19 maio 2010

 

Um para-disparate

Quem, como eu, julga que a vinculação dos poderes soberanos à Lei e à Constituição é a marca de água de um Estado de Direito só pode ficar boquiaberto com a utilização de escutas telefónicas fora de um contexto criminal e por quem não está a isso autorizado, pela Lei e pela Constituição da República (CR). Nada pode irritar mais do que serem representantes da Nação, os legisladores por antonomásia, a desrespeitar a CR. A discussão em redor da admissibilidade do uso, por aqueles, de escutas provenientes de um processo criminal (pois, de onde mais podiam provir?) e no âmbito de um inquérito parlamentar, tenha este a oportunidade e mérito que tiver, é discussão apenas para quem já se dá ao luxo de prescindir dos dados normativos para fazer vingar uma posição que só pode sustentar-se com apelo a cambalhotas hermenêuticas incapazes de esconder meras simpatias partidárias.

Tenho como límpida a redacção do artigo 34.º/4, da CR, que veda o uso de escutas telefónicas fora de processos criminais. Elevar um vago “esclarecimento da verdade” acima do respeito que é devido à CR é espezinhar o Texto Fundamental, pois não se deve (não se devia) esquecer que aquela mesma já contém uma ponderação, um balanceamento, sobre o modo como se resolve a tensão entre o fim da descoberta da verdade e o uso de meios probatórios manifestamente invasivos da esfera privada (ou mesmo da esfera íntima) e compressores de direitos fundamentais sortidos como o direito à não auto-incriminação e o direito à palavra falada, só para mencionar alguns dos mais evidentes: só no processo penal e ainda assim com pressupostos muito apertados, o conteúdo daqueles pode ceder, e apenas na medida do necessário (artigo 18.º/2, da CR), àqueloutro objectivo de indagação da verdade.

Nem se diga, como por vezes se diz, que de acordo com o Regime Jurídico dos Inquéritos Parlamentares (artigo 13.º/3, da L 5/93, com alterações) “as comissões podem, a requerimento fundamentado dos seus membros, solicitar (…) às autoridades judiciárias (…) as informações e documentos que julguem úteis à realização do inquérito” e que aquelas comissões têm uma natureza para-judicial, tudo como modo de legitimar o acesso ao resultado de escutas telefónicas. Ali porque o que é útil nem sempre é justo, no sentido de que não se deve sobrepor a princípios, também eles de valia constitucional, que protegem direitos fundamentais (p. ex., o citado artigo 34.º/4, da CR) - de resto, é a lei dos inquéritos parlamentares que deve ser lida à luz da CR e não o contrário, sob pena de colocarmos o princípio da interpretação conforme à Constituição de pernas para o ar; aqui porque aquela natureza para-judicial não equivale a natureza … judicial: assim como a comissão não pode prender também não pode usar escutas telefónicas, porque isso resulta de modo ao menos implícito da CR. Breve, aquelas são justificações frustres e demasiados genéricas para a inverter o sentido objectivo do artigo 34.º/4, da CR.

A última coisa que precisamos, depois da escorregadela futeboleira, é de uma escorregadela parlamentar em matéria de escutas telefónicas. Estas suspensões avulsas e aparentemente anódinas do Texto Fundamental são um dos maiores perigos para a democracia e para o Estado de Direito. Na voragem mediática e na obsessão mórbida pelos fait-divers político-partidários, o povoléu parece não se incomodar. Até ao dia…





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