito ou de natureza financeira.
Mas, como pressuposto essencial de rigor, evitando a erosão que pode perturbar o bom caminho: não usar a prevenção como espectáculo, nem fazer o espectáculo da prevenção.
Em outra perspectiva, o sucesso do combate através do direito penal depende do afinamento dos modelos de investigação e da utilização adequada dos instrumentos processuais disponíveis, na conjugação de proactividade entre os resultados da prevenção e as competências das instâncias formais de controlo.
Mas tudo enquadrado pela dogmática dos modelos, sem a proclamação messiânica das redenções penais.
Será, porventura, útil recordar que, desde há mais de uma década (1994 e em 2002), o legislador instituiu possibilidades acrescidas, com o desenho de meios especiais de investigação, que têm de ser utilizados e explorados até ao limite das possibilidades que oferecem, antes de serem reclamados outros meios que podem não superar testes difíceis no crivo de valorações dos direitos fundamentais.
É certo que, no ambiente de cumplicidades e silêncios onde os comportamentos emergem, com códigos de linguagem e de acção e com estratégias de dissimulação e alguns jogos de máscaras, a questão relativa à investigação e à prova assume especial complexidade.
Por isso, tanto na decisão sobre a acusação como no julgamento sobre os factos, os magistrados têm de saber interpretar e compreender o ambiente sobre o qual decidem, avaliando a prova pelos feixes de indícios possíveis e concordantes lidos na especificidade dos condicionamentos da acção: as regras da experiência têm de ser interpretadas pelo filtro poliédrico da multiplicidade dos códigos comportamentais.
Utilizados os meios de que a lei actualmente dispõe até ao limite das possibilidades que permitem, algum espaço de risco de não sucesso fará certamente parte dos equilíbrios da sociedade democrática, que impõe a si mesma defender-se no respeito por valores inalienáveis.
Temos aqui o dever da inteligência. As dificuldades devem ser superadas pela competência e exigência, evitando fugas em frente como, por exemplo, a invenção de novos crimes de difícil leitura perante os pressupostos essenciais sedimentados na dogmática penal ao longo de dois séculos.

Não será inútil alertar para os riscos de utilização de categorias penais simbólicas, muitas vezes com finalidade que aparenta ser apenas de «simbolismo ineficientista».
O simbolismo pode perturbar a clareza e criar ruído quando se quebre o pacto genético geralmente amarrado ao simbolismo e se pretenda tornar efectivo o que seria suposto ser simbólico.
Bastará referir alguns tipos penais com um sentido que se limita em muito ao valor simbólico, como algumas formas de peculato de uso, em que a carga semântica intensamente negativa não tem correspondência com o real conteúdo valorativo, ou a extensão típica fortemente excessiva do tráfico de influência, que anda paredes meias com actividades lícitas organizadas, e onde simbolicamente tudo parece caber e efectivamente não muito parece entrar.

Terei abusado por demais da benevolência da vossa atenção.
Com a percepção de que posso ter entrado por caminhos que não serão meus, invadindo competências alheias.
Não será, porém, mais do que a expressão do sentimento que me transmite a organização deste Colóquio Internacional cujos trabalhos se iniciam, e que devemos vivamente saudar e reconhecidamente agradecer a Vossa Excelência, Senhor Presidente da Assembleia da República.
A criteriosa escolha dos temas e as elevadíssimas qualificações dos intervenientes garantem, estou certo, a excelente qualidade das análises e das conclusões que serão alcançadas e de cujo rigor estarão beneficiárias as instituições e a democracia.
Nesta tarefa, os cidadãos reclamam, o serviço público impõe e a República exige o melhor de todos.
Porque, como enuncia o tema do Colóquio, o combate à corrupção constitui uma prioridade da democracia.

António Henriques Gaspar





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