12 dezembro 2009
Uma proposta Orwelliana
O crime de enriquecimento ilícito continua a ser visto como uma espécie de toque de Midas que, uma vez em vigor, tornará a nossa alegada cleptocracia numa verdadeira e impoluta democracia de tipo nórdico. Vários partidos, por oportunismo político ou por ingenuidade militante, desdobram-se em propostas de lei que visam acabar de vez com o que levam à conta de lacunas punitivas, de inadmissíveis buracos na malha legislativa penal. Como se não fosse suposto o Direito penal, precisamente o Direito penal, arredar-se de qualquer vocação totalitária na abrangência do universo do ilícito. São propostas umas a seguir às outras, do PSD, do PC, enfim, do BE. Em geral, equivalem-se na sua rebeldia contra princípios constitucionais como o da presunção da inocência, da culpa ou mesmo da legalidade na vertente de determinação da matéria proibida. Mas – faça-se justiça –, há diferenças no plano da lealdade política para com o cidadão, que é o destinatário dessas propostas, se vierem a ser leis. Além de uma proposta celerada do PSD, que já comentei e agora em parte recuperada, na sua enunciação linguística, pelo Bloco de Esquerda, conheço as seguintes propostas:
Do Partido Comunista:
«Artigo 374.º-A
Enriquecimento ilícito
1 - Os cidadãos abrangidos pela obrigação de declaração de rendimentos e património prevista na Lei n.º 4/83, de 2 de Abril, com as alterações introduzidas pelas Leis n.º 38/83, de 25 de Outubro e n.º 25/95, de 18 de Agosto que, por si ou por interposta pessoa, estejam na posse de património e rendimentos anormalmente superiores aos indicados nas declarações anteriormente prestadas e não justifiquem, concretamente, como e quando vieram à sua posse ou não demonstrem satisfatoriamente a sua origem lícita, são punidos com pena de prisão até três anos e multa até 360 dias.
2 – O disposto no número anterior á aplicável a todos os cidadãos relativamente a quem se verifique, no âmbito de um procedimento tributário que, por si ou por interposta pessoa, estejam na posse de património e rendimentos anormalmente superiores aos indicados nas declarações anteriormente prestadas e não justifiquem, concretamente, como e quando vieram à sua posse ou não demonstrem satisfatoriamente a sua origem lícita.
3 – O disposto no n.º 1 é ainda aplicável aos cidadãos cujas declarações efectuadas nos termos da lei revelem a obtenção, no decurso do exercício dos cargos a que as declarações se referem, de património e rendimentos anormalmente superiores aos que decorreriam das remunerações correspondentes aos cargos públicos e às actividades profissionais exercidas
4 – O património ou rendimentos cuja posse ou origem não haja sido justificada nos termos dos números anteriores, pode, em decisão judicial condenatória, ser apreendido e declarado perdido a favor do Estado.
5 – A Administração Fiscal comunica ao Ministério Público os indícios da existência do crime de enriquecimento injustificado de que tenha conhecimento no âmbito dos seus procedimentos de inspecção da situação dos contribuintes.»
Do Bloco de Esquerda:
“Artigo 386.º
(Enriquecimento ilícito)
1 – O funcionário que, durante o período do exercício de funções públicas ou nos três anos seguintes à cessação dessas funções, adquirir um património ou adoptar modo de vida que sejam manifestamente desproporcionais ao seu rendimento e que não resultem de outro meio de aquisição lícito, com perigo de aquele património ou modo de vida provir de vantagens obtidas pela prática de crimes cometidos no exercício de funções públicas, é punido com pena de prisão até 5 anos.
2 – Para efeitos do número anterior entende-se por património todo o activo patrimonial existente no país ou no estrangeiro, incluindo o património imobiliário, de quotas, acções ou partes sociais do capital de sociedades civis ou comerciais, de direitos sobre barcos, aeronaves ou veículos automóveis, carteiras de títulos, contas bancárias a prazo, aplicações financeiras equivalentes e direitos de crédito.
3 – Para efeitos do n.º 1 entende-se por modo de vida todos os gastos com bens de consumo ou com liberalidades realizados no país ou no estrangeiro.
4 – Para efeitos do n.º 1 entende-se por rendimento todos os rendimentos brutos constantes da declaração apresentada para efeitos da liquidação do imposto sobre o rendimento das pessoas singulares, ou que da mesma, quando dispensada, devessem constar.
5 – A prova da desproporção manifesta que não resulte de outro meio de aquisição lícito, a que se refere o n.º 1, incumbe por inteiro ao Ministério Público, nos termos gerais do art. 283.º do Código de Processo Penal.»
