10 agosto 2016
Leituras e releituras de férias
Empreendi
com gana, pela 5.ª ou 6.ª vez, a leitura de Palmeiras
Bravas, de Faulkner. É uma leitura sempre surpreendente, que nos reconduz a
uma espécie de estado de graça, como só a grande arte tem o poder de agir sobre
nós. Ocorreu-me repegar no livro numa das caminhadas matutinas, ao longo das
praias, entre Agudela e Funtão (concelho de Matosinhos), pelos passadiços de
madeira existentes nas dunas. Essa ideia surgiu-me várias vezes, ao longo dos
meses, mas agora impôs-se-me com uma urgência irrecusável, trazida pela
maresia, evocativa do cenário do 1.º capítulo da obra – uma zona de veraneio,
onde se sente o rumor do mar e o “negro vento cheio do selvático e seco som das
palmas”, através do qual caminham, de noite, Harvey Wilbourne e o médico
proprietário da modesta vivenda alugada por aquele, mesmo ao lado da do médico,
reclamado à pressa para assistir à mulher
que acompanhava Harvey – mulher legítima?, amante?, questionava o
médico, tomado de curiosidade pelos hábitos pouco ortodoxos dos seus
inquilinos.
A
obra foi traduzida e tem um prefácio de Jorge de Sena, que é dos textos mais
esclarecedores que tenho lido sobre o escritor norte-americano (Portugália
Editora, Colecção Livros de Bolso). Numa passagem desse prefácio, Jorge de Sena
dá-nos conta da complexidade e mesmo obscuridade da obra de Faulkner, um escritor contemporâneo – escreve – que imensamente admiro e que muitas vezes, à
leitura, me exaspera. E continua: Creio
firmemente que é preciso tê-lo traduzido, ter-se lutado com o seu prodigioso,
truculento e no entanto pessoalíssimo estilo de escrever e de narrar, para
admirá-lo mias profundamente e lucidamente do que o permite a fascinação um
pouco entontecedora que deixa a leitura da sua complexa e vasta construção
romanesca. Porque, de facto, raras obras do nosso tempo são a tal ponto uma
construção em que o heteróclito e o difuso se constituem elementos da própria
precisão descritiva a atingir, e em que até as contradições nas atitudes do
autor, ou inclusivamente a contradição entre incidentes romanescos, num mesmo
romance ou de narrativa para narrativa, se imbricam no conjunto por forma a
representarem partes essenciais de um todo.
Ora,
aqui está a dificuldade de leitura de um dos maiores escritores do século XX e
de todos os tempos confessada por outro grande escritor contemporâneo, que tão
profundamente conhecia a cultura e a literatura norte-americanas, porque as
viveu por dentro, como homem que adoptou os Estados Unidos da América do Norte
como país de exílio.
Não
deixa de ser esta uma confissão reconfortante para quem, como eu, tem passado a
vida a debater-se com a obra de Faulkner. Mas as culminâncias do saber e da
beleza, como de tudo o que verdadeiramente nos implica como seres humanos, só
são atingidas por quem está disposto a arrostar com a aspereza do caminho. Um
princípio totalmente antagónico, creio, ao espírito deste tempo que nos cabe
viver – a era das redes sociais e da superficialidade da comunicação digital.