04 janeiro 2014

 

Carta a um vivaz comentador público


Carta a um vivaz comentador público

Onde se fala do Tribunal da Magna Carta e do princípio da confiança, tal como tem sido invocado e como deveria ser entendido

 

Prezado Senhor:

Li o seu comentário na gazeta “Golpe de Vista” e tive logo vontade de lhe dirigir a palavra, mas as festividades natalícias, com o alvoroço da parentela e filharada a pôr a casa em constante agitação, se bem que com dominante de alacridade, e depois a estrelouçada da passagem de ano, impediram-me de me concentrar o suficiente para redigir umas breves linhas.

Vem ao caso mais uma peripécia do Tribunal da Magna Carta. Vossa Mercê teve o desassombro, que, aliás lhe é merecido apanágio, granjeado com o acerto e bom senso que informam os seus comentários falados e escritos, de acertar em cheio no alvo. Na verdade, aqueles juízes têm vindo a conferir à nossa jurisprudência um acento deveras conservador e a degradar a qualidade dos seus arestos para um nível nunca antes visto, como V.ª M. já tinha acentuado num dos seus comentários anteriores.

Desta feita, porém, os juízes foram mais longe, fulminando em bloco, sem uma única quebra, a projectada lei de igualação dos privilegiados servidores públicos às classes laboriosas do sector privado. Ora esta unanimidade, em que se bandearam para o mesmo lado todos os juízes do Tribunal da Magna Carta, incluindo os que era suposto afinarem pelo diapasão das reformas que os nossos governantes tão determinadamente vêm implementando, só pode ter a explicação que V.ª M. acentuou – a de que os juízes reagiram corporativamente, por um sentimento de orgulho ferido, já que parte dos nossos governantes, incluindo o ministro-mor, e outras individualidades da maioria da Câmara dos Eleitos, assim como vários ilustres cavalheiros, mui doutos no que diz respeito aos articulados da Magna Carta, e altas individualidades de organismos internacionais nossos aliados, têm vindo a exprobar ao mencionado Tribunal a sua jurisprudência reactiva.

Desse modo, quiseram os ditos juízes mostrar a sua independência – uma independência perigosa, para além do carácter de rebeldia que a enforma, pois o Tribunal da Magna Carta não existe para fazer obstrução, mas para dar suporte jurisprudencial às reformas que o nosso abnegado governo quer levar por diante, isto, bem entendido,  dentro das variações de sensibilidade dos respectivos juízes, mas sempre  sem sair da particular visão com que se pretende refundar o país.

Um tribunal, a actuar desta maneira obstrucionista ou independentista, não é tolerável em tempos revolucionários como estes. Os juízes deveriam capacitar-se do novo espírito das mudanças que urge empreender, contra os absurdos privilégios adquiridos por determinadas classes sociais, com destaque para os servidores públicos e para a classe dos anciãos.

Ora, o Tribunal da Magna Carta tem-se vindo a entrincheirar em princípios mui dignos, como o da confiança, mas interpretando-os de maneira ardilosa. Com efeito, o Tribunal tem invocado esse princípio em defesa de classes que acumularam privilégios, como os referidos servidores públicos e os anciãos, ignorando deliberadamente que são essas classes que devem ser abatidas, como vulgar despesa que são, em nome de uma nova ordem mais justa. Por outro lado, ignora também o “excelso” Tribunal que o verdadeiro princípio de confiança seria aquele cuja observância desse à nossa elite dirigente suporte bastante para a sua patriótica missão.

Em suma, meu prezado amigo, o Tribunal da Magna Carta invoca o princípio da confiança apenas para defender o statu quo. É uma instituição passadista, que não tem em conta as novas realidades do país; diria mais, que se prevalece do seu independentismo e do espírito de corporação para boicotar as reformas em curso. Foi um grave erro não se ter pensado, logo no início, em substituir esta instituição do passado por um conselho de pessoas arejadas, da absoluta confiança (esse, sim, seria o entendimento mais actualizado do famoso princípio) de quem dirige actualmente os destinos da nossa Pátria.

 

Queira V.ª M. aceitar as saudações mais amistosas do seu

 

                                   Indefectível Admirador

 

                                   Jonathan Swift (1665-1745)





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