27 novembro 2005

 

Quem manipula o quê?

Quem manipula afinal o quê?




O meu amigo Manuel António Pina, que foi aqui evocado pelo João Paulo, escreveu há já uns dias uma crónica no Jornal de Notícias, em que abordava a questão recorrente das relações entre a comunicação social e a justiça e concluía que afinal não era só a justiça que estava em crise, mas também a comunicação social. Isto, a propósito do acórdão da Relação de Lisboa sobre o caso do arguido Paulo Pedroso e outros arguidos. Tendo lido o acórdão – porque o leu efectivamente – Manuel António Pina comparava a «manipulação grosseira» que o aresto imputaria ao Ministério Público ao célebre e burlesco arrastão de Cascais e dirigiu o seu apontamento crítico ao acórdão num outro sentido, formulado muito inteligentemente e sob forma interrogativa.
Ora, o que neste momento me interessa é a exploração sensacionalista e frequentemente deturpada que a comunicação social faz de certas decisões judiciais, seja porque está interessada num determinado ponto de vista (o tal jornalismo de causas, mas de más causas), seja porque pretende simplesmente criar impacto ou colher o cidadão de surpresa (o princípio do «soco no estômago», segundo um jornalista meu amigo, mas às vezes é muito mais do que um «soco no estômago), seja ainda porque a pressa é tanta, que não há tempo para parar um bocado e olhar, um momento, a paisagem. Já se viu um jornalista sobraçando cento e muitas páginas de acórdão a correr para a Lusa e a ter que ler essas cento e muita páginas? Não. Apanha em andamento umas linhas aqui e outras acolá e se calhar de topar algo que faça sangue ou que lhe pareça tal, tanto mais ele corre para a Lusa, a fim de chegar a tempo do telejornal da noite e pôr aquele sangue que entreviu a servir de aperitivo ao jantar dos telespectadores.
Assim é que se difundiu pela comunicação social que o célebre acórdão da Relação de Lisboa «arrasava o Ministério Público». Mas muito mais do que isso, já que o tema do arrasamento do Ministério Público tem servido de mote a diversos comentários da imprensa sobre decisões judiciais que apreciam a intervenção processual daquela magistratura: acusava o Ministério Público de «manipulação grosseira». Haveria, assim, «um salto qualitativo» na escalada do confronto entre as duas magistraturas: do arrasamento, que remete para um cenário bélico, em que, apesar de tudo, a demolição se passa ao nível da argumentação que se joga de um lado e do outro, passa-se para uma violação das regras do «jogo», uma verdadeira fraude praticada por um dos sujeitos processuais que tem a especial incumbência de fazer «jogo limpo», um aniquilamento da ética a todos os níveis – da ética deontológica e da ética do Estado de direito democrático, que tem na sua base o respeito supremo pelos direitos fundamentais do cidadão. Isto, a ser verdade, seria pura e simplesmente o fim. Talvez por isso mesmo é que houve logo uma série de profissionais da imprensa a adiantar as conclusões apocalípticas. Seria impossível ir mais longe na irresponsabilidade.
O mais grave é que desta forma se criam factos, ou seja, cria-se a própria realidade a partir da qual ninguém mais discute senão o facto criado pela comunicação social, sem se importar com o facto – esse, sim, real – que está pressupostamente na base da «informação». Quando o próprio Vital Moreira apadrinhou no seu blog a tese da «manipulação» (é certo que, logo que um juiz veio desmentir essa tese, apagou-a do ciberespaço e substituiu-a sorrateiramente por uma versão corrigida), que se há-de dizer do cidadão comum?
Mas, feitos os desmentidos pelos juízes desembargadores, algum jornalista ou órgão da comunicação social veio penitenciar-se?

Artur Costa





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