12 dezembro 2018
O bloco central e a autonomia do MP
Já se sabe que o bloco central não gosta de um MP autónomo. No PS há desde sempre uma forte corrente anti-MP, de que Jorge Lacão é um representante destacado. Mas há muitos outros que também se condoem com os colegas e amigos sucessivamente condenados e as "ousadias" do MP nos últimos anos só têm engrossado esta corrente. E há os condenados que, em desespero, na "iminência" da prisão (ponho "iminência" entre aspas porque é uma iminência sempre adiada), constroem as mais ridículas teorias conspirativas, como a da "tomada do poder" no MP por um grupo que tem uma agenda política que põe em causa a democracia (certamente ao serviço de Moscovo, acrescento eu).
No PSD é o próprio Rui Rio o arauto da domesticação do MP, é essa a essência da sua "reforma da justiça".
Curiosa é a acusação recorrentemente dirigida ao MP de "andar em roda livre", agora renovada e disparada por Nuno Garoupa do longínquo Texas, onde alegadamente é professor. Realmente, é preciso ter muita lata: não é a atividade do MP regulada por lei? Não está inclusivamente essa atividade balizada pelas leis de política criminal periodicamente aprovadas na AR?
Claro que eles gostariam mais de um MP com canga às costas e conduzido por um capataz de serviço. Mas nos tempos mais próximos vai ser difícil, porque a opinião pública parece atenta, como o demonstra a polémica sobre a sucessão da PGR.
No PSD é o próprio Rui Rio o arauto da domesticação do MP, é essa a essência da sua "reforma da justiça".
Curiosa é a acusação recorrentemente dirigida ao MP de "andar em roda livre", agora renovada e disparada por Nuno Garoupa do longínquo Texas, onde alegadamente é professor. Realmente, é preciso ter muita lata: não é a atividade do MP regulada por lei? Não está inclusivamente essa atividade balizada pelas leis de política criminal periodicamente aprovadas na AR?
Claro que eles gostariam mais de um MP com canga às costas e conduzido por um capataz de serviço. Mas nos tempos mais próximos vai ser difícil, porque a opinião pública parece atenta, como o demonstra a polémica sobre a sucessão da PGR.
04 dezembro 2018
Das cousas novas que ouvi quando regressei à Pátria
(e dos comentários que
entendo por bem fazer-lhes)
Eis que regresso de
uma ausência prolongada, uma ausência não só deste bloco
onde registo as minhas irregulares notas e observações, mas também
desta nossa Pátria bem amada, pois que andei por longínquas
paragens, por terra, mar e ar, habitadas por variegadas gentes, de
culturas e hábitos e religiões mui diversos dos nossos, e climas e
ares por vezes mui pouco saudáveis. Do que vi e colhi hei-de falar
um dia, se a Divina Providência me conceder tempo e saúde e engenho
suficiente para inventar situações curiosas a partir do muito que
vi e ouvi, para proveito e exemplo da nossa gente. Escreverei as
minhas viagens com visos de fantasia para que se não enfade ninguém
com a sua leitura, mas, por ora, intentarei de falar em algumas
cousas de que tomei conhecimento à minha chegada e que me pareceram,
ao menos às primeiras impressões, da ordem do fantástico.
E, começando pela
primeira, vem a ser tal cousa a dessa discussão, que se tem
processado em moldes mui acalorados, sobre a chamada festa brava.
Argumentam os defensores dela que se trata de um espectáculo
artístico, de elevado colorido, movimentação e estética, e, por
sobre isso, de grande enraizamento na nossa cultura. Dizem, por sua
vez, os oponentes que se trata de um espectáculo bárbaro, em que se
faz sofrer impunemente um animal (um touro das nossas lezírias),
volteando em torno do bicho e fazendo-lhe negaças, ora com um
toureiro a manobrar uma capa vermelha diante dele e ludibriando-lhe a
investida, ora com um cavaleiro pimponeando na sua frente e fazendo
fintas com o cavalo, e por fim, espetando no lombo do pobre bicho, já
cansado e deitando a língua de fora, a espumejar raiva, grandes
ferros pontiagudos, denominados farpas ou bandarilhas,
com que o animal sangra, e o sangue vai escorrendo pelo seu corpo, em
torno das partes feridas.
