12 janeiro 2012

 

"Combater a corrupção: entre o imperativo da Res Publica e a razão instrumental"

Publico aqui os excertos mais significativos da comunicação apresentada por António Henriques Gaspar no ciclo de conferências "Ministério Público e o combate à corrupção", organizado pela Procuradoria- Geral da República e realizado ontem em Lisboa. 1. A corrupção, como conceito, facto ou metáfora, permanece intensamente no centro do discurso político e na agenda da comunicação, que se auto-assume como mediadora das projecções de cidadania. O fenómeno da corrupção, muito exposto nas representações sociais ou, com maior rigor, na suposta mediação das percepções sociais, está presente em todas as latitudes, em diversas modalidades e em diversos graus de intensidade. Estudos mostram que constitui um fenómeno sociológico, presente ao longo da História, multiforme, crónico, previsível nas suas manifestações principais, e que apresenta grande visibilidade social em tempos de crise. A corrupção tem uma história política e social. Desde a mais remota antiguidade se foi fazendo a história autónoma das várias formas e do desenvolvimento e da permanência da corrupção: na essência, a alteração da ordem das coisas, das regras estabelecidas, a manipulação e o desvio das formas e dos fins do exercício do poder. Como episódio simbólico da religião, CARLO BRIOSCHI refere que nas regras que Deus transmitiu a Moisés constava a de «não aceitar prendas, porque a oferta cega os que a vêem e perverte as causa justas», embora na antiguidade «olear as rodas» fosse costume difundido e aceite com ambivalência e até mesmo com compreensão. Mas nas Escrituras encontram-se traços incontestáveis sobre o primado da dimensão ética; na Bíblia dos Profetas e na filosofia antiga a ideia da corrupção emerge como pecado e como culpa. Em Roma, na Idade Média, na Reforma, no Iluminismo e pelos tempos e etapas da História até hoje, cada época teve a «sua» corrupção em modelos que os historiadores podem reconstituir – nas projecções axiológicas, nas referências da filosofia política, no poder ou contra-poder das religiões, no comprometimento das instituições. Mesmo nos fins do séc. XVIII a proclamação revolucionária dos valores confrontou-se, logo no período pós-revolução, com a persistência das práticas de corrupção. A história autónoma da corrupção tem sido a da permanência, mas também a da afirmação ética e o combate de uns tantos; a história da corrupção afinal, dito de modo simples, é uma fábula da luta entre o bem e o mal. Mas as exigências de cidadania, interpelando-nos, recordam que a corrupção é hoje apresentada pela opinião, e consequentemente pressentida pela sociedade como um obstáculo ao desenvolvimento económico e uma ameaça real para a qualidade da democracia. O discurso político e as percepções sobre a corrupção que se apresentam como postulado, substituindo-se e dispensando as demonstrações, revelam, porventura, no essencial, mais a emergência da imposição social e democrática de probidade e de rigor nos costumes e na moral política e administrativa, do que verdadeiramente uma agravação do fenómeno ou das suas implicações como problema. (…) 2. A actualidade permanente, o lugar central de um discurso recorrente e a generalidade das proclamações que traz frequentemente coligada, não podem nem devem fazer esquecer a necessidade de compreensão dos mecanismos da corrupção, de verificar ou indagar sobre a densidade real do problema, as condições e os ambientes de emergência e as consequências associadas, e de identificar a tipologia dos agentes implicados. O combate frontal, superando por vezes a indiferença popular, não pode ser empreendido sem firmeza na procura de remédios, políticos, éticos e institucionais, para prevenir e eliminar os diversos níveis e perspectivas que a corrupção apresenta. A dimensão «ambiental» condiciona as análises. Mas o «ambiente» está, por regra, analiticamente viciado pelas impressões e por truísmos mediáticos e pelo condicionamento dos estereótipos que, por detrás das formulações de intransigência, podem esconder posições não necessariamente objectivas, mas objectivamente entorpecentes da acção. (…) Recentrar as noções e impor o rigor das definições constituem condições essenciais da legibilidade do discurso sobre a corrupção, porque é necessário saber do que falamos quando todos falamos de corrupção. No sentido