22 abril 2009

 

Jornalismo de investigação e figuras públicas

Tenho andado à procura de artigos meus sobre justiça e comunicação social, a fim de os reunir num livro. Por sinal, encontrei este, que publico a seguir neste blogue, por me parecer que conserva uma renovada actualidade. Veja-se o «Expresso» de sábado passado e o espaço que dedica ao tema.
O meu artigo, publicado no Jornal de Notícias, já é de 1998.
Ei-lo, para abreviar:


Jornalismo de investigação
Uma das facetas do chamado jornalismo de investigação é denunciar irregularidades, ilegalidades e mesmo factos criminosos cometidos por pessoas que ocupam determinados cargos a nível dos órgãos de soberania, do aparelho burocrático do Estado, dos órgãos autárquicos e dos diversos serviços públicos. Essa denúncia, como é bom de ver, reveste quase sempre a forma de imputação de factos a certas personalidades, ditas "figuras públicas", que se traduzem em situações que abalam a sua reputação, que atingem a sua honra e consideração, justamente porque se as acusa de torpedearem a lei, de postergarem princípios por onde se pauta a rectidão do seu múnus, ou mesmo de terem praticado actos particularmente condenáveis, como sejam crimes. Por isso, uma reacção comum dessas pessoas é a de processarem criminalmente o jornal e os jornalistas que pretensamente os difamaram e, em sinal de inteireza moral, sincera ou fingida, autêntica ou encenada, abandonarem as funções que vinham desempenhando, até que a sua honra volte outra vez a reluzir, depois de devidamente lavada por quem de direito.
Ora, acontece que, muitas vezes, essas pessoas regressam com ar heróico, mártires sacrificados no patíbulo da comunicação social, depois de nada se ter apurado contra elas, mas, em bom rigor, o que realmente se passa vai num outro sentido. Na verdade, em muitos desses casos, as investigações desencadeadas por mor da denúncia feita na imprensa, não chegam a um resultado concludente, no sentido de poderem conduzir a uma acusação formal e consequente submissão dos visados a julgamento. Significa isso que essas pessoas foram sacrificadas desnecessariamente, vítimas de uma dessas cabalas como só a imprensa sabe montar? De maneira nenhuma. Pelo menos, nem sempre assim será. Com efeito, o facto de se não terem reunido provas suficientes, no âmbito de um processo de investigação, para se ser acusado formalmente, não significa que se seja ilibado, no sentido de se estar inocente quanto aos factos que a imprensa imputou a tal ou tal personalidade. Significa, apenas, que a prova recolhida não é concludente, quer para acusar, quer para inocentar a pessoa que foi alvo da investigação. A imprensa, porém, pode ter tido razões bastantes, da sua óptica, para ter conferido credibilidade à imputação que fez a tal ou tal personalidade.
Situação idêntica pode acontecer, mesmo no caso de uma dada investigação de carácter judiciário ter desembocado numa acusação e num julgamento, mas que se saldou por uma absolvição da personalidade que a imprensa acusou de ter feito isto ou aquilo. Dir-se-ia: se essa personalidade foi absolvida em relação ao que a imprensa lhe imputou, então esta actuou mal, sacrificou desnecessariamente a honra de quem não merecia tal tratamento; logo, os responsáveis de tal órgão de imprensa têm de ser condenados, bem como o autor da imputação lesiva. Assim seria de um ponto de vista de lógica formal levada ao extremo. Na realidade, as coisas não se passam desse modo. Se um jornalista só pudesse publicar determinados factos atentatórios da honra de alguém, nomeadamente de pessoas que desempenham cargos electivos ou que ocupam lugares relevantes de um ponto de vista de serviço público, apenas quando tivesse a certeza de vir a provar em juízo, com as exigências próprias da prova judiciária, aqueles factos, não haveria viabilidade de nenhum jornalismo de investigação, o que seria muito pernicioso para a democracia, goste-se ou não desse tipo de jornalismo.
Tal não quer dizer que se abdique da responsabilidade nesses casos. É precisamente por não se abdicar dela que esse tipo de jornalismo é consentido e, mais do que isso, deve ser incentivado. O que acontece é que um jornalista pode ter razões sérias, credíveis, mesmo de um ponto de vista objectivo, de boa-fé, para ter como fundados certos factos, e pode ter cumprido todas as regras que, numa óptica jornalística, se lhe exigem para ter como verídicos esses factos, sem que, todavia, consiga prová-los na perspectiva mais apertada e exigente da verdade judiciária. É que a verdade judicial e a verdade jornalística relevam de "discursos epistemológicos dissonantes e divergentes", como salienta Costa Andrade (Liberdade de Imprensa e Inviolabilidade Pessoal, Coimbra Editora, p. 212).
Por isso mesmo, é que não pode nunca recusar-se ao jornalista a possibilidade de fazer, em último termo, a prova da boa-fé e das fundadas razões em que assentou a sua convicção, isto ao contrário do entendimento que grassa em certa jurisprudência, por força de uma má interpretação do famigerado artigo 180.º n.º 5 do Código Penal[1] (em sentido contrário, isto é, no sentido que aqui se defende, pronunciou-se há dias a Relação do Porto, em acórdão de que foi relator o dr. Cachapuz Guerra).
Assim deve ser, na verdade, se se não quiser matar o jornalismo de investigação. Mas é bom que se diga também que o jornalismo de investigação não pode alimentar-se das ínfimas migalhas que caem da mesa dos políticos, na obsessão de derrubar um ministro todas as semanas. O que é de mais (neste caso, de menos) também é erro, como se costuma dizer.
(JN de 09-04-1998)


[1] Este número, actualmente inexistente, rezava assim: “Quando a imputação for de facto que constitua crime, é também admissível a prova da verdade da imputação, mas limitada à resultante de condenação por sentença transitada em julgado.”





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