03 julho 2011

 

Então vamos aos pormenores

Lembram-se quando aqui falei de "religião"? Está agora, mais uma vez, à vista. Para alguns, o processo penal norte-americano é bom quando é bom e é bom quando é mau. É o melhor quando faz uma coisa e o contrário dela. Quando, como muitos já esperavam, rebentou o "escândalo" da libertação de DSK, um sem número de crentes postou-se logo em fila jurando que, de uma maneira ou outra, à tort et à travers, "aquilo" ali é que é Justiça. Foi o caso, ontem, no Público, de um habitual (e habitualmente interessante) comentador destas coisas, Francisco Teixeira da Mota, num artigo com um título sugestivo ("A prova da eficácia e da bondade do sistema judicial norte-americano").




Confesso que, lido e relido o texto, não compreendo muito bem onde está a "eficácia" de um sistema que prende como se a presunção de inocência já tivesse sido ilidida e, semanas depois, solta como que pedindo desculpa por "qualquer coisinha", como por exemplo, surgir o arguido nas televisões do Mundo inteiro algemado (uma technicality, como dizem os doutores entendidos) e exibido como troféu do "mais igualitário" dos sistemas. Alguns também fazem coincidir a tal "eficácia" com a "celeridade", mas também aqui há aspectos do sistema penal norte americano um pouco confusos. Pense-se, por exemplo, na execução da pena de morte. Estes prisioneiros aguardam pela morte, dia após dia, e em qualquer dia, durante 169 meses, em média (dados de 2009); nesses dia após dia permanecem na cela, isolados, durante 23 horas (porventura, também uma technicality). Muitos dirão - os crentes, pelo menos os mais fervorosos e beatos - que isso é bom. Não se pode despachar um homem condenado à morte em 6 meses, num ano ou nem mesmo em 3 anos. Tudo o que seja menos que 13 ou 14 anos não é garantista. Nem que para tanto a criatura seja, entrtanto, tratada um pouco abaixo de um animal (estes não sabem que vão morrer; os condenados à morte sabem - em não se tratando de doentes mentais, como por vezes sucede; só não sabem se é no dia seguinte). É nisto que reside a tal predisposição "religiosa": há sempre uma explicação, que, como a plasticina, se molda às nossas afeições. E também em casos incensados como o de Madoff, cuja investigação - esquece-se por vezes - durou cerca de 8 anos; ou ainda o paralelo inglês, também muito celebrado entre os nossos intelectuais, sobretudo aqueles de formação britância (que em geral padecem da síndrome do emigrante). O caso do "nosso" Vale e Azevedo é um exemplo: 7 adiamentos e cerca de 4 anos para decidir sobre uma mandado de detenção europeu!, um procedimento relativamente simples e (teoricamente) célere.




Fique claro que o que me impressiona (não muito) não é o facto de num momento processual haver indícios da prática de um crime e, noutro, serem postos em causa esses indícios. Acontece. É assim nos EUA, aqui ou na Mongólia. Mas, por isso mesmo, é que é preciso ter cuidado e não tratar quem se presume inocente como se não o fosse. Por isso, o que impressiona mesmo, é a historieta da suposta "bondade", assim em geral, do sistema judiciário penal norte-americano. E aquela "bondade", de acordo com o articulista, está nisto: foi o "MP" americano quem deu conta à defesa das incongruências, inconsistências, breve, da falta de credibilidade da testemunha/vítima. Só um homem com um extraordinário coração e de elevadíssima estatura moral, só mesmo na América e por ser na América! E, insinua o comentador, aquela é uma "obrigação" do "MP" americano e, inversamente, aqui neste Burundi europeu, "não existe qualquer obrigação da acusação comunicar à defesa factos que sejam favoráveis a esta". Esta afirmação encerra vários equívocos. Vejamos um por um, para sermos miudinhos:




Em primeiro lugar, confunde-se a forma como o processo penal estadunidense lida com a prova exculpatória (em sentido estrito), por um lado, e a prova que (meramente) põe em causa a credibilidade da tese acusatória, por outro. Para o 1.º caso vale, na verdade, a obrigação de o "MP" dar a conhecer à defesa os elementos exculpatórios que detenha e não sejam do conhecimento daquela (isso muito embora sejam recentes, no bondoso sistema penal americano, os casos em que o não menos bondoso "MP" se opôs a "recursos de revisão" de condenados, à morte e a prisão perpétua, quando provas de ADN categoricamente os inocentavam). Não foi assim até 1963, ano em que o Supremo Tribunal Federal (Brady v. Maryland), num caso arrepiante, em que o bondoso "MP" ocultou ao arguido (condenado à morte) a confissão de um co-arguido que podia "livrar" o primeiro da execução! Já por esse tempo, do CPP de 1929, o processo penal de Salazar não consentia desmandos desses. Para o 2.º caso - impeachment information -, que é o que está em causa, a "obrigação" do "MP" é muito mais limitada e ainda não consolidada do ponto de vista jurisprudencial. O "caso referência" será United States v. Ruiz (2002 - não foi há 2 séculos...), que vem sendo interpretado pelos melhores glosadores daquele país como não impondo ao "MP" a obrigação de facultar à defesa toda a informação com interesse para o desfecho do julgamento. Portanto, não é bem uma obrigação. É antes uma mais "predisposição" que depende, em boa medida, do estatuto do arguido.




