15 outubro 2011

 

A justiça segundo a sociologia

Numa entrevista de várias páginas integrada no último número da publicação patrocinada pelo dr. Pinto, sob um sugestivo título - "É frequente o juiz ser um déspota na sala" -, uma das reservas morais da nação perora fundamente sobre os problemas da orgânica judiciária, da formação dos juízes, sobre como deve ser a "nova estrutura de poder político da Justiça" (sic.), sobre os "prazos" e acerca de tudo o mais que, pertinente à Justiça, por força apoquenta um homem preocupado com a coisa pública. O teor da entrevista e as opiniões nela vazadas dão bem a imagem do grau de ignorância e (sobretudo de) preconceito com que hoje se aborda o tema (que certamente necessita de ampla, mas séria, discussão) do judiciário. Analisemos então algumas das pérolas que nos prodigaliza o cidadão:


Insurge-se contra a composição do Conselho Superior da Magistratura pois, "apesar do que diz a lei, o essencial do CSM pertence (sic.) aos juízes. Apesar de o presidente poder nomear dois membros, de o Parlamento poder nomear, acabam sempre por ser magistrados judiciais". Isto é dito assim, sem corar e nem gaguejar. Ora, uma breve peregrinação à página do CSM informaria o comentarista que nenhum dos membros do CSM nomeados pelo Presidente da República e pelo Parlamento é juiz!


Outra das grandes preocupações do pensador é a de haver "autogestão" dos juízes. Esta nada tem que ver com a "independência" (não lhe ocorre, parece, as recíprocas capilaridades entre as duas coisas). E para tratar daquela "autogestão", havia que implicar (para usar um eufemismo) o Parlamento; o que tem sido impossível porque o "Parlamento parece que tem medo dos juízes" (vá lá: ao menos o Parlamento). E porque é que tem medo? Tem medo porque (aguentem-se à cadeira!) "muitos dos governantes ou deputados são, eles próprios, (...) juízes"! Esta é simplesmente poderosa e denota bem o nível em que está a análise sociológica neste país.


A magna questão dos "prazos" também não escapa à análise do ilustre sociólogo. Acha ele (aliás aquilo é tudo palpites e até "sentimentos", como veremos) ser "inaceitável que os juízes não tenham prazos tão duros e tão severos (sic.) como têm as outras partes, nomeadamente advogados e arguidos. Por 24 horas, por 24 minutos, podem perder tudo, todas as oportunidades, e os juízes e procuradores têm os prazos que lhes apetece e isso não pode ser" (itálico meu). Bem, aqui há, sob a a aparência da simplicidade, uma extraordinária complexidade. Desde logo, os juízes e os procuradores têm "prazos". O problema é que por vezes não os cumprem. A outra questão, sequencial, é a de saber porque por vezes não os cumprem; e a outra ainda, derivada, é o que sucede se não os cumprirem. Quanto à de saber porque não cumprem, há várias explicações: pouco rendimento pessoal (uma minoria); muitos mais processos do que aqueles que seriam recomendados pelo senso comum e até pelo Conselho da Europa (explicação-padrão); ou os processos serem "tipo Isaltino" (frequente em certo tipo de criminalidade, de "gente fina"). Portanto, e para ser analítico: ou o problema é do juiz, ou da quantidade de processos ou da qualidade dos processos (neste último caso não raro o "problema" é dos advogados que usam, e frequentemente abusam, de expedientes dilatórios). Só naquele primeiro caso é que se deveria entrar na outra questão colocada pelo comentador: o que sucede se não cumprirem. A resposta são os processos disciplinares (e julgo haver muitos, porventura mais do que em qualquer outra profissão), sendo que em qualquer caso - isto é, não cumprindo seja porque razão for - o magistrado não corre o risco de "perder tudo" ou "todas as oportunidades" (um mistério insondável que o intelectual em causa não faz a fineza de iluminar). E nada "perde" precisamente porque é juiz e sendo juíz não é "parte" (até o Sr. de LaPalisse atinava com esta), ao contrário do que parece pensar de modo liso o comentador, que tão só deixa claro o seu olímpico desconhecimento do que seja a função judicial.


Há também o recorrente problema da "formação" com a estafada narrativa dos juízes "novos" e dos juízes "velhos", da experiência e assim por diante. E aqui, quanto ao CEJ (instituição certamente a necessitar de reflexão e reforma), o sociólogo não expressa opinião, ou ao menos ela não é "firme". De acordo com a metodologia própria das ciências ocultas, ele próprio assume que é mais um "sentimento" "contrário ao CEJ" (ficamos assim a saber - matéria para reflexão filosófica - que entre o "sentimento" e a "opinião firme" existe a "opinião"). Isto porque o CEJ formou um juiz que é um "ser humano especial", com "dignidade especial", "intocável", "invulnerável" - e parece que toda essa carapaça sobrenatural, supondo que exista para efeitos de raciocínio, cairia com alguns anos de "experiência" noutras áreas profissionais. Ora, esta mitologia da experiência tem muito que se lhe diga: a "experiência" só é uma vantagem se for uma "boa experiência"; se for "má experiência", não se torna uma vantagem só por ser de muitos anos. Ela permanece uma má experiência com muitos anos.


Por fim, e para ficar por aqui, aborda-se o tema do tribunal de júri. Um democrata que se preze só pode gostar do júri. E, claro, o opinador sugere que "o sistema de jurados deveria ter uma expansão maior em Portugal", sucedendo porém (aqui nada funciona, fica-nos sempre a maçaneta na mão como dizia o poeta) que a inteligente pergunta do entrevistador ("como é que iriam reagir os poderes instituídos?"), respondeu o entrevistado que "os jurados são um contrapeso dos juízes" e que, intuí-se, aquela "expansão" impediria o tal juiz que é um "ser humano especial" de "ser um déspota na sala". Bom, a esta metafísica conviria responder que não só há jurados em Portugal como são as "partes" (para usar a linguagem sincopada do opinador") quem tem legitimidade para requerer a sua intervenção. E assim, se esse requerimento não tem expressão (como não tem) e se aquela intervenção teria por efeito impedir que o juiz fosse "um déspota na sala", então talvez se siga que aquela intervenção não tem expressão porque a imagem juiz português não é a de "um déspota na sala".









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