21 outubro 2009

 

Saramago e a Bíblia

É curioso que José Saramago tenha dito o que disse sobre a Bíblia, quando, a propósito das célebres caricaturas de Maomé, as tenha apodado de «irresponsáveis» e afirmado «a existência de limites para a liberdade de expressão», porque esta não é absoluta. É claro que, em relação às caricaturas, ele deve ter tido em conta a conjuntura internacional, ao passo que, no tocante à Bíblia e no contexto geo-cultural em que proferiu as suas declarações, não se verificava o mesmo perigo de fazer eclodir uma situação explosiva de contornos imprevisíveis. Assim, o caso é remetido para o âmbito da liberdade de expressão, no contexto de uma cultura europeia que se habituou aos ataques mais desaforados contra a religião e o sagrado, incluindo a blasfémia.
A meu ver, porém, as suas declarações não podem ser lidas à letra. As afirmações de que «a Bíblia é um manual de maus costumes, um catálogo de crueldades e do pior que há na natureza humana» são uma pura provocação. Ele quis escandalizar e provocar, tirando daí um prazer pessoal, não devendo ser alheio ao facto o contencioso que mantém há anos (desde o incidente com O Evangelho Segundo Jesus Cristo) com o sector mais conservador do catolicismo. Isto, muito embora ele possa ter razão, no que tange ao Antigo Testamento, quando se refere ao que designa de «catálogo de crueldades», porque, de facto, o Antigo Testamento está recheado de cenas cruéis, que, todavia, têm de ser lidas num determinado contexto, exibindo frequentemente nas sua páginas, aquilo que o filósofo Gianno Vatimo apelida de «sagrado violento». Já no que toca ao «manual de maus costumes», trata-se, como disse, de uma pura provocação.
Para o comprovarmos, basta ler a entrevista que deu ao suplemento «Babelia» do El País, no sábado passado. Aí, encontramos um Saramago muito mais prudente no que afirma e muito mais subtil nas respostas que dá. Assim, por exemplo, ele distingue o Antigo do Novo Testamento, considerando este «um texto simpático com parábolas bonitas.» E, no que se refere a Jesus, afirma que «Jesus humaniza a figura de Deus. Jesus suavizou e matizou o Deus do Antigo Testamento.»
De resto, Saramago é um leitor atento da Bíblia, sendo completamente destituídas de sentido as afirmações de que ele é um ignorante nesse aspecto.
Agora, a faceta mais lúdica disto tudo reside nas reacções provocadas pelas afirmações de Saramago, algumas das quais são mesmo «de caixão à cova». Desfrutá-las é um prazer. Desconfio que o próprio Deus, que há-de ter um infinito sentido de humor, porque tem todas as nossas qualidades boas em infinito, se há-de rir de muita parvoiçada.





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