29 setembro 2019

 

O triunfo das vacas

Com algum atraso, por termos estado ausentes do nosso posto, publicamos o texto que se segue da autoria do celebrado escritor Jonathan Swift, por o reputarmos muito oportuno, não obstante o referido atraso motivado pela nossa ausência.




As vacas estão muito agradecidas ao reitor da mais vetusta universidade do nosso país. Tanto quanto sei, mal souberam da notícia daquele dignitário académico, reuniram-se em manada numa pradaria onde remansosamente pastavam ao fim do dia, depois de passada a onda de calor escaldante que tem sido o indício preocupante das alterações climáticas a que temos vindo a assistir, e festejaram vivamente a boa nova com mugidos intermináveis: uuu, uuu, uuu!...
Este é um dia de vitória para nós”, disse a mais circunspecta das vacas, a decana da pradaria, fremindo as narinas de satisfação. «Vamos deixar de ser carne para bocas de humanos, ao menos nas cantinas da mais velha universidade do país, uuu, uuu,uuu! Isto por decisão mui esclarecida do seu magnífico reitor, com aplauso dos seus estudantes, consoante rezam as notícias vindas a lume.» «Uuu, uuu, uuu!”, mugiram todas aos pinotes de alegria.
Não se trata de uma vitória integral”, prosseguiu a decana, «uma vez que a decisão que nos poupa à barbaridade de sermos comidas apenas concerne à velha academia, e nem a toda ela, mas tão-só às cantinas da estudantada. Portanto, nada de grande euforia. Só uma certa percentagem de estudantes é que nos vai deixar de comer – os que frequentam as cantinas – e mesmo esses nem sempre lá comem, mas também se desenfastiam de quando em vez em restaurantes e noutros lugares de comedoria, onde hão-de ingerir, para tirarem a barriga de misérias, a nossa carne, tão apreciada e tão arreigada nos hábitos gastronómicos dos animais que se dizem “pessoas”. Até em cafés e estabelecimentozecos de tapas e comidas para picar hão-de comer-nos, quanto mais não seja sob disfarces traiçoeiros, como croquetes, rissóis, pastéis de massa folhada, etc. E, quando vão de férias e passam a comer na casa das famílias e onde calha, também hão-de atraiçoar-nos degustando a nossa carne. Isto para já não falar na população da cidade dos doutores, a velha futricada, que essa não quer lá saber de decisões dos magníficos reitores.»
«Uuuuuuuuuuuu!…», fizeram num gemido longo as vacas em congresso.
«De maneira que não é tão bom como parece», prosseguiu a decana, «mas de qualquer forma é já um triunfo que temos que agradecer ao magnífico reitor e também, vá lá!, entoar um F-R-A em honra da estudantada. Não é que essa gente nos queira muito, porque, se eles resoveram prescindir da nossa carne, não é pelos nossos bonitos olhos, nem por nos terem muito amor. É porque querem preservar o ambiente e a saúde deles e a vida deles. Pelos vistos, a criação intensiva de gado vacum para a alimentação desses animais que têm a mania que são humanos está a dar-lhes cabo do seu futuro e também do planeta. Portanto, o que eles no fundo querem é evitar-nos, não prezar-nos. Precisamos de ter muita consciência disso.»
«Uuu,uuu!», assentiram as vacas em redor da sua mestra.
«Se fosse por prezarem o reino animal, esses velhacos não fariam distinção entre a nossa carne e a dos outros animais. Ainda há dias estive a conversar com o chefe de uma vara de suínos (não digo “porcos”, porque essa é uma expressão racista) e ele manifestou-me a sua raiva por a vetusta academia discriminar dessa forma a sua espécie em relação à nossa, achando-os dignos de serem comidos e nós não. Ou bem que eram todos iguais, ou não havia moralidade nenhuma. Disse-me o assisado chefe dos suínos que um escritor do passado chegou a falar no triunfo dos da sua classe, mas agora verificava que, afinal, as vacas é que pareciam triunfar, ao menos no reino da velha academia. Seria então que alguns animais continuavam a ser mais iguais do que outros?, perguntava ele com uma enérgica vibração. Ora eu, sendo honesta como sou, concedo-lhe toda a razão. Conheço de ginjeira esses gajos humanos. Todavia, temos que ser realistas. Sem menosprezarmos os interesses de todo o reino animal e, em especial, o dos nossos prezados suínos, temos que agir com toda a cautela e sagacidade e, digo mesmo, ma-trei-rice. Reparem que mesmo o presidente do nosso país disse que não prescindia de nos comer de vez em quando. Portanto, cau-te-la e son-si-ce, avisou com toda a solenidade a conspícua decana.
«Uu,uu,uu...», assentiram todas com vivos acenos de cabeça.
«Em primeiro lugar, acho que devíamos manifestar colectivamente o nosso agradecimento ao magnífico reitor».
«Uu, uu, uu» - concordaram todas.
«Depois, devemos dirigir-nos à Academia e não regatearmos elogios a toda a estudantada, enaltecendo o mais que pudermos o seu espírito inovador e modernista, na linha das boas tradições da mais vetusta universidade do país. Devemos tratá-los por ilustres doutores, geração fixe, nata do país e esperança da humanidade. E no fim entoarmos o hino preferido deles: F-R-A… F-R-A… Talvez um dia, desalojadas das pradarias, possamos circular pelas ruas da cidade, como nas cidades indianas, e, quem sabe?, termos a honra de participar nos cortejos académicos.»
Seguiu-se grande alarido de satisfação, não só com prolongados uuuuu, mas também com pateadas no solo e marradas generalizadas com entrechoque de chifres. 
Jonathan Swift (1665-1745) 





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