10 janeiro 2017
Soares
O que eu apreciava em Soares? A sua combatividade, a sua
persistência, a sua determinação em vencer, a sua capacidade de
luta, a sua inabalável fé na democracia pluralista. Foi quase
sempre um vencedor e atingiu todos os lugares cimeiros a que podia
ter aspirado na vida política do país, de cuja orientação e
modelação no pós-25 de Abril foi, sem dúvida, o maior artífice.
Apostou e não foi o Kerenski da Europa, mas o demiurgo da Fonte
Luminosa e o homem que introduziu Portugal no espaço europeu, que
outros viam muito de viés. Podemos pôr em dúvida muitas das suas
opções (não certamente a da descolonização, que lhe granjeou
ódios mortais, ainda persistentes), mas a verdade é que foi um
ganhador em quase todas as batalhas em que se empenhou. Muitas vezes
exaltámos com as suas vitórias, conseguidas no fio da navalha;
outras, ficámos decepcionados com os caminhos que trilhou. Meteu
muitas coisas na gaveta e foi-as deixando um bocado aferrolhadas, mas
também bateu o pé com denodo em situações-limite, de refluxo de
direitos, liberdades e garantias, como aconteceu ainda muito
recentemente.
Também apreciava nele a sua descontracção, em virtude da qual era
capaz de dormir nem que fosse com a cabeça pousada numa pedra, como
chegou a dizer, ou de dormir a sono solto antes de um interrogatório
da PIDE, ou ainda de se rir dos seus próprios lapsos, e eram muitos
(lembram-se daquele, em Caminha, quando se dirigiu aos caminhenses
como “Povo de Cabinda”?). Era notável a forma como convivia com
todos os estratos populacionais, como dialogava com todos, como se
inseria tão facilmente nas camadas populares e como aceitava os
epítetos com que o “brindavam”, muitas vezes tradutores de uma
liberdade paródica. Porém, isso talvez fosse a outra face do
monarca que o socialista, republicano e laico gostava de ser, a do
rei que vê com bonomia soberana as malandrices do seu povo, que se
imiscui com ele nas festanças, mas que também não enjeita o
espavento da sua condição. Essa era uma das facetas contraditórias
da sua personalidade. Essa e talvez uma certa descontracção em
demasia, que parecia cair numa forma de laxismo. Às vezes parecia
não escolher muito bem algumas das figuras que o rodeavam. E foi
protagonista de manifestações onde escusava de se ter envolvido. Na
área da justiça, por exemplo.
As suas exéquias fúnebres, executadas com pompa e circunstância,
evocando velhos tempos da Monarquia, deviam ter-lhe agradado, se
acaso as pudesse viver. Mas já não era ele que viajava de charrete,
puxada por vários cavalos, mas apenas o corpo de onde tinha
desertado há vários dias.