semântico comum, são estigmatizados através da expressão diversos tipos de comportamentos não lícitos ou ilícitos, ou como tal considerados nas expressões externas das representações sociais. O termo “corrupção” tem sido, não poucas vezes, em exasperação conceptual, vítima de vulgarização no senso comum, com extensivos apelos emocionais induzidos por uma noção genérica e cultural que pretende englobar todas as formas de abuso ou de mau uso de uma função pública. Assiste-se à «voragem conceptual» da corrupção. (…) 3. O rigor no estabelecimento das relações entre a substância dos actos e as denúncias sociais constitui elemento central na análise e na definição dos modos de reacção. Pressente-se alguma ambivalência no resultado de um discurso excessivo e da extensão das definições, e consequente corrosão do sentido da proporcionalidade dos valores, ou na anomia em algumas representações sociais. A ausência de rigor que, não poucas vezes, parece rodear os tópicos discursivos, impõe exigências de cuidado nas grelhas de leitura e no reordenamento dos critérios, que evitem erros nas percepções e nas reacções; a resposta ao problema exigirá mais resultados do que retórica. (…) Está estudado que cada sistema político cria e combina estruturas de oportunidade próprias para a corrupção. As estruturas relacionais, os vínculos de dependência, os valores que comprometem e os comportamentos que impõem, podem levar o conceito a uma projecção sistémica. A circularidade de posições de poder gera oportunidades políticas e administrativas, e os sistemas de alianças informais diluem não poucas vezes os valores de referência. Mas a democracia, através dos seus meios de controlo permanentes e escrutináveis, é também o sistema que melhor pode produzir estratégias e formas de resposta e contenção. Para enfrentar e dominar a corrupção pelos mecanismos institucionais, a delimitação a que há que proceder tem de separar bem a dimensão sociológica, para limitar o problema ao que é essencialmente jurídico, e especificamente penal. (…) Mas há que assumir claramente que devem ser pensados outros modos ou modelos muito antes do direito penal. Enfrentar o complexo – a «nebulosa» - da corrupção não pode identificar-se com a manutenção da questão criminal como único modelo de percepção e abordagem. O direito penal não permite enquadrar em definições típicas e nos limites das exigências dogmáticas, a multiplicidade de actos que possam constituir patologias e desvios dos deveres funcionais. A expansão do direito penal tem limites e o direito penal não pode ser infinitamente elástico; poderá mesmo ter esgotado o limite da razoabilidade das construções dogmáticas com as criações da Lei nº 32/2010, de 2 de Setembro. A invenção de soluções apelativas e aparentemente fáceis, mas racionalmente discutíveis, construídas na maximização de políticas penais, pode não ter o efeito pretendido e perturbar a sedimentação de conceitos e as aquisições da «praxis». (…) 4. A primeira dificuldade na estratégia das respostas começa pela apreensão da medida e do volume da corrupção – isto é, da amplitude real e não apenas pressentida. As estratégias, os meios e o discurso devem ser proporcionados à dimensão real, ou à dimensão realmente conhecida e não apenas suposta do problema. A dificuldade de medição ou mesmo de simples estimativa prestável como base significante acrescenta complexidade na identificação das causas e das consequências da corrupção. Não existem critérios e instrumentos de medição, nem dados objectivos e fiáveis sobre a específica danosidade social da corrupção; as impressões não valem como método e critério de análise. São apenas referidas estimativas que resultam, por regra, de instrumentos de análise empíricos, de meras percepções sem critérios científico, produto do tratamento de micro-realidades fragmentadas, por vezes factualmente não demonstradas, constituindo apenas índices que, não revelando mais de que uma parte, não podem ser tomados pelo todo. (…) 5. Enfrentar a corrupção, entendida nas definições extensivas da «nebulosa da corrupção», exige, por tudo isto, estratégias culturais, de prevenção, e a intervenção de meios e de instrumentos formais de controlo. (…) A prevenção primária exige a instituição de contra-medidas que contribuam para eliminar, bloquear ou enfraquecer os factores de emergência, e incidir sobre os contextos de oportunidade. A prevenção