19 dezembro 2011

 

O consenso como remédio para os males do processo penal

Recentemente o Prof. Figueiredo Dias publicou um opúsculo intitulado Acordos sobre a sentença em processo penal. Pela importância da proposta e pela relevância e responsabilidade que o seu autor assumiu ao longo das últimas décadas na doutrina e na legislação nacional penal (de que, de alguma forma, é o “pai”), é indispensável ler e estudar a nova proposta que agora nos faz.
Proposta essa que é, nem mais nem menos, do que introduzir no processo penal português os “acordos de sentença”. Já veremos do que se trata. Mas preliminarmente importa analisar as razões e fundamentos de uma proposta que, reconhece o autor, con-tende com o paradigma actual do processo penal.
Parte o Prof. Figueiredo Dias do “truísmo” da crise generalizada do sistema de justiça penal e da perda de confiança do povo numa justiça que se mostra incapaz de estabilizar as “expectativas comunitárias”. Um truísmo, sendo uma verdade incontestá-vel e evidente, não precisa de demonstração. Por isso, ele passa logo adiante. Porém, talvez não fosse despicienda uma reflexão sobre como se constroem, nomeadamente através da comunicação social, os “truísmos” (que não nascem por geração espontânea). Sobre as abundantes “verdades” que diariamente nos despejam é sempre bom manter uma certa distância crítica. Antes de se tornar “truísmo” a informação deveria sofrer a crítica da razão. Mas nem sempre há tempo… Admitamos pois o “truísmo”.
É para “recuperar” essa confiança popular no sistema de justiça penal que o Prof. Figueiredo Dias propõe uma solução aparentemente simples: a do estabelecimento da possibilidade de acordos quanto às sentenças. Não se trataria de um novo processo especial, mas sim de um novo princípio do processo penal, horizontal ao sistema, por-tanto: o princípio do consenso, fundado num outro princípio, que teria tutela constitu-cional - o princípio do favorecimento do processo, ancorado no art. 20º da Constituição (acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva). Um processo penal funcionalmente orientado seria, pois, uma exigência irrenunciável do Estado de Direito.
Porém, se o favorecimento do processo me parece, sem dúvida, uma imposição constitucional, já não se poderá dizer, creio, que tudo o que favoreça o processo, no sentido de que tudo o que o acelere, ou o simplifique, ou o abrevie, é constitucional-mente válido. Há limites para o favorecimento… Não se pode saltar, sem rede, do favo-recimento para o consenso. É preciso demonstrar que este último favorece a administra-ção da justiça.
Mas o que propõe de facto o Prof. Figueiredo Dias? A possibilidade de consenso entre o tribunal (juiz), o MP e o arguido, na fase da sentença, consenso esse abrangendo a questão da culpabilidade e a da sanção, e que se imporia ao juiz na elaboração da sen-tença. Esse consenso assentaria na confissão integral e sem reservas do arguido. Contu-do, o consenso não poderia prejudicar o princípio da investigação ou da verdade mate-rial. O acordo também não estabeleceria a pena concreta, mas somente os limites máxi-mo e mínimo (“estreitando” assim a moldura penal). E também não ficariam as partes privadas do direito ao recurso da sentença.
Desta breve síntese resultam evidentes as diferenças entre esta proposta e a plea baigaining. No fundo, o que se propõe é, na esteira da lei alemã de 2009, apenas dar uma relevância mais lata à confissão integral do arguido, procurando uma “sentença consensual”, sem no entanto erradicar de todo a conflitualidade inerente ao processo. A “negociação” é conduzida sob a égide do juiz, árbitro acima das partes, supremo garante da legalidade. Nada de semelhante com as negociações obscuras do processo penal americano…
Mas, por isso mesmo, não se vê em que medida esta nova solução tem virtuali-dades para resolver a “crise”. Porque ela obriga ainda à realização do inquérito, à dedu-ção da acusação. Só a sentença fica “facilitada”. Mas, não sendo erradicado o direito ao recurso, a causa não fica definitivamente resolvida. As “economias” (processuais e outras) não seriam muitas…
Por outro lado, é ilusório pensar que o consenso seria a via escolhida pelos “arguidos de grande notoriedade mediática ou dotados de significativa competência de acção” (para utilizar as precisas e lapidares palavras do autor), e em geral os arguidos em matéria de corrupção, criminalidade económico-financeira, já que estes, precisamen-te pelo seu excesso de “competência”, se escusarão naturalmente ao consenso, pois a via do conflito, do conflito permanente e interminável, é a que serve os seus interesses…
Nos processos complexos a “eficácia” do novo “princípio” afigura-se, pois, limi-tada ou nula…
É certo que o Prof. Figueiredo Dias admite a extensão do princípio do consenso ao próprio inquérito. Fá-lo, porém, de passagem, sem definir com precisão os pressu-postos desse acordo. Estaremos aqui perante uma verdadeira plea baigaining? Ele não o diz. Se a proposta for essa, a minha posição é de reprovação absoluta, como já aqui várias vezes afirmei. A plea bargaining provoca “ganhos” inegáveis em termos de “efi-cácia”, mas é uma eficácia perversa, porque prejudica decisivamente a qualidade e a igualdade da justiça.
A minha leitura é, pois, a seguinte. Se não li mal o que li, a proposta do Prof. Figueiredo Dias, desfigurando embora o processo que ele próprio construiu, nada traz um acréscimo de “eficácia”, pelo menos a ponto de constituir uma solução tão produtiva que faça “recuperar” o paraíso perdido (e jamais encontrado) da confiança ilimitada do povo na justiça penal.
Finalmente, parece-me que não se justifica o “apelo à reconciliação universal” (“cooperação entre os sujeitos processuais”) com que o autor termina o texto, dirigindo-se a juízes, procuradores e advogados. Não só é ilusório pensar que nos tempos que cor-rem, nomeadamente com o excessivo número de advogados na barra, as soluções con-sensuais sejam acarinhadas, como também é de reconhecer e sublinhar que o processo penal, se admite, nas suas camadas “inferiores”, soluções participadas, consensuais ou mesmo mediatizadas, já na criminalidade mais grave o conflito, traduzido na audiência formal e pública, é a forma única de administrar justiça num Estado de Direito. Uma justiça de corredores ou de gabinetes, por muito eficaz que possa ser, não será credível. A não ser que se faça da eficácia o único valor da justiça. Mas tenho dúvidas que então ainda se mantivesse o Estado de Direito…





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