18 dezembro 2015
"Bruscamente no Verão Passado" - o caso da mutilação
No
Verão passado foi aprovado mais um pacote penal (o direito penal vem agora aos
“pacotes” – e esses pacotes vêm não raro no Verão). Entre as novas
incriminações conta-se o crime de mutilação genital feminina (MGF), que foi
autonomizado das ofensas à integridade física graves (sendo que os
comportamentos mais gravosos – clitoridectomia, infibulação e excisão – já eram
susceptíveis de integrarem o crime previsto no artigo 144.º/b do CP) por claras
razões simbólicas. A esta duplicação de previsões penais decorrentes de escaramuças
ideológicas já estamos habituados, já estamos anestesiados nesta matéria e já praticamente
ninguém se insurge ou sequer comenta (aliás, esse é um terreno perigoso para
insurgimentos ou comentários); e, para além do entumecimento da lei penal, na
prática nenhum mal virá ao mundo, logo porque a pena assinalada é a mesma que
era (e é) cominada à ofensa à integridade física grave.
O
problema maior não reside aí. O problema, estou em crer, poderá residir num
inciso da norma que considera MGF para efeitos penais (e de aplicação de uma
pena de 2 a 10 anos de prisão, note-se) “qualquer
outra prática lesiva do aparelho genital feminino”. Cabem aqui, como se
sabe a punção, o “piercing”, a incisão, a raspagem, a cauterização… É dizer, integram-se
aí hipóteses que ficam a clara distância daquelas outras bem graves (clitoridectomia,
infibulação e excisão) susceptíveis de comprometerem irremediavelmente a capacidade
de fruição sexual. A desculpa das obrigações internacionais será fraca: a Convenção de Istambul (artigo 38.º), que
será a fonte da obrigação que onerou o Estado português, não parece impor a
incriminação dessas condutas. Mas essa incriminação, por seu turno, poderá
levar a consequências inaceitáveis: uma pessoa que, a pedido de uma mulher,
coloque no clitóris desta um “piercing” deverá incorrer numa pena? E para mais
numa pena de 2 a 10 anos de prisão? Sendo certo, de resto, que o mesmo
legislador estival acrescentou que o consentimento da vítima (se é que nesse
caso se trata de “vítima”) não exclui em
qualquer caso a ilicitude do facto (artigo 149.º/3 do CP). E, ainda, por
que razão um “piercing” no clitóris ou nos pequenos ou nos grandes lábios, a
solicitação da mulher, poderá fazer
incorrer o agente numa pena de 2 a 10 anos de prisão e um “piercing” na glande
ou escroto, a solicitação do homem,
não é simplesmente punível?
Outra
das alterações que suscita algum pasmo é a punição (e com pena até 3 anos de
prisão) dos meros actos preparatórios.
E isto no seio de um CP que não pune em termos gerais os actos preparatórios
nos crimes contra a vida ou nos demais crimes contra a integridade física,
mesmo que grave! Mais ainda, no afã penalizador, foi-se ao ponto de
consagrar uma agravante para a qual não antolho sequer objecto (uma espécie
de tentativa impossível do legislador): reza agora a lei que “[s]e as ofensas à integridade física forem
produzidas em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou
perversidade do agente, este é punido (…) com pena de prisão de 1 a 5 anos no
caso do n.º 2 do artigo 144.º-A” (itálico meu), é dizer no caso de acto preparatório! Portanto, quem
elaborou a lei não terá compreendido que um acto preparatório não é por
definição um acto consumado ou tentado – e que se o iter criminoso se ficou pela preparação é porque não chegou à
tentativa e menos à consumação…
Pode
ser que não esteja a ver as coisas com a suficiente detenção – e esta foi uma primeira
leitura do regime em causa. Mas o passado recente (v. g., iniciativas como o julgamento sumário de crimes gravíssimos,
que passou incólume por um Parlamento) dão-me um certo sentimento de segurança
(que não de quietude).