27 dezembro 2007

 

Carta a um amigo

Meu Caro Maia Costa:
Quem te disse a ti que, por ser Natal, ninguém leva a mal a tua libérrima veia humorística? Nado e criado na chamada “civilização europeia ocidental”, podes “brincar”, se assim se pode dizer, com as figuras sagradas do cristianismo e não só, aventando que o pai biológico de Jesus Cristo foi o Espírito Santo, S. José, o pai afectivo e a Virgem Maria, uma mãe de aluguer. Estou a lembrar-me, como tu, inevitavelmente, do poema de Fernando Pessoa /Alberto Caeiro, esse longo poema de “O Guardador de Rebanhos”, onde se diz da génese de Jesus Cristo: “O seu pai era duas pessoas - / Um velho chamado José, que era carpinteiro/ E que não era pai dele;/ E o outro pai era uma pomba estúpida/ A única pomba feia do mundo/ Porque não era do mundo nem era pomba./ E a sua mãe não tinha amado antes de o ter./ Não era mulher: era uma mala/ Em que ele tinha vindo do céu (…)” Podes enfileirar nessa tradição cultural e extraíres conclusões humorísticas para a situação presente, em que tanto se tem enaltecido – e bem - os direitos naturais dos pais afectivos sobre os frios direitos legais dos pais biológicos. Lembra-te, porém, do caso das caricaturas de Maomé. A barulheira cheia de ira divina que elas provocaram no mundo islâmico! E também na Europa, repleta de tradições de crítica à Religião, aos dignitários da Igreja, às hierarquias celestes, enfim às figuras do sagrado – uma crítica que, desembocando muitas vezes abertamente na blasfémia, já ninguém parecia ousar pôr em causa – houve muitas vozes contra as referidas caricaturas do Profeta, não só solidarizando-se com as “ofensas” aos povos islâmicos, como também predispondo-se para cercear a liberdade de expressão, de uma forma geral, no campo religioso, tornando intangível à crítica aquilo que constituiria o reduto do sagrado em qualquer religião.
Ora, não me admira nada que, um dia qualquer, neste mundo em que as intolerâncias progridem a vários níveis, apareça a União Europeia a dizer que é de toda a conveniência dos Estados adoptarem leis em que seja proibido atacar as figuras sagradas de qualquer religião e os pontos de fé das várias confissões religiosas. Como no caso do tabaco, salvas as devidas proporções. Fumo, daqui para diante, só o das chaminés das fábricas, dos escapes dos veículos motorizados e, evidentemente, do incenso. Já pensaste em que, se acenderes um charuto poucos minutos antes do fim do ano, vais ter que o apagar exactamente ao bater da última badalada da meia-noite? Se o mantiveres aceso, podes ter à perna a polícia, não te esqueças. Por isso, meu caro amigo, vai escrevendo livremente sobre S. José, a Virgem e o Menino, enquanto te não levarem, deveras, isso a mal.
Um cordial abraço e votos de Bom Ano.





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