19 junho 2017
A tragédia de Pedrógão
Uma
vez escrevi, a propósito dos incêndios, que “o nosso país era
mesmo para arder”. Claro que uma afirmação destas não é para
tomar a sério. O seu objectivo é, por um lado, chocar e, por outro,
exprimir um desalento. Porque se trata de desalento este sentimento
que nos acompanha ao vermos o país arder metodicamente, anualmente,
imparavelmente, como se fosse uma fatalidade. Eu estava muito longe
de pensar que aquela afirmação pudesse corresponder a uma realidade
em que o país se fosse reduzindo a cinzas, mas com a tragédia
destes últimos dias ficámos todos com a sensação de que o país
vai mesmo no caminho da incineração total. O país arde. E não é
só a floresta que se vai dizimando (o que, de si, já seria uma
tragédia incomensurável), mas também as casas, os veículos, os
animais e as pessoas.
Por
sobre ou por sob essa tragédia de efeitos bem palpáveis e
dolorosos, uma outra tragédia se vai cimentando – a da falta de
acção, pelo menos de acção eficaz. Há dezenas de anos que se
fazem relatórios, diagnósticos, declarações de peritos, planos de
acção, e os incêndios continuam imperturbavelmente, porventura com
mais sanha de ano para ano, a sua obra de destruição. É
exasperante continuarmos por estes dias a ouvir as mesmas coisas que
se ouviam há trinta anos. Nem os factores naturais que terão
intervindo neste caso de forma excepcional nos dão suficiente
guarida. Que os mortos sirvam (se assim podem ser instrumentalizados
sem ofensa ao nosso pudor) para mais do que lamentação e apelo à
solidariedade com as famílias enlutadas.
06 junho 2017
Delação premiada
A
delação premiada está na ordem do dia. É um assunto escabroso.
Parece que a associação sindical dos juízes envereda decididamente
por ela. O sindicato do Ministério Público, idem. Há, portanto, se
não uma unanimidade de pontos de vista entre os magistrados de ambas
as magistraturas, pelo menos um consenso entre as suas organizações
profissionais. A Ordem dos Advogados está contra. Eu confesso que
tenho mais dúvidas do que certezas. A divisão entre estes dois
campos profissionais indicia alguma coisa? Talvez.
A
delação premiada facilita a investigação dos crimes de colarinho
branco? Pois facilita. E dificulta as estratégias de defesa? Pois
dificulta. Será então por aí que passa a divisão entre aqueles
dois campos?
No
sábado passado, no programa “Expresso da meia-noite” da SIC
Notícias, o jornalista Ricardo Costa insistia muito na eficácia e
na celeridade que a adopção de uma tal medida poderia trazer à
investigação. Como se a eficácia e a celeridade fossem valores
supremos do processo penal. E, deslumbrado, afirmou por várias vezes
que, se a delação premiada estivesse em vigor no processo Sócrates,
porventura já se teria deslindado a intrincada trama do processo.
Tudo com mais eficácia e muito menos perda de tempo. Afinal, não é
isso que se tem visto no processo Lava Jacto, cujo juiz de instrução,
Sérgio Moro, promovido a estrela, passou há dias por Portugal,
recebendo grande aplauso da assistência que o escutou em dois
auditórios, nas Conferências do Estoril e na Faculdade de Direito
de Lisboa?
Pois
é, mas a delação premiada não deixa de ser uma delação. Não
lhe chamemos colaboração premiada, que isso não passa de travestir
com uma expressão bondosa uma crua e acho que imoral realidade.
Delação que só existe por causa dum prémio – o favorecimento do
sujeito que delata com um tratamento penal suavizado, se não mesmo
com o perdão de pena. O investigador alicia o sujeito que está a
ser interrogado a delatar os seus companheiros ou comparsas,
acenando-lhe com o benefício que daí resulta. Faz, portanto, apelo
ao elementar egoísmo humano para lhe quebrar as resistências
psicológicas e levá-lo a deslindar a teia criminosa e delatar os
colegas. Isso não é colaboração alguma. A verdadeira colaboração
é espontânea (não movida por um interesse proposto ao pretenso
colaborador) e resulta de um arrependimento ou auto-reflexão do
sujeito, que o leva a reconsiderar a sua conduta e avaliá-la como
tendo um sentido negativo, passando em consequência a rejeitá-la.
Mas,
como digo, posso estar a desconsiderar qualquer vertente relevante do
problema. Há muito tempo li um livro do sociólogo suíço Jean
Ziegler. Acho que se chamava “Os Senhores do Crime” ou coisa
parecida. Aí ele defendia a quebra de certos “tabus” do processo
penal para o sucesso do combate ao crime organizado do nosso tempo –
as máfias do crime. Não sei se ele se referia também à delação
premiada como método indispensável para o combate a certos tipos de
criminalidade. Sei que o que é preciso, desde já, é responder a
esta questão: A delação premiada é mesmo um meio indispensável
para descobrir crimes de colarinho branco, nomeadamente o crime de
corrupção? Não vamos pôr à cabeça a eficácia e a celeridades
processuais.
Em
segundo lugar, importa responder a esta outra questão: como é que
essa figura se concilia com o quadro axiológico da nossa
Constituição?