10 dezembro 2007

 

Ainda a negação


Há cerca de dois meses disse aqui, a propósito da opinião expressa por um conhecido articulista sobre os, assim graficamente chamados, “crimes de ódio”, que por terras de Espanha o bloco normativo penal anti-xenófobo era susceptível de gerar, porventura mais do que em outras latitudes, algumas preocupações pelo seu desenho radicalmente anti-liberal. Uma das razões que me levou a alvitrar daquele jeito é o modo como naquele país se incriminou a negação de certos crimes contra a comunidade internacional (v. g., genocídio) em termos inclusivamente mais abertos do que sucede na Alemanha, pais onde a incriminação correspondente (mesmo a da, assim denominada, Auschwitzlüge “simples”) exige, para a respectiva relevância, que seja adequada em concreto para perturbar a paz pública. Ou seja, o legislador espanhol foi, nesta matéria (como em geral nas que respeitam ao direito penal anti-xenófobo) mais papista do que o próprio Papa. Se na Alemanha, na Áustria e mesmo em França (não esqueçamos Vichy) incriminações como aquela se mostram, ao menos, à luz da História, compreensíveis, já em Espanha, como de resto a esmagadora maioria da doutrina penal daquele país sempre sustentou, a incriminação do negacionismo nos moldes que consagrados no respectivo CP (artigo 607.º/2: “La difusion por qualquer medio de ideias o doctrinas que nieguen o justifiquem los delitos tipificados en el apartado anterior de este artículo [genocídio], o pretendan la rehabilitación de regímenes o instituiciones que amparem práticas generadoras de los mismos, se castigará com la pena de prisión de uno a dos años.”), a mais de conflituar gravemente com a liberdade de expressão e de menoscabar o princípio da legalidade penal, na vertente da determinação da matéria proibida, ela mostra-se pura e simplesmente desnecessária (a não ser, é claro, que se pretenda justificá-la à luz dos desmandos dos Reis Católicos) e, como tal, ilegítima. É, de resto, um sintoma de uma deriva de um direito penal “do facto” para um direito penal “de autor”, isto é, um direito penal que persegue as pessoas mais por aquilo que são (ainda que não raro, efectivamente, sejam coisa muito ruim, como é o caso dos cabeças-rapadas, por fora e por dentro) e não tanto pelos danos que resultam daquilo que fazem.

Dito isto, e nem por acaso, o Tribunal Constitucional de Espanha, em 7 de Novembro de 2007, no caso Varela, também conhecido como o caso da Libreria Europa, que começou com uma decisão do 3.º Juzgado Penal de Barcelona, considerou desconforme com a Constituição espanhola a norma acima transcrita na parte em que incrimina a mera negação do genocídio, concluindo que na parte em que a incriminação recai sobre a justificação de crimes daquele jaez não fere a Lei Fundamental (a constitucionalidade do segundo segmento da norma não foi questionada). Votaram pela maioria 8 juízes e de vencido 4, todos pugnando pela declaração de constitucionalidade de ambos os comportamentos (negação e justificação). Uma primeira observação é a distinta fundamentação do TC Espanhol e do TC Alemão, que chamado a pronunciar-se, em 1994, sobre um caso de negacionismo, concluiu que a negação de um facto como o Holocausto (ao contrário da tendência verificável nos demais países, na Alemanha a negação penalmente relevante é apenas a de crimes cometidos sob o regime nacional-socialista) não está protegida pela liberdade de expressão, na medida em que não contribui para a formação de opinião constitucionalmente protegida. Alguma doutrina deste país, parece, por outro lado, ao contrário do TC espanhol, mais preocupada com a incriminação de uma opinião (a justificação, do direito espanhol), em termos de ferir o direito à liberdade de expressão, do que com a negação de um facto ainda que quase (há sempre os negacionistas…) consensual.

Seja como for, vale a pena ler a decisão, embora em meu modo de ver seja algo artificial a distinção que o Tribunal faz entre a negação e a justificação do genocídio, excluindo a última da protecção do artigo 20.º da Constituição espanhola. E fá-lo, ainda assim, em termos de reinterpretar a norma (de modo a “salvá-la” do juízo de inconstitucionalidade) de modo a reconduzi-la, no fim de contas, a um crime de provocação (ainda que “indirecta”, nas palavras do acórdão) ao ódio racial, hoc sensu, xenófobo, que o próprio CP espanhol já pune no seu artigo 510.º De resto, uma lição do citado acórdão que é, para nós, portugueses, de considerar é a de que, por rectas contas, a interpretação conforme do TC espanhol (cf. ponto 9 da fundamentação) reconduz o preceito em causa, mais coisa menos coisa, à formulação que o nosso legislador deu ao artigo 240.º do nosso CP – legislador que, precisamente, prudente quanto possível, não quis desvincular a negação dos crimes de guerra ou contra a paz e a humanidade do encorajamento violento à discriminação de minorias.

A Espanha – a despeito da peremptória alegação em contrário do relator do acórdão (cf. ponto 4) – caminha a passos lagos para uma "democracia militante", para uma democracia que mais do que se impor ao respeito pretende coagir os cidadãos a uma virtuosa adesão à ordem legal e constitucional. Se dúvida houvesse, cito apenas a relativamente recente lei que regula a dissolução de partidos políticos anti-democráticos e que trata, para efeitos dessa dissolução, a recusa de condenação de atentados terroristas como um apoio ao terrorismo (!). Incriminações como a do negacionismo "puro e simples" devem ser lidas, segundo creio, no contexto de uma tal forma de ver a democracia. Para mim, julgo que incriminações como a do nosso artigo 240.º, postando-se no limite do criminalmente legítimo, são um modo razoável de encontrar uma via per mezzo entre a fé inabalável de Thomas Jefferson na Razão para combater os inimigos da Constituição e a denegação da liberdade aos inimigos da liberdade de Saint-Just. Entre a ingenuidade e o autoritarismo há sempre um caminho.
Com correcções em 11.12.2007





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