19 maio 2011
A Justiça e os "poderosos": ao cuidado do Paulo (e por aqui me fico)
Pedro Lomba volta hoje, no Público, à questão dos "poderosos" e da "Justiça", a pretexto do "caso" DSK. E volta, diga-se, de modo bem mais sóbrio do que anteontem. É notório que terá lido J. Q. Whitman (autor que também remete, em vários pontos, para Tocqueville), para o qual, por coincidência, remeti no meu último postal (tal como fez, igualmente, Mouraz Lopes). A tese daquele autor, para explicar a oposição entre a severidade americana e a relativa "complacência" europeia em matéria penal, ou melhor, a tendência mais vincadamente igualitária do lado de lá do Atlântico e a maior preocupação com a dignidade do aguido (e sobretudo com a dignidade do condenado, pois é sobre as questões penitenciárias que o livro versa e em todo o caso é nesta sede que as difrenças são mais sugestivas) na europa, é a seguinte: enquanto na América a inexistência de uma sociedade aristocrática, vincadamente estratificada, implicou um nivelamento "por baixo" da resposta penal (a questão do estatuto social nunca foi um problema do sistema penal norte-americano, ao menos por comparação com os sistemas penais europeus), a profunda estratificação social das sociedades europeias dos séculos XVI, XVII e XVIII, deixou-nos, por herança histórica, uma menor sensibilidade para a questão da igualdade dos cidadãos perante a lei (e de parte de quem tem por obrigação fazê-la cumprir). Devemos assumir isso como uma verdade (aquele autor, que se recomenda vivamente, demonstra-o à saciedade), e eu julgo tê-lo deixado claro no meu postal anterior. A Justiça norte-americana é inequivocamente mais eficaz do que a europeia na "perseguição" de delinquentes poderosos - e isso também é assim (por isso, mas também devido a uma questionável lassidão das estrutura de imputação, ao nível substantivo, e devido a um não menos questionável sistema de delação, garantido pela negociação da culpa, ao nível processual) por força daquela postura cultural diante do princípio de que cada cidadão conta apenas como um, mais um, cidadão. E isto é em si mesmo saudável e neste ponto, ao menos nesse, concordo com o articulista que acima citei: "um bocado mais de igualdade não nos faria mal".
Mas essa é só uma face da moeda. Aquela nivelação "por baixo" operada na cultura penal norte-americana levou a um certo "enquistamento" da resposta penal e especialmente da resposta penitenciária - por isso o citado autor americano refere (e outros como ele, ainda que com diversas comparações) que o actual direito penitenciário norte-americano está dois séculos atrasados em relação à evolução europeia e só é comparável ao de alguns países (suma ironia!) muçulmanos. Não admira, pois, que seja especialmente bem visto por aqueles que se empenham num, ou admiram um, direito penitenciário de sabor populista. Isso nota-se nos mais pequenos aspectos (que por aí já vi degradados a meras "technicalities"!): na América é preciso fazer o prisioneiro "sentir-se prisioneiro" e isso, supostamente, implica fazê-lo sentir-se recuar dois séculos; por isso as celas têm barras de ferro em vez de portas (não há privacidade para ninguém) e talvez por isso uma delicada senhora francesa veio chamar DSK de "chimpanzé com cio"; não são permitidos quase nenhuns objectos pessoais, que podem ser arbitrariamente apreendidos; os insultos dos guardas são tolerados; etc, etc. E isto é assim para todos, ricos e pobres, poderosos e fracos, brancos e negros, mulheres e homens. Essa é a parte boa; a que já não é tão boa - e que nos interpela para uma questão que não vejo respondida pelo Paulo, no postal abaixo, nem pelo o cronista acima citado - é a razão pela qual a igualdade só se pode fazer valer em limiares mínimos de dignidade ou até mesmo na ausência dela! Porque é que a igualdade só se pode fazer valer em "instituições totais"?, para usar a conhecida expressão de Goffman. É esse o grande problema, que muitos do que têm perorado sobre o temário não explicam. Como se quem vai comprar os berlindes tenha, por força, que trazer o saco todo! Como se um tratamento modicamente digno fosse incompatível com um tratamento razoavelmente igualitário!
A experiência histórica europeia é radicalmente distinta. Imperfeita, mas distinta; e porventura com melhor potencial de superação das suas imperfeições. O caminho para a igualdade em matéria penal não se fez, na Europa, nivelando "por baixo". Fez-se antes extendendo de modo progressivo ao cidadão comum, aos fracos, as prerrogativas penais (melhor: penintenciárias) dos poderosos, da nobreza, do clero e afins. A igualdade faz-se "de baixo para cima" - e a igualdade vista assim é, também, uma questão de dignidade. Isto é sugerido por um exemplo que hoje se nos antolha bizarro, mas nem por isso é historicamente neutro (se é que há alguma coisa neutra em história, ou em tudo o que é humano). Quando esse benemérito revolucionário, esse assassino em massa, que foi Robespierre, pugnou pela generalização da decapitação, durante o Terror, não foi por mesquinhas razões burocráticas, típicas dos genocidas, e nem por qualquer mesquinha "technicality" (como por vezes dizem aqueles que tudo querem justificar): para matar em massa não precisava de uma máquina como a fabricada pelo Dr. Guillotin. Já se matava em massa por enforcamento. Mas esse era, precisamente, o problema! Desde Grécia e desde Roma, ao que parece, o enforcamento foi consistentemente considerado (por razões que me escapam, é certo) uma das formas mais infames de fazer alguém ir daqui para o Além. Infamava o executado e - pior do que tudo - a sua família. Ora, de acordo com a cultura ocidental, gente de substância, pessoas de consequência, não podiam ser enforcadas. Um nobre, por exemplo, só podia ser executado pelo "aço". Verter sangue, muito sangue, era um privilégio de poucos. E esse tratamento diferenciado claramente perturbou os ideiais revolucionários - e ninguém era mais revolucionário do que o sensível Robespierre ("Discurso sobre as penas infamantes"). A decapitação generalizada foi, assim, uma medida igualitarista! (sem cabeça são todos iguais)
Hoje, a distância entre o direito penal europeu e o norte-americano não se faz em razão da forma de execução, desde logo porque na Europa já não se executa ninguém. Ou dito de outro modo: hoje, num certo sentido, há maiores diferenças entre a cultura penal europeia e a cultura penal norte-americana do que aquela que havia, há quase 3 séculos, entre a França reaccionária (a da forca) e a França revolucionária (a da guilhotina). Mesmo com as nossas deficiências igualitárias - que efectivamente se lamentam e com as quais não nos devemos conformar - julgo que não nos devemos envergonhar.
Devemos sempre ter muito cuidado com aquilo que desejamos ...