primária deve começar na lei e na definição da elasticidade dos poderes. Por exemplo: - previsão de espaços com menor amplitude de poderes discricionários e com mais fortes vinculações naqueles campos em que a decisão de excepção vem prevalecendo, frequentemente, sobre decisões estritamente vinculadas; - maior participação popular e democrática no procedimento para decisões de excepção; - melhor regulação de procedimentos de decisão, eliminando factores intermédios e não estritamente essenciais, propícios a compensações ou a manipulação de informação técnica; - atenção particular à construção dos novos modelos de parcerias público-privadas onde pode residir alguma ambiguidade quanto ao limite material do interesse público; - risco dos modelos voláteis de transição funcional do sector público para o privado, com espaços de indefinição do sentido material dos vínculos na «circularidade de posições»; - ou mesmo, em plano que anda arredado do discurso, regulações adequadas que dificultem a emersão de situações de nepotismo directo ou cruzado, podem constituir critérios operativos em função preventiva primária. Na prevenção situacional, por seu lado, justifica-se a utilização sistémica, integrada e cruzada dos resultados e verificações dos diversos serviços de inspecção e auditorias, seja de legalidade administrativa ou de natureza financeira. (…) 7. O sucesso do combate através do direito penal depende do afinamento dos modelos de investigação e da utilização adequada dos instrumentos processuais disponíveis, na conjugação de pró-actividade entre os resultados da prevenção e as competências das instâncias formais de controlo. (…) O «poder de fogo» - expressão que nestes tempos se tornou «jargão» – dos instrumentos normativos e processuais específicos no domínio da investigação dos crimes associados na «nebulosa da corrupção» é considerável. Recordem-se: - medidas especiais de prevenção e de recolha de informação; verificação e solicitação de verificação inspectiva de actos e procedimentos administrativos suspeitos (no chamado «pré-inquérito» - Lei nº 36/94, de 29 de Setembro); - regime das acções encobertas – Lei nº 101/2001, de 25 de Agosto; - protecção de testemunhas, com ocultação ou reserva do conhecimento da identidade – Lei nº 93/99, de 14 de Julho; - regime especial de recolha de meios de prova; quebra de segredo profissional e perda de bens, especialmente a quebra de segredo das instituições de crédito, o acesso total às contas bancárias e documentação e a solicitação do controlo de contas bancárias, a solicitação do Mº Pº no inquérito – Lei nº 5/2002, de 11 de Janeiro; - criação no Banco de Portugal de uma base de contas bancárias – Lei 36/2010, de 2 de Setembro. - novos modelos penais criados pela Lei nº 32/2010, de 2 de Setembro, que devem ser testados in action. …) Há, no entanto, no estado actual das coisas e na interpretação que me permito, bloqueios que são insuperáveis e que não dominamos: uns, reais; outros, apenas virtuais. A circulação de capitais – circulação virtual em que o dinheiro já nem sequer é escritural – por praças bancárias sem regras, sem regulações e com ocultação dos titulares, para só referir três factores, bloqueia qualquer investigação que exija o recurso a elementos fora do espaço paroquial. E como todos já percebemos, o poder financeiro e associados impõem a sua força; os off-shore restam o grande tabu, revelando a incapacidade dramaticamente comprovada da política para conter a avidez e o cinismo dominador da finança. A «razão instrumental» económica e financeira limita a afirmação do imperativo da res publica. A uma qualquer sociedade de esquisita nomenclatura, com sede numa caixa postal, numa qualquer ilha não se sabe bem onde, sem identificação de titulares ou beneficiários, não deveria ser permitida a aquisição de bens ou a realização de investimentos. Enquanto assim não for, não inventaremos meios de investigação que sejam tocados por Midas. 