27 outubro 2013
Carta ao protagonista-mor da nossa revolução
Ou de como no cortar é
que reside o segredo e o êxito das grandes reformas que têm vindo a ser
empreendidas para levar o país ao rumo certo, que o há-de encaminhar para a
prosperidade.
Prezado Senhor Corte:
Antes de mais, permita-me
que lhe enderece as minhas mais vivas felicitações.
Vossa Senhoria tem sido
o verdadeiro protagonista e o herói da nossa Revolução. Daí o principiar por
felicitá-lo. Não tenho o gratíssimo prazer de o conhecer pessoalmente, mas, se
tal vier a acontecer um dia, fique V.ª S.ª ciente de que lhe deporei um ósculo de
infinita gratidão nas Suas incansáveis mãos de cortador-mor do nosso destino
colectivo.
Permita-me também V.ª
S.ª que o felicite pela equipa que o rodeia e que encarna na perfeição o seu
espírito. É notável a forma como V.ª S.ª , captando a essência das grandes
exigências das grandes responsabilidades que nos incumbe respeitar, nestes
tempos de assaz grandes transformações, soube encontrar encarnação em todos os
membros da equipa que tem o privilégio de o servir, servindo o nosso país.
Creia V.ª S.ª que aprecio
vivamente a sua ousadia revolucionária, a forma como actua, pondo em prática o
princípio “tem que ser, custe o que custar”, imperturbável e insensível a
“estados de alma”, como agora se diz. Inexorável, inflexível, sem se vergar a
lamentos ou queixumes de quem quer que seja. É esse o verdadeiro lema do líder
revolucionário.
Na verdade, V.ª S.ª é
exímio a cortar no que deve ser cortado: nos vencimentos altos das classes mais
baixas, nas chamadas “pensões de reforma” auferidas pelos indivíduos que já não
estão no activo e nas “pensões” dos órfãos e das viúvas. Estas últimas – as
“pensões de reforma” dos inactivos e as pensões
dos órfãos e das viúvas – nem sequer teriam justificação, num caso,
porque os beneficiários já não dão nada à sociedade, no outro, porque os contemplados
estão a receber um rendimento por conta de um parente morto, o que é um
absurdo.
Também rejubilo com o
objectivo de V.ª S.ª em cortar na condição
da classe média, abolindo gradualmente esta classe parasitária, que, como alguém já escreveu, se formou à
sombra de um Estado arcaico, distribuidor de benesses e de lugares ao sol.
Dizem que não há verdadeira
revolução sem cortes de cabeças, mas V.ª S.ª
tem dado provas de uma generosidade e de uma tolerância verdadeiramente
dignas de registo, pois se limita a cortar nos soldos e nas ditas “pensões”, poupando
as cabeças dos que têm de sofrer os cortes.
Quem diz cortar nos
soldos e pensões diz cortar nas despesas, porque, na realidade, vistas as
coisas de determinada perspectiva - a perspectiva correcta – trata-se de
diminuir as despesas de quem tem de pagar os ditos soldos e pensões numa época
em que tanto se carece de poupança, estimulando-se, ao mesmo tempo, as classes
laboriosas e do funcionalismo do Estado a exercitarem a sua capacidade de
apertar o cinto para o emagrecimento que delas se espera, em proveito do bem
comum.
Quanto aos reformados,
órfãos e viúvas, em vez de os banir, como seria mais consentâneo com o
princípio moderno de utilitarismo que deve governar os povos, a política de V.º
S.ª rege-se, ainda assim, por um sentimento humanitário, cortando-lhes apenas uma
pequena parte das ditas “pensões”, que é uma espécie de tributo pago à
sociedade pelas suas existências improdutivas.
Tudo isto tem V.ª S.ª feito
com notável tenacidade e sem qualquer ponta de comiseração, como é próprio de
um espírito que quer mudar as coisas de uma forma irreversível, indo ao
encontro do passado, quer dizer do futuro, porque, como alguém escreveu,
comentando a revolução em curso no nosso país: “o futuro é o passado”.
Aliás, o grande lema da
nossa revolução poderia ser: “O regresso ao passado é possível” -, concretizando,
finalmente, a persistente utopia humana que se exprime na canção: Ó tempo, volta
para trás”. E tudo isto graças ao poder e influência de V.ª S.ª.
Há certamente muita
resistência à grande reviravolta que se tem vindo a imprimir ao nosso país, mas
essa é a sina de todas as grandes mudanças, de todos os grandes movimentos que
mexem nos interesses instalados, como sejam salários, subsídios e pensões. É
cortar!
Desejando a V.ª S.ª um grande êxito para a sua magnífica política de cortes, sempre firmado na aliança dos nossos amigos internacionais, que anseiam, tanto como nós, pela concretização da nossa obra de modernização do país, creia-me
Seu
Grato e Fiel Admirador
Jonatham Swift (1665-1745)