08 setembro 2011
Ainda os nossos fazedores de opinião - alguns factos
Os sábios que passam o tempo a incensar a justiça feita em terras anglo-americanas e a comparam com o que temos desconhecem, em geral, dois pormenores: 1) como efectivamente funciona a justiça inglesa e americana; 2) como efectivamente funciona a justiça portuguesa. Ora mandam uns bitaites sobre uma e outra - sendo a principal fonte de autoridade sobre a primeira os filmes norte-americanos de classe B (excepto no caso de CAA, que se louva, imagine-se, em MFM, uma senhora que não quer saber das leis portuguesas e que pensa que elas poderíam, com proveito, ser substituídas por juízes ingleses; e que fala sobre justiça com uma tal assertividade que até pode levar os ouvintes a crerem que compreende o que diz); ora ilustram o desastre nacional com uma historieta de faca e alguidar, com um episódio infeliz, com uma experiência pessoal, do tio, do vizinho, do gato ou do periquito. Desconhecimento de factos, emoção e casuísmo são, pois, as ferramentas desses sábios.
Ora, a justiça pátria tem, efectivamente, deficiências graves e indesmentíveis; mas, felizmente (ainda) não é toda a justiça pátria. Há coisas francamente más, mas também concorrem outras boas ou tão só razoáveis, de modo que etiquetar de forma simplista é errado. Por exemplo, se é intoleravelmente difícil cobrar uma dívida (com gravíssimos danos para a economia nacional), já o tempo dos recursos está claramente entre os melhores da Europa. Segundo dados de 2004, que suponho não serem do conhecimento dos sábios domésticos (apesar de constarem de relatórios do Conselho da Europa disponíveis na net), um processo de despedimento dura em média, na modernaça Finlândia, 380 dias, 537 dias na França e 696 na Itália. Nos lerdos tribunais nacionais dura 244 dias. Já um processo por homicídio doloso dura em média em Portugal 293 dias, contra 126 da Finlândia e 1179 (!) na França. Já em recurso, em 2.ª instância, para esse mesmo tipo de processo, Portugal está à frente com 115 dias contra 272 na Finlândia. Os divórcios, por seu turno, são relativamente lentos entre nós na 1.ª instância (308 dias), mas ainda assim duram em média apenas mais 6 dias do que na sofisticada Alemanha (302) e muito menos do que na França (441), para não falar na Itália (582). Na 2.ª instância, como em geral, são os mais rápidos (102), muito à frente da própria Holanda (237 dias), que reconhecidamente tem um dos sistemas judiciais mais eficientes.
E isto é assim num país (o nosso) que suporta uma litigiosidade que é, do ponto de vista relativo, das mais expressivas (claro que, acaso não saibam os sábios, não são os tribunais que inventam os processos; e há quem diga - suportado em alguns estudos - que é precisamente nos países com mais advogados por 100 000 hab. que a litiogiosidade é mais elevada...). Compare-se Portugal e Espanha. Nos tribunais deste país, com mais de 4 vezes a população portuguesa, entraram em 2004 826 835 acções cíveis e administrativas tendo sido produzidas 188 246 decisões de mérito. No mesmo período entraram nos tribunais portugueses 628 170 acções daquelas mas foram produzidas 524 684 decisões de mérito! Uma diferença "colossal" (como agora se diz em "financês") para melhor. E a Inglaterra? Que dizer dessa inesgotável e quase divina fonte de inspiração dos sábios domésticos de entre os quais pontifica a autora da Morte e o parlamentar do Minho? Bem, sempre em 2004, nos tribunais dessa nação, juntamente com o apêndice Gales, entraram 1 597 123 daquelas acções (portanto, com uma taxa de litigiosidade muito, muitíssimo, inferior à de Portugal, em termos relativos), mas foram proferidas apenas 61 824 decisões de mérito! No fim de contas, muito menos do que nesta alegada choldra. Um módico de estudo para não dizer de probidade intelectual implicaria que esses factos fossem levados em conta quando se diz que a nossa justiça civil é "formalista" e que produz poucas decisões de "substância".
Diante disto sempre alguns dirão que é da estatística (que só é aldrabada em Portugal) e da história da galinha dividida por dois; que o Conselho da Europa tem qualquer pacto secreto com o MJ português para tramar os ingleses; que as boas explicações para explicar e sobretudo desculpar o que o que corre mal nos outros países não servem para explicar e desculpar o que vai mal entre nós e que inversamente o que vai bem entre nós só pode relevar de erro ou aldrabice, ao contrário do que sucede noutros países; que onde estamos atrás é porque somos lentos e que onde estamos à frente é porque não somos "garantistas"; e etc., etc., tudo de acordo com o velho complexo de inferioridade nacional que infecta o neurónio de alguns sábios indígenas. Mas, a verdade é que aquilo são números, factos - e factos que não olham para o mesmo lado que aqueles fazedores de opinião, mesmo daqueles que sendo deputados deveriam ter um módico de pudor quando se referem a outra função soberana do Estado (se assim a considerarem, pelo menos). O drama é que, para quem não sabe, não quer ou não pode fazer distinções (e há um pouco de tudo), os aspectos francamentes maus (como a acção executiva, para dar o exemplo mais lamentável) inquinam a percepção dos bons ou moderadamente bons. E, de resto, é chique dizer mal do produto nacional.
(Porventura a continuar)