21 novembro 2015

 

Auto de S. Bento

(A cena passa-se numa sala reservada do Palácio de S. Bento)
 
Passos – Ganhámos as eleições, temos o direito de governar.
Costa – Pois então governem.
Passos – Apelamos a que vocês se juntem a nós. Até estamos dispostos a dar-lhe um lugar no nosso governo.
Costa – Um lugar no vosso governo?... Mas nós não queremos lugar nenhum no vosso governo. Governem vocês, ora essa!
Passos – É chegada a altura de nós nos entendermos, amigo Costa. Precisamos muito da vossa ajuda. Quero eu dizer, o país precisa que nós nos entendamos.
Portas – Em nome do superior interesse nacional, amigo Costa, eu próprio estou disposto a sacrificar o meu lugar de vice no governo e dá-lo a si.
Costa – Ora, ora, ora! Não me venha com isso, seu Portas duma figa! Agora é que vocês se mostram muito generosos, mas até aqui vocês diziam cobras e lagartos de mim. E você, Portas, foi particularmente implacável comigo. Você assumiu o papel de me dar os golpes mais baixos durante a campanha.
Portas – Ó amigo Costa, campanha é campanha! Golpes verbais não são golpes reais. Você também mandou as suas farpas contra a coligação patriótica.
Passos – O que se diz na campanha eleitoral peca muitas vezes por excesso. Você também se excedeu, não me diga que não. Mas agora estamos numa outra fase – a fase de termos que nos entender, a bem do país.
Costa – Não contem comigo. Entendam-se vocês os dois.
Passos – Mas é que precisamos de nos entender os três.
Costa – Foram vocês que ganharam as eleições, não é o que dizem? Governem, pois!
Portas – Mas é que precisamos da vossa mãozinha, caro Costa.
Costa – A nossa mãozinha não é para vocês. Tirem daí o sentido. Nós sempre dissemos na campanha que não vos dávamos mãozinha nenhuma. Que era para acabarmos com o que vocês fizeram. Com que cara iríamos agora aparecer aos nossos eleitores se vos déssemos a mãozinha do nosso partido? Nem pensar. Isso está completamente fora de causa.
Passos – Então quer dizer que vão dar a mãozinha aos partidos que não fazem parte do arco da governação…
Costa – Não há nenhum arco da governação. Todos os partidos representados na Assembleia da República têm direito a participar e a fazer parte do governo. O arco da governação é uma invenção que precisa de ser destruída.
Portas – Não me diga que vai alinhar com a Catarina e com o Jerónimo?
Passos – Com os partidos radicais?
Costa – Radicais são vocês, que fizeram uma política de empobrecimento do país, de destruição de parte da classe média, de fomento da emigração em massa dos nossos jovens, de liquidação do Estado Social.
Passos – Fomos obrigados a isso pela situação em que encontrámos o país em 2011.
Portas – Vocês deixaram o país na bancarrota e foram vocês que chamaram a troika.
Costa – Isso é a vossa cassete. Mudem de disco.
Passos – Quer dizer que você está mesmo resolvido a dar a mão aos partidos da extrema esquerda?
Portas – Aos velhos comunistas?
Costa – Os comunistas já não são o que eram, já não comem criancinhas e nós não vamos dar-lhes a mão, que é nossa e só nossa. Estamos a fazer esforços sérios para um entendimento à esquerda que constitua uma alternativa ao vosso governo de direita.
Passos – Mas isso vai contra a tradição democrática de quarenta anos.
Costa – É essa tradição que queremos quebrar. Algum dia teria que ser.
Passos – Mas vocês têm o dever de deixar passar o nosso governo.
Portas – Fomos nós que ganhámos as eleições.
Costa - Deixar passar como?
Passos – Se não querem colaborar connosco, deixem ao menos a vossa mão quieta. Não a levantem a favor nem contra. Basta isso.
Costa – Nós somos homens de punho erguido; não o viramos para baixo nem o escondemos. O que você me continua a pedir é que colaboremos convosco, nomeadamente desistindo de votar contra o vosso programa, ainda que ele não corresponda à política que queremos para o país.
Passos – Mas nós é que ganhámos as eleições…
Portas – Sim, nós é que as ganhámos. Temos todo o direito de governar.
Costa – Governem, já disse.
Passos – Temos o direito de exigir, quer dizer, de pretender … que ao menos vocês não nos estorvem, isto é, que deixem passar o nosso programa, abstendo-se.
Costa – Abstendo-se de…
Portas – Votar a favor ou contra, já que não querem comprometer-se.
Costa – E então isso não é uma forma de comprometimento?  Não é isso então uma forma de lavar as mãos como Pilatos? Nem pensem numa coisa dessas. Queremos mudar de página e temos na actual composição do Parlamento força para o fazermos.
Passos - Vão então aliar-se aos radicais da extrema esquerda?.. Aos comunistas?...
Portas – Quebrar a arca da santa aliança… a arca, quer dizer, o arco da governação?
Costa – Sim, é isso mesmo que pretendemos.
Passos – Isso é roubar-nos os votos que conquistámos nas urnas.
Costa – Não, não é. Vocês é que nos querem roubar os nossos votos, subtraindo-os à maioria de esquerda que existe no Parlamento.
Portas – Isso é sequestrar os votos que, por direito, conquistámos.
Costa – Vocês é que nos querem sequestrar os nossos votos, impedindo-nos de votarmos como queremos.
Passos – Ai ele é isso?... Pois vamos dizer que nos roubaram.
Portas – Vamos dizer que nos sequestraram.
Costa – Já nos habituámos às vossas saídas teatrais.
 
(Passos e Portas vêm à janela gritando a plenos pulmões e fazendo grandes gestos de desgraça)
Passos – Estamos roubados!
Portas – Estamos sequestrados!
Passos – Não nos deixam governar!
Portas – Aqui d’el- rei! Ó povo deste país! Não nos deixam governar!   
 
António Artô





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