17 novembro 2008

 

Da escassez induzida à construção de um sistema de saúde privado

A escassez de um bem ou serviço é o grande impulsionador do investimento privado com vista à obtenção de lucro. Havendo escassez, há uma oportunidade; não havendo escassez, não há oportunidade. Pelo menos era assim. Mas na verdade já não o é. O sistema capitalista arranjou forma de dar a volta à escassez da escassez. Quando esta não existe, a ideia é provocá-la, e assim criar uma oportunidade de negócio.
(…) Imaginemos uma rua de uma cidade, com lugares de estacionamento para automóveis em número suficiente para satisfazer a procura. O nosso objectivo é construir um parque de estacionamento pago. Uma vez que existe estacionamento na rua, grátis, e suficiente para a procura, não há qualquer viabilidade de negócio. Falso. Proibimos o estacionamento na rua. Gera-se escassez, e com esta surge a oportunidade de construção de um parque pago. Uma espécie de escassez induzida.
Quando olho para os recentes desenvolvimentos no nosso Sistema Nacional de Saúde, vejo um encaixe perfeito neste conceito de escassez induzida. Ao longo do tempo, têm-se anunciado diversos encerramentos de urgências e de outros serviços de saúde, e introduziu-se um novo sistema de prioritarização de atendimento nas unidades existentes, envolvendo a atribuição de pulseiras coloridas.Segundo o Governo, não há qualquer viabilidade económica ou social na manutenção do anterior sistema, ou seja, o número de utentes não é suficiente para manter tantos hospitais e centros de saúde abertos. Os recursos são abundantes. Há então que reduzi-los.
Ao mesmo tempo introduz-se um sistema de pulseiras coloridas - o dito Sistema de Manchester. O utente chega às urgências e passa por um processo de triagem, sendo-lhe atribuída uma pulseira com uma cor referente à gravidade do problema que o levou lá. Assim, o utente é atendido, em média: de imediato, tendo pulseira vermelha; em 10 minutos, com pulseira laranja; em 60 minutos, no caso da cor amarela; em 120 minutos, com pulseira verde; e em 240 minutos, para os mais azarentos (ou sortudos), com pulseira azul. Não me cabe discutir a qualidade de tal sistema, mas sim a parte económica subjacente. Se existe um sistema de prioritarização, é porque há escassez no serviço de atendimento. Não faria qualquer sentido implantar um sistema de Manchester, Londres, ou de outro sítio qualquer, caso existisse um número de médicos e de recursos suficientes. O sistema de Manchester não é mais que um moderno e sofisticado sistema de senhas de atendimento (com prioridades), generalizadamente aplicado em serviços públicos (por falta de pessoal). Por si mesmo, este sistema dificulta o acesso aos serviços de saúde, e por conseguinte gera escassez.
As escolhas do Governo têm um resultado evidente. As pessoas recorrem menos ao Serviço Nacional de Saúde, ou porque ele simplesmente não existe no local da sua residência, ou porque sabem que se não estiverem a morrer vão ter um tempo de espera elevado. As duas medidas em conjunto induzem escassez, criando uma nova oportunidade para os privados.Agora vejamos o resultado destas medidas governamentais.Entre 2006 e 2009 abriram, foram remodelados, ou estão em curso ou planeamento, 22 hospitais privados, representando um aumento de camas disponíveis de 2000 para 5000. Como factos relevantes, temos que:
· a maioria abre a norte do Mondego, precisamente na região onde mais foram encerrados serviços públicos de saúde;
· abre um hospital privado em Mirandela, local bastante fustigado por encerramentos públicos;
· abre uma outra unidade privada em Chaves, com serviço de maternidade, num local onde a unidade de partos pública foi encerrada;
· em Santo Tirso é também construído um hospital privado, local onde fecham a maternidade e urgência nocturna no serviço público;
· abre em Braga um hospital privado, num distrito que tem sido muito afectado por encerramentos de diversas unidades em Barcelos, Famalicão, entre outros
· estão projectados hospitais para Bragança e Vila Real, locais que têm agora um fluxo muito maior de doentes devido ao fecho de diversas unidades públicas em ambos os distritos.
Para além disso, em 2007, as seguradoras viram as suas receitas com seguros de saúde crescer cerca de 8%, sendo agora de aproximadamente 23%, a percentagem da população, com idade igual ou superior a 15 anos, com seguro de saúde.
O Governo tem estado a trabalhar para o sector privado. Com os diversos encerramentos e a introdução de um sistema de espera, o Governo dificultou o acesso à saúde, e provocou uma escassez induzida, que é exactamente o que faltava aos privados para investir no sector. O número de hospitais privados abertos e a abrir entre 2006 e 2009, mostra claramente a oportunidade gerada. Até a Caixa Geral de Depósitos já percebeu a oportunidade existente, e por isso, é accionista do grupo de hospitais privados HPP (o Estado desmantela o serviço publico de saúde, e depois, através da CGD, investe no privado). E os locais escolhidos para a abertura destas novas unidades não são nenhuma coincidência. O investimento privado canaliza-se para as oportunidades. A abertura de unidades privadas em locais fustigados pelo fecho público é um sinal claro de que estes serviços de saúde eram necessários. Na realidade o que está aqui a acontecer, não é uma criação de mais valia ou de riqueza. É, pelo menos parcialmente, uma substituição, a criação de algo por destruição do que existia. A Saúde muda de mãos, com um resultado final bem evidente: quem não tem dinheiro, não tem seguro, e por conseguinte terá que continuar a sujeitar-se ao sistema de Manchester, e a fazer mais de 100 Km até à unidade de cuidados pública; quem tem dinheiro, gasta um extra num seguro para ter acesso ao sistema privado, e paga ao Estado por um serviço que deixa de usufruir.

Filipe Costa





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