Dizia, pois, que as propostas não se equivalem no plano da lealdade política porque, muito embora discorde de todas, ao menos à do Partido Comunista não se pode apontar o vício da hipocrisia político-legislativa. Nela, assume-se de modo claro a inversão do ónus da prova, fazendo-o recair, em parte, sobre os ombros da defesa: é a esta que cabe infirmar o elemento central do tipo de ilícito. Já a proposta do Bloco de Esquerda (como a do PSD, acima “linkada”), é mais do tipo “gato-escondido-com-o-rabo-de-fora”. Mais ainda do que a do PSD, pois chega a deixar expresso que “a prova da desproporção manifesta que não resulte de outro meio de aquisição lícito (sic.), a que se refere o n.º 1, incumbe por inteiro ao Ministério Público”. A mais da péssima técnica, trata-se de uma simples truque destinado a lançar areia para os olhos dos incautos. Pois uma de duas: ou se pretende efectivamente onerar o MP com a prova de um facto negativo (património ou modo de vida que não resultem de outro meio de aquisição lícito) e então o crime em causa será de prova incomparavelmente mais difícil do que a dos demais ilícitos já previstos (e, aliás, mais do que suficientes) e que pretendem responder ao mesmo fenómeno – caso em que, em virtude da sua inverificação prática, apenas se lança mais lenha para a fogueira do desprestígio das instituições (ou seja, um caso digno de integrar o que os autores apodam de Direito penal simbólico); ou então, como julgo ser o caso, espera-se que a dita prova do facto negativo se faça (como não pode deixar de ser) em termos meramente indiciários ou, pior ainda, se extraia a mesma da circunstância de a defesa não provar o facto positivo de da proveniência lícita do património. É o que a prática irremediavelmente provaria se uma tal proposta vingasse.
Mas talvez não seja ainda tempo para desesperos. Um deputado da República acabou de nos obsequiar com mais uma proposta. Orwelliana, é certo, mas em todo o caso uma proposta. Justifica assim a solução milagrosa para a maleita corruptiva que corrói a diminui da Nação: "Nós vivemos em sociedades de transição. De transição entre uma sociedade industrial e uma sociedade digital, de transição entre uma sociedade nacional e uma sociedade global. Nós vivemos cada vez mais numa sociedade onde o risco e o perigo imperam. Todos nós sentimos isso todos os dias. E por isso é preciso construir o crime de enriquecimento ilícito, com base numa figura jurídica que é a figura jurídica do crime de perigo. E com base nessa figura jurídica nós podemos construir um pré-crime, no sentido de acautelar as situações que não têm tido acautelamento jurídico." Portanto, a solução é simples e lisa. Sempre esteve à mão, mas como todas as coisas simples escapou à atenção dos simples mortais (foi assim com as leis da relatividade; será assim com a fusão a frio): um “crime de pré-crime”!
Vamos lá ver se percebo o Sr. deputado. Como vivemos numa sociedade de risco (desde o famoso trabalho de U. Beck que tal afirmação se tornou num chavão, muito embora não fossem os riscos que atormentam o Sr. deputado – os da corrupção – os estudados pelo sociólogo alemão), é preciso construir um crime que … não seja crime (pois, note-se, é um pré-crime!) e, assim, acaba-se com o crime que ao que parece não existe … pois de acordo com o Sr. deputado esse crime (o tal que vem depois do pré) corresponderá “situações que não têm tido acautelamento jurídico”. Desconsiderando a barafunda argumentativa, conclui-se que o pensamento do ilustre representante da República se nutre da obra ficcional de Orwell: daqui ao “crime-de-pensar” vai um passinho. E tudo, segundo o Sr. deputado, tão só lançando mão da elementar figura do crime de perigo (abstracto, presumo). Sucede que para contrariar o Sr. deputado, vejo-me na incómoda obrigação de informar que o crime de enriquecimento ilícito, em qualquer das formas já publicitadas e propostas, não merece a classificação, relativamente anódina, de crime de perigo abstracto. Trata-se, antes, como já em tempos referi a este propósito, de um crime de suspeita. Temos ainda, na nossa lei penal, um ou outro deste jaez que não mereceu a atenção do TC, como é o caso do crime de detenção de objecto de uso indiferenciado susceptível de ser usado como arma, quando o portador não justifique a detenção. Tais formas criminais estão amplamente estudadas noutras paragens (como em Itália, por ex.). A sua natureza resulta da confluência, num preceito penal, de dois planos – o processual e o substantivo –, em termos de a verificação do elemento presumido (no caso, o enriquecimento ilícito) resultar da omissão da justificação (no caso, da proveniência lícita do património) por banda da defesa.
Seja como for, tais figuras são incompatíveis com a nossa tradição constitucional, por razões que não vou repisar e que já mencionei em dois postais, acima "linkados". Apenas cito um conhecido liberal alemão que já em 1792 se dava conta de preocupações que parecem arredadas de uns quantos representantes da Nação. Questionava-se W. Von Humboldt (o filósofo, irmão do naturalista) sobre “até que ponto está obrigado o Estado, ou lhe é permitido, prevenir o delito antes que seja cometido.” E não obstante reconhecer que “dificilmente se encontrará outra tarefa que esteja eivada de propósitos tão humanitários”, concluía que a mesma “parece entranhar perigos para a liberdade”. Pois é, isso foi há dois séculos. E não consta que nessa altura a vida publica fosse um exemplo de ética e virtude.