19 novembro 2005

 

Novo quadro para a política criminal (2) - O contexto constitucional


A circunstância de sob a anunciada Lei Quadro da Política Criminal se perspectivarem apenas alterações na lei ordinária e na criação de novos instrumentos normativos infra-legais, obriga a que seja importante recordar o quadro constitucional como o contexto sobre o qual tem de operar a discussão.
Desde logo o invocado art. 219.º, nº 1, da Constituição na redacção introduzida há 8 anos e que agora se «pretende desenvolver», ou seja a previsão de que (também) compete ao Ministério Público participar na execução da política criminal definida pelos órgãos de soberania, o que constitui uma solução de compromisso com dois vectores:
- Por um lado, a afirmação inequívoca de um postulado dirigido ao judiciário: A actuação da justiça, exercida por burocracias profissionais, não pode ganhar prevalência na articulação com os poderes democráticos e a circunstância de nalguns casos os órgãos judiciários realizarem as intenções político-criminais do sistema legal, por exemplo em sede de soluções de diversão e de sanções penais, não ilide antes reforça o postulado da sua subordinação ao programa político definido pelos órgãos de soberania politicamente conformadores e democraticamente legitimados, em particular a Assembleia da República através das suas leis;
- Por outro, uma restrição ao perigo de politização da justiça penal, com a expressa salvaguarda do princípio da reserva judiciária no foro penal, pelo que a participação do Ministério Público na execução da política criminal tem de se operar nos termos da lei e está vinculada, de forma expressa, ao respeito de dois princípios constitucionais, (a) a autonomia do Ministério Público e (b) o exercício da acção penal orientado pela legalidade.

A opção programática da Constituição em matéria de justiça penal tem uma implicação política ao estabelecer um complexo contexto operativo com diferentes órgãos constitucionais competentes e interdependentes o que gera exigências de escrutínio que, manifestamente, não têm sido satisfeitas. Défice de accountability, que, sublinhe-se, abrange não só o desempenho dos Tribunais, do Ministério Público e dos Conselhos Superiores (estes enquanto órgãos administrativos autónomos responsáveis pela gestão das magistraturas), mas também das instâncias de definição de política criminal, cuja legislação nunca tem sido sujeita a avaliação (nem autónoma, nem própria), e em particular do Governo (que além de participar na definição da política criminal, a executa através da política de segurança, órgão executivo responsável pela dotação de meios do judiciário e de quem dependem orgânica e disciplinarmente os órgãos de polícia criminal).
A efectivação de um sistema de prestação de contas de todas estas entidades que obste à diluição de responsabilidades e permita a fundada afinação do sistema é o que mais se impõe discutir. No fundo, superação de um estado de global e generalizada irresponsabilidade...

No plano jurídico, o aspecto mais controverso sobre os potenciais corolários jurídico-práticos da previsão expressa de que o MP participa na execução da política criminal definida pelos órgãos de soberania centra-se na reserva de lei. Há quem entenda que a referência aos termos da lei implique que os comandos normativos para o Ministério Público terão sempre de se operar na forma de lei. Em contraponto, pode preconizar-se que a Constituição a partir de 97 admite que a lei possa também constituir uma fonte mediata de outras orientações genéricas (guidelines) dirigidas ao Ministério Público por órgãos politicamente conformadores, em particular a Assembleia da República (que goza de reserva de competência nas áreas centrais de definição da política criminal).

A Lei Quadro parte desta segunda perspectiva, mas mesmo para quem considere que esse é um espaço de intervenção constitucionalmente autorizado (como é o caso deste postador), não pode deixar de reconhecer que a lei de enquadramento envolve um terreno complexo nos planos político e jurídico, pois mesmo nos casos de «reenvio dinâmico» (da Constituição para a lei ordinária) a vinculação do legislador tem de se aferir à luz de uma interpretação em conformidade constitucional (em particular no que respeita à política criminal de respeito do quadro de repartição funcional e de interdependência de órgãos do Estado).





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