26 outubro 2017
A decisão de que se fala
Tenho
uma certa relutância em tecer considerações sobre uma decisão
judicial alvo dos “media”, em primeiro lugar, por uma questão de
reserva que impende sobre os magistrados e, em segundo lugar, porque
já fui vítima de uma campanha mediática injustificada por causa de
uma decisão de que fui relator em que quase toda a gente falou sem
ter lido o acórdão e sem se ter apercebido da real situação que
lá se discutia (em deliberação da Entidade Reguladora da
Comunicação Social datada de 22/11/2007, esta acabaria por
“considerar procedente a queixa apresentada [por mim, contra o
jornal que despoletou o caso], por desrespeito do dever jornalístico
de relatar os factos com rigor e exactidão e interpretá-los com
honestidade e por ter violado direitos de personalidade do
queixoso”), mas não vou fazer comentários sobre o acerto ou
desacerto dessa decisão, muito menos a partir do que se diz na
comunicação social.
Apenas
quero referir-me ao teor daquela parte da fundamentação que fala do
adultério da mulher. Em bom rigor, a decisão seria exactamente a
mesma sem essa parte (aliás, breve), porque o acórdão confirma o
decidido na 1.ª instância (não atenua a pena, como erradamente tem
sido dito). O recurso foi interposto pelo Ministério Público (por
sinal, uma Procuradora), que pretendia o agravamento da pena. Porém,
a Relação manteve-a, considerando justos os critérios de
determinação da penalidade imposta. Simplesmente o aresto reforça
o decidido com as infelizes considerações sobre a Bíblia e o
Código de 1886 para fulminar o adultério da mulher (e só desta),
acrescentando que o tribunal de 1.ª instância até poderia ter
ponderado uma atenuação especial da pena.
Ora,
por aí é que o acórdão patenteia a ideologia de quem o assina,
ideologia na verdade ultrapassada (e quero crer que minoritária na
sociedade portuguesa actual) e desajustada dos valores
constitucionais. O que causa maior espanto é o mesmo ter sido
assinado por uma mulher (a desembargadora adjunta), sem que esta se
tenha distanciado dessa parte da fundamentação, que, como disse,
nem sequer tem relevância para o decidido a final. Isto, a menos que
a referida desembargadora comungue do que lá foi escrito, o que
parece incompreensível, atento o particular empenho das mulheres na
sociedade portuguesa actual (e não só) na materialização da
igualdade de género, um objectivo que, de resto, integra os valores
fundamentais da Constituição.
Talvez
seja ocasião para lembrar que o Código de Processo Penal também
foi penetrado pela ideia de austeridade, tendo-se diminuído
radicalmente o número de juízes que formam o colégio decisório
nos tribunais superiores, agora reduzido a dois, com o presidente a
desempatar no caso de empate, o que fragiliza a decisão e pode mais
facilmente dar origem a erros e deslizes como este.
Não
creio, no entanto, que o problema se subsuma a uma carência de
formação especializada dos juízes, pois ele tem a ver com a
formação geral e mais concretamente com a interiorização dos
valores e princípios constitucionais, porque estes, seja qual for a
ideologia própria de cada um (e os juízes têm inevitavelmente a
sua) têm de ser respeitados por força de um compromisso básico que
a profissão tem de envolver.