Ora, muito bem! Não
sou eu quem vai negar o altíssimo valor das nossas tradições. E
também, como disse o poeta, gostos não se discutem. Porém, há que
não esquecer igualmente que os animais sofrem e, nisso, parece que
os campos adversos perdem os exactos contornos em que se confinam,
pois que há muita gente do campo dos defensores da festa brava
que não nega a evidência desse sofrimento e, por isso, muitos deles
parecem condescender num remédio assaz artificioso que uma alma
condoída dos bichos e, ao mesmo tempo, prezadora da tradição, pôs
a circular. Consiste ela em proteger o corpo do animal com um cousa
chamada velcro, a qual impediria que as acima referidas farpas
penetrassem no cachaço do touro e apenas fizessem barulho – pá!,
pá!… - ao serem cravadas no dito velcro.
A solução, além
de imaginosa, é generosa, mas o que me espanta é que ninguém se
tenha lembrado de uma solução mais ousada, de acordo com as
possibilidades inventivas do nosso tempo. Quanto melhor não seria,
por exemplo, criar um touro mecânico, mas animado dessa inteligência
que chamam artificial, porque o é de facto, mas inteligência
verdadeira, um touro que tivesse a sua carnadura metálica revestida
de boa pele taurina, que corresse na arena e marrasse com seus cornos
e escarvasse o terreno com os cascos de suas patas e pudesse receber
no seu cachaço os ferros pontiagudos das farpas, sem
necessidade de qualquer velcro. Até podia sangrar, porque
hoje há inventiva para tudo e, assim, alimentar o prazer dos que
gostam de ver sangue, enquanto a multidão, entusiasmada, podia
acompanhar os lances artísticos e certeiros do toureiro com ritmados
olés. Isso, sim, isso seria tourada a sério e com todos os
condimentos que ela reclama. Mais: podia pôr-se no touro um pouco de
manha e até algumas formas de ser ele a ludibriar certos lances do
toureiro, colhendo este de surpresa, o que daria um suplemento de
emoção à faena. Um touro desses ainda seria melhor do que o
touro das lezírias, porque não seria só bruteza e movimentação
cega, mas possuindo alguma capacidade de cálculo e de aplicação
certeira da sua força. Assim ficaria salvaguardada a tradição,
respeitar-se-ia a dignidade do animal e manter-se-ia o interesse
genuíno pela festa brava.
Outra cousa que me
feriu a atenção, uma vez regressado à Pátria, foi o desembaraço
daquele político que se dirigiu aos seus confrades, chamando-lhes
camaradas e camarados. A princípio fiquei um pouco
atónito com a noticia, mas posteriormente, após madura reflexão,
acabei por achar interessante e mui digno de apreço o gesto ousado
desse moço. É que, se bem reparam, ele masculinizou uma palavra que
só tinha feminino. Ou seja, encontrou o género masculino para o
vacábulo. Brilhante! Com efeito, numa época em que só se pensa
nos direitos das mulheres, encontrar o género masculino para as
palavras em que o feminino se usa para os dois géneros, é uma
louvável atitude reivindicadora dos direitos que o homem também tem
e de uma verdadeira igualdade de género.
Este jovem político,
se tivesse sido descoberto há mais tempo, poderia ter prestado um
valioso contributo na renovação ortográfica da nossa língua e na
atualização do nosso léxico, podendo dele ser dito, com toda a
propriedade, que seria a cereja em cima do bolo perfeito cozinhado
pelos nossos doutos linguistas, no recente acordo a que chegaram.
Porém, como é sabido, as cousas não vão sempre à nossa feição;
antes a sorte se compraz, tanta vez, em fazer negaças aos nossos
intentos e esforços de perfeição.
Eis o que entende, a
respeito das cousas que aqui expõe, este vosso criado, que assina
Jonathan Swift
(1665 - 1745)