8. Intervir sobre o essencial, definindo antes de mais o essencial, constitui o dever dos responsáveis pelo trabalho de identificação adequada dos problemas, para organizar racionalmente os meios para os enfrentar. A experiência acolhida de processos que chegaram ao termo, ou não, aconselha a necessidade de identificar, e consequentemente trabalhar sobre os reais problemas, para respeitar a razão de proporção entre os riscos, os danos, as consequências e a utilização racional dos meios. Separando também as águas e rasgando a ambiguidade que continua a condicionar tanto os princípios como as práticas de controlo. O combate à corrupção (usada a expressão no sentido sociológico) tem estado, com efeito, por demais condicionado por impulsos voluntaristas, determinados pelos estímulos exteriores, pela encenação dramatizada nos medias, com generalizações associadas às dinâmicas de certos acontecimentos marcados com o selo labelizado do «escândalo». A dinâmica da criação e da exibição do «escândalo» é sociologicamente complexa. E a eficácia das reacções pode ser (é sempre) afectada por percepções desadequadas dos problemas. Por vezes, fica a sensação que a «metáfora da corrupção» tem sido o objecto e o programa de uma espécie de «concurso de demagogias», com reacções verbais proclamatórias, excessivas e ruidosas, por vezes em afagamento das boas consciências, sobretudo políticas. Com o consequente «engarrafamento» de iniciativas e a perda de sentido das prioridades e da eficácia. Mas a nível internacional numa replicação de sentido duplo, o panorama não é diferente. Temos assistido a uma sucessão de Convenções – que já vi designada por convention congestion - , a uma acumulação desordenada de tratados, num concurso de modelos ou numa espécie de leilão, tentando ultrapassar-se umas às outras pela inflação de exigências, que fazem desviar do essencial. 9. Havemos, porém, de reconhecer que as instituições de justiça – órgãos de polícia criminal, Mº Pº, tribunais – estão também nesta matéria sob o fogo intenso dos novos messias e dos industriais do escrutínio. É uma consequência da actuação em ambiente democrático, mas as instituições têm de saber conviver tanto com as razões, como especialmente com a não-razão ou mesmo a desrazão. Prevenindo-se, no entanto, de uma dupla armadilha. Por um lado, não produzir nem aderir ao discurso da assumpção da responsabilidade inteira de um combate que não é apenas da justiça. As possibilidades e as responsabilidades da justiça têm como limite a dimensão penal, e esta é apenas a parte de ultima ratio do problema; o direito penal e o seu arsenal de intervenção estão no fim da linha, e no esforço de contenção do «complexo da corrupção» não lhe pode ser reservado um lugar principal. Por outro lado, superar condicionamentos mediáticos, que podem ter agendas próprias não coincidentes com a realização da justiça, e não entrar em competição para demonstrar, sob a cominação implacável de rotunda incapacidade, a obrigatória realidade daquilo cuja existência urbi et orbi a comunicação decretou. 10. Delimitados os campos, evitadas as armadilhas, utilizados os meios processuais alargados que estão disponíveis, as instituições judiciárias – órgãos de polícia criminal; Mº Pº; tribunais - têm capacidade para responder ás expectativas dos cidadãos e às exigências da República. Sabendo bem os limites, mas compreendendo os ambientes, os métodos e a linguagem, e actuando com rigor o objectividade para fazer justiça, sem tentações de justicialismo. Na procura de elementos de demonstração e prova não há, por estas bandas, recibos de quitação. A prova é o problema central na investigação, para a acusação e no julgamento. No ambiente da corrupção há dissimulação, códigos de actuação; tem de haver específicas regras para reconhecimento de comportamentos e o saber da experiência para interpretar conjugações e indícios subliminares e ténues; tanto os documentos registrais, como as presunções naturais e os feixes poliédricos de indícios são essenciais para abrir o espaço escuro das dissimulações e segredos. Temos de assumir aqui o dever da inteligência. Com a firmeza das convicções, a consciência serena da dificuldade do empreendimento e a intuição de que a eficácia e a obtenção de resultados são prejudicados pela diversão resultante do excesso inconsequente das palavras. Em tempos de «lassidão ética» e de cedência à razão instrumental financeira, enfrentar a corrupção, seja sociológica ou jurídico-penal, constitui um imperativo da res publica. Com a humildade de reconhecer nos ensinamentos da história que o combate foi sempre presente, mas o sucesso nunca foi suficiente. Recordemos S. Thomas More em carta a Erasmo: «Se a honra fosse rentável, todos seriam honrados». (António Henriques Gaspar)





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