14 abril 2007

 

Os pés de barro

Não vi a entrevista do primeiro-ministro à televisão, porque, estando em Lisboa, onde passo algum do meu tempo por via da função que desempenho, preferi deslocar-me ao Teatro S. Luís, à hora em que ela estava a decorrer, para ver a peça da Cornucópia “Júlio César”, de Shakspeare (é uma pedanteria cultural, eu sei). Da entrevista, ouvi inúmeros comentários logo no dia seguinte, quase todos no sentido de que ela pouco ou nada adiantou em relação ao problema fundamental, mas encapotado, que nela estava em causa e que era, como se sabe, a polémica sobre a situação académica de Sócrates. Alguns dos comentários revelavam também decepção (se assim se lhe pode chamar) em relação ao desempenho dos jornalistas, tendo-se deixado subordinar (segundo tais comentários) à estratégia do entrevistado, que era a de falar o mais possível, para não deixar campo a questões incómodas. Alguns dos comentários que li na imprensa vão no mesmo sentido, sobretudo no que diz respeito a tudo ter ficado na mesma quanto ao esclarecimento do imbróglio da licenciatura. Mas nada disso, a ser verdade, constitui surpresa. A situação é o exposto, como costuma dizer-se, e o exposto é, de facto, um imbróglio difícil de desenredar.
Alguns lamentam que uma questão secundária, como será pressupostamente esta, constitua o crivo pelo qual se afere a actividade de um governo, e uma parte desses que assim entendem acham que as democracias modernas são mesmo assim: estão sujeitas a estes percalços, sendo esse um facto que há que aceitar (ver a crónica de Vicente Jorge Silva no “Diário de Notícias” de 11 do corrente).
Porém, não entendo que seja assim uma questão secundária. E não entendo, porque não é o facto de o primeiro-ministro ser ou não licenciado que está em causa. Aliás, surpreende-me como tanta gente responsável deste país, e gente rotulada de esquerda, se preocupa tanto com a licenciatura e com os títulos académicos, a ponto de muitos que se promoveram pela via politica não descansarem enquanto não arranjam um título desses para o seu currículo, como se isso constituísse o título de nobreza que lhes faltasse para o brilho das suas carreiras ter mais brilho, ou então será para conseguirem outros objectivos. Faz-me lembrar os baronatos e as comendas do tempo de Camilo, que o escritor de S. Miguel de Ceide tanto satirizou, a ponto de ter dedicado um dos seus livros – “Cenas da Foz” – “à espécie humana, inclusive os barões”. Um tal afã à volta dos títulos académicos, aliado à qualidade duvidosa de alguns estabelecimentos de ensino, gera, por vezes, as mais legítimas dúvidas acerca da forma como eles são conseguidos.
Ora, no caso do primeiro-ministro, o que está em causa é todo um conjunto de circunstâncias que, tendo começado por ser investigadas nos “blogues”, vieram a lume – circunstâncias apoiadas em factos devidamente documentados – que tornam todo o processo da sua licenciatura pouco transparente. E aí é que bate o ponto, sendo certo que o primeiro-ministro apresentou, desde o primeiro momento, uma imagem de líder forte que pretendia pôr tudo em “pratos limpos” e meter toda a gente na ordem, sobretudo as chamadas “corporações”, com as suas opacidades. Chegou mesmo a ser arrogante na forma como tratou algumas dessas corporações, a pretexto de privilégios injustificados.
Um primeiro-ministro que se reclama de tanto rigor, que elege como norma de actuação uma ética de intransigência, de saneamento da vida pública, de corajoso enfrentamento de todos os privilégios, embora se saiba que esses “privilégios” são sobretudo os de classes médias ligadas aos serviços da Administração Pública, um primeiro-ministro que se apresenta a si próprio como exemplo a seguir, forçosamente que tem de ser julgado pelo seu carácter, porque esse carácter adquire, em tal contexto, um valor político.
Se, como diz António Barreto, este julgamento baseado em motivos morais ou de carácter é um triste sinal dos tempos, embora um sinal que tem de ser levado à conta de uma realidade incontornável, também se não pode esquecer que Sócrates talvez seja, ele próprio, um produto dessa mesma realidade, um líder de outra feição – uma feição em muitos aspectos, digamos, polémica - com a sua obsessão de imagem, a sua preocupação de tudo controlar, dentro e fora do partido, de aparecer como líder incontestado e manifestando agastamento por tudo o que o contraria.
Ora, este imbróglio da sua licenciatura veio, quer se queira, quer não, mostrar os imensos pés de barro em que assenta toda essa construção de imagem e vibrar um golpe mortal nesse estilo (chamemos-lhe assim) de fazer política.





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