27 novembro 2005
O governo e nós
Enquanto os magistrados não saírem do círculo vicioso das férias e do subsistema de saúde a que tinham direito, estão irremediavelmente prisioneiros da lógica e da estratégia do governo. Tanto mais incapazes se mostram de assumir um espírito de verdadeira independência, que passa também pela idoneidade para criar uma autonomia crítica. Logo a seguir às suas diatribes, o governo entra em cena e repete até à exaustão o seu brilharete perante uma opinião pública já irreversivelmente conquistada pelos argumentos (demagógicos, é certo, mas atingindo em cheio o alvo visado) do Executivo. Assim, os magistrados estão a dar pretextos ao governo para lhes dar mais umas arrochadas e à opinião pública para os considerar como detentores de privilégios injustificáveis.
As férias judiciais foram encurtadas? Só há que tirar daí as devidas consequências pessoais, familiares e profissionais. É preciso reformular o trabalho em novos moldes, criando uma outra cultura judiciária e uma nova mentalidade, em que a profissão (dantes dizia-se que era «um sacerdócio») seja encarada com toda a seriedade e dignidade, mas sem «vampirizar» tudo o resto. Há mais vida para além dos processos. A alienação, no sentido kafkiano, resulta precisamente de se ver tudo através dos processos: «Estava tudo tão claro e estudado, que era como se todas as pessoas em seu redor se metessem num assunto que só a ele dizia respeito», escreve o escritor checo no «Fragmento do «Delegado do Procurador da República».
Quanto ao subsistema de saúde, está bem que se lute por direitos e interesses nessa área, mas sem fazer disso o busílis das preocupações profissionais.
O que sinto como mais intolerável em tudo o que se tem passado é a maneira fácil, demagógica e leviana como o governo levou tudo para o campo dos «privilégios» e pôs o acento tónico dos fracassos do sistema numa culpa presumida ou explícita dos magistrados. Com isso contribuiu para um aprofundamento da degradação da imagem da justiça e dos seus profissionais, do mesmo passo que enfraqueceu um dos pilares do Estado de direito democrático. Aí sinto-me atingido como profissional e como cidadão. Foi isso que permitiu uma escalada de ataque às magistraturas, que, em muitos casos, se assemelha a um linchamento. Hoje, entra-se em certos tribunais e vêem-se, nos elevadores, coisas escritas como esta: «Os juízes são corruptos e manguelas». Isso só foi possível pela «deriva» (passe o palavrão) que o governo propiciou com a sua falta de jeito ou mesmo com a sua calculada actuação.
Aí, sim, há uma dignidade ultrajada e «quem não se sente, não é filho de boa gente», lá diz o ditado. Mas institucionalmente é preciso encontrar os caminhos adequados a uma resposta que não fique prisioneira da lógica do governo e que, ao mesmo tempo, ateste a nossa maturidade cívica e a excelência das funções que exercemos não em nosso nome, mas dos mesmos cidadãos que nos olham porventura negativamente e porventura sem razão esclarecida. Se outros não sabem respeitar essas funções, respeitemo-las nós.
As férias judiciais foram encurtadas? Só há que tirar daí as devidas consequências pessoais, familiares e profissionais. É preciso reformular o trabalho em novos moldes, criando uma outra cultura judiciária e uma nova mentalidade, em que a profissão (dantes dizia-se que era «um sacerdócio») seja encarada com toda a seriedade e dignidade, mas sem «vampirizar» tudo o resto. Há mais vida para além dos processos. A alienação, no sentido kafkiano, resulta precisamente de se ver tudo através dos processos: «Estava tudo tão claro e estudado, que era como se todas as pessoas em seu redor se metessem num assunto que só a ele dizia respeito», escreve o escritor checo no «Fragmento do «Delegado do Procurador da República».
Quanto ao subsistema de saúde, está bem que se lute por direitos e interesses nessa área, mas sem fazer disso o busílis das preocupações profissionais.
O que sinto como mais intolerável em tudo o que se tem passado é a maneira fácil, demagógica e leviana como o governo levou tudo para o campo dos «privilégios» e pôs o acento tónico dos fracassos do sistema numa culpa presumida ou explícita dos magistrados. Com isso contribuiu para um aprofundamento da degradação da imagem da justiça e dos seus profissionais, do mesmo passo que enfraqueceu um dos pilares do Estado de direito democrático. Aí sinto-me atingido como profissional e como cidadão. Foi isso que permitiu uma escalada de ataque às magistraturas, que, em muitos casos, se assemelha a um linchamento. Hoje, entra-se em certos tribunais e vêem-se, nos elevadores, coisas escritas como esta: «Os juízes são corruptos e manguelas». Isso só foi possível pela «deriva» (passe o palavrão) que o governo propiciou com a sua falta de jeito ou mesmo com a sua calculada actuação.
Aí, sim, há uma dignidade ultrajada e «quem não se sente, não é filho de boa gente», lá diz o ditado. Mas institucionalmente é preciso encontrar os caminhos adequados a uma resposta que não fique prisioneira da lógica do governo e que, ao mesmo tempo, ateste a nossa maturidade cívica e a excelência das funções que exercemos não em nosso nome, mas dos mesmos cidadãos que nos olham porventura negativamente e porventura sem razão esclarecida. Se outros não sabem respeitar essas funções, respeitemo-las nós.