Mais ainda, em se tratando de negociação da pena (ou da própria imputação), nem aquela doutrina Brady se aplica - pois, então, como negociar, onde já se viu alguém negociar seja o que for conhecendo os trunfos da outra parte? Este aspecto tem suscitado viva controvérsia e há várias propostas de alteração da lei federal. Por isso, quando o nosso comentador diz que "o processo tinha uma lógica de «tudo ou nada», e, agora, parece estar aberto o caminho para a negociação" equivoca-se mais uma vez, no sentido que se segue. Não quero correr o risco de ser injusto, mas parece que esta afirmação pretende também louvar a "bondade" do sistema. Mas é precisamente aqui que reside a sua maior perversidade (e - note-se - sou pessoalmente favorável à introdução de formas mitigadas de negociação mesmo no nosso país): como a consistência do material probatório do "MP" é equívoca, em vez de se abster acusar (em coerência com o princípio que impõe que em caso de dúvida se beneficie o arguido) tenta-se primeiro uma "negociação". Como não pode ser "tudo" e o "MP", para mais um "MP" que se meteu com peixe tão graúdo, com dinheiro e sexo (e, sobretudo, televisão) à mistura, não pode sair disto sem "nada" (pois já no início do séc. o famoso Roscoe Pound, numa crítica demolidora aos sistema penal do seu país, percebeu que o cargo de "prosecutor" era um trampolim para o Congresso ou para a Governação), então tenta-se "uma negociação". É essa a bondade! Bondade que é tão boa quanto é por aqui que entram as maiores e mais infames iniquidades do sistema: quem tem dinheiro e competência de acção - como é indubitavelmente o caso de DSK - tem infinitamente mais possibilidades de se sair bem "numa negociação" (o caso de Spiro Agnew, Vice-Presidente no consulado de Nixon, é um exemplo que ainda hoje incomoda muito americano).




Em terceiro lugar, há um aspecto mais geral e mais abstracto que é olvidado pelo nosso opinador. Em Portugal - e na Alemanha, na Espanha, na França, etc., etc. - o MP não tem "obrigação" de "comunicar" ao arguido factos que interessem a este (isto é, que ponham em causa a tese acusatória), por duas ordens de razões: primeiro, porque o MP continental (porventura, agora, com a excepção italiana) tem um estatuto radicalmente distinto do norte-americano. Este, ao contrário daquele, é uma verdadeira "parte" no processo e o seu compromisso é apenas com a acusação (e também com a política, mas isso é outra história). É por isso que, ali, o modelo de investigação é, por assim dizer, "bipolar": há um "dossier" (um "caso") da acusação e outro da defesa e as investigações são paralelas. O momento da chamada "discovery" é aquele em que, formalmente, se dá uma certa unificação do objecto do processo. Ou, dito em português, é nesse momento que a acusação e a defesa, com certos limites, trocam informação (na prática, o importante é a "discovery" informal, onde os mais fortes e influentes têm óbvia vantagem obtendo informação em condições privilegiadas). Por isso - por razões de elementar lisura processual - há a necessidade da dita "comunicação", que impressiona o nosso comentador. Na generalidade dos países continentais não há lugar a essa "comunicação" pela simples razão de que são sistemas de "investigação oficial", levada a cabo pelo MP, contra e a favor do arguido, se for o caso, arguido que terá acesso a todo o "dossier" do MP (não se diga que o MP sempre pode ocultar informação não a levando ao "dossier"; isto pode suceder em qualquer lado e em qualquer sistema). Se o nosso MP age ou não de acordo com esse figurino legal e constitucional, todos sabem que nem sempre será assim. Mas nisso não diverge do "MP" de qualquer país. Há sempre derivas discricionárias reais (do MP ou de qualquer outro agente do sistema) em sistemas de legalidade formal, como o nosso. Esse é um dado firme da criminologia. Mas nem por nos sistemas de legalidade formal haver derivas discricionárias, devemos desejar um sistema de "dicrionariedade formal" como o norte-americano!




Não se julgue que com estas minhas catilinárias a propósito do sistema de justiça penal do lado de lá do Atlântico pretendo expressar qualquer espécie de "anti-americanismo". Mesmo no que respeita ao processo penal, em muito a Europa deve aos EUA. As proibições de prova - um dos maiores avanços civilizacionais em matéria penal - entraram aqui, na Europa, via Alemanha, na sequência da II GG e por influência americana. Mas em termos gerais, é estranhíssimo este fascínio quase irracional pelo sistema judicial penal norte-americano que, a meu ver, é um dos aspectos menos bem sucedidos daquela, a muitos e justos títulos, grande nação.





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