09 dezembro 2009
Mestre Gil
Do meu fim-de-semana cultural, em que entram sobretudo cinema (Capitalismo – Uma História de Amor de Michel Moore) e teatro, para além da indispensável leitura, destaco a peça de Gil Vicente Breve Sumário da História de Deus, actualmente no Teatro Nacional de S. João, no Porto.
O texto vicentino foi brilhantemente encenado por Nuno Carinhas, oferecendo-nos uma das mais interessantes transposições para o palco de uma peça de Mestre Gil muito pouco representada, talvez devido à sua temática de cariz fortemente bíblico e teológico. Em duas ou três penadas, Gil Vicente, com um notável espírito de síntese e de efeito dramático, dá-nos a sua história de Deus, desde a criação de Adão e da fatídica Eva (mas quem teve a culpa foi Lúcifer, que já estava preparado para, muito matreiramente, levá-la a cair e fazer-nos perder a todos), passando por patriarcas, reis e profetas salientes do Antigo Testamento, até à vinda do Messias, Deus encarnado que nos voltou a salvar com o seu sacrifício.
A verdade é que se passa ali uma boa hora e meia de saborosa fruição artística. A encenação, como disse, dá pleno esplendor à riqueza verbal e imagética de Gil Vicente, criando um espectáculo moderno, em que a questão central é, na verdade, a da condição humana, sem cair em exageros de purismo clássico ou excentrismos de pretensa actualização modernista.
A par do espectáculo, o Teatro Nacional de S. João tem levado a cabo várias iniciativas, particularmente debates, com pessoas de variadas origens culturais, sobre o tema «O que resta de Deus» e, na próxima segunda-feira, dia 14, vai proporcionar a quem quiser, numa maratona de 5 horas, a partir das 20,00, a leitura integral do Paraíso Perdido, de Milton. Conto lá estar.
Quanto a Mestre Gil, vejam só estes pequenos extractos: o dito certeiro, a máxima filosófica e até o espírito iconoclasta:
Onde força há perdemos direito
Que o fino pecado há-de ser de vontade.
(fala de Lúcifer, a magicar a forma de seduzir Eva)
Este relógio não se destempera,
he muito certo e muito facundo.
(personagem Tempo)
O bem que é mudável não pode ser bem,
mas mal, pois he causa de tanta tristura.
(personagem Job)
Nos bens desta vida não está o perder
que assi como assi ca hão-de ficar…
(Job)
Julgai pelas obras, e não pela cor,
sereis bons juízes.
(Cristo)
E agora a iconoclastia de Gil Vicente, para não dizer a sua quase heresia:
Seja papa quem quiser,
seja rei quem tu quiseres;
que os impérios e poderes
a morte os ha de prover
e tirar a quem os deres.
(Cristo em diálogo com o Mundo)
O texto vicentino foi brilhantemente encenado por Nuno Carinhas, oferecendo-nos uma das mais interessantes transposições para o palco de uma peça de Mestre Gil muito pouco representada, talvez devido à sua temática de cariz fortemente bíblico e teológico. Em duas ou três penadas, Gil Vicente, com um notável espírito de síntese e de efeito dramático, dá-nos a sua história de Deus, desde a criação de Adão e da fatídica Eva (mas quem teve a culpa foi Lúcifer, que já estava preparado para, muito matreiramente, levá-la a cair e fazer-nos perder a todos), passando por patriarcas, reis e profetas salientes do Antigo Testamento, até à vinda do Messias, Deus encarnado que nos voltou a salvar com o seu sacrifício.
A verdade é que se passa ali uma boa hora e meia de saborosa fruição artística. A encenação, como disse, dá pleno esplendor à riqueza verbal e imagética de Gil Vicente, criando um espectáculo moderno, em que a questão central é, na verdade, a da condição humana, sem cair em exageros de purismo clássico ou excentrismos de pretensa actualização modernista.
A par do espectáculo, o Teatro Nacional de S. João tem levado a cabo várias iniciativas, particularmente debates, com pessoas de variadas origens culturais, sobre o tema «O que resta de Deus» e, na próxima segunda-feira, dia 14, vai proporcionar a quem quiser, numa maratona de 5 horas, a partir das 20,00, a leitura integral do Paraíso Perdido, de Milton. Conto lá estar.
Quanto a Mestre Gil, vejam só estes pequenos extractos: o dito certeiro, a máxima filosófica e até o espírito iconoclasta:
Onde força há perdemos direito
Que o fino pecado há-de ser de vontade.
(fala de Lúcifer, a magicar a forma de seduzir Eva)
Este relógio não se destempera,
he muito certo e muito facundo.
(personagem Tempo)
O bem que é mudável não pode ser bem,
mas mal, pois he causa de tanta tristura.
(personagem Job)
Nos bens desta vida não está o perder
que assi como assi ca hão-de ficar…
(Job)
Julgai pelas obras, e não pela cor,
sereis bons juízes.
(Cristo)
E agora a iconoclastia de Gil Vicente, para não dizer a sua quase heresia:
Seja papa quem quiser,
seja rei quem tu quiseres;
que os impérios e poderes
a morte os ha de prover
e tirar a quem os deres.
(Cristo em diálogo com o Mundo)