03 dezembro 2005
Para uma nova justiça
ou de como pôr cobro às principais causas que enredam a nossa justiça penal e contribuem para o seu descrédito não só no nosso Reino como também nos outros Reinos no seio dos quais queremos implantar-nos com o reconquistado brilho a que temos jus.
Um dos graves problemas com que se vem debatendo a nossa justiça penal, contribuindo grandemente para o seu descrédito é, segundo se diz, não haver uma só justiça, mas duas: uma para os que desde sempre sofreram os seus rigores - quero eu dizer, os pobres, os mal-amados da sociedade, os que têm vida precária, os marginais, os imigrantes e os excluídos – e outra para os chamados «poderosos». Para os primeiros, a justiça é mais ou menos célere, diria mesmo simplificada nos procedimentos e pronta na condenação; para os segundos, é lenta, pesada, complexa e nunca mais chega ao fim. Em relação àqueles, o processo corre fácil e fluidamente, sem recurso a grandes expedientes, sem graves problematizações teóricas e mesmo sem muitas palavras (na maior parte dos casos, um «faça-se justiça» é quanto basta); em relação a estes, o procedimento é recheado de incidentes logo a partir do seu início, questiona-se tudo até à mais exacerbante minúcia, espiolha-se o processado com a mais sofisticada aparelhagem microscópica, levantam-se problemas do mais elevado quilate teórico, gastam-se, não rios, mas verdadeiros oceanos de palavras, percorrem-se todas as vias de impugnação e escalam-se todas as instâncias, para depois voltarem a ser percorridas em escala descendente e de novo subidas em progressão hierárquica. O seu mais relevante interesse reside no forte contributo que dão para o burilamento dos institutos de direito penal e processual penal, supostamente - mas só supostamente - revertendo em favor de todos. Mas, tirando isso, só originam o descrédito do sistema, tanto mais que esses casos – os dos chamados «poderosos» - são os mais badalados na comunicação social, por razões que facilmente serão descortináveis.
Pois bem!, ainda há dias o Nosso Senhor O Supremo Magistrado da Nação, preocupado com tal estado de coisas, falou na necessidade de tratar os «poderosos» tal-qualmente os outros cidadãos deste Reino e exortou mesmo os tribunais a tratá-los em pé de igualdade com eles. E é aqui que eu queria dar o meu modesto contributo de cidadão preocupado com o que vai pelo país para a solução de tão magno problema. Se mo permitem Vossas Excelências, a minha proposta é muito simples. Pura e simplesmente é esta: acabar com os «poderosos». E não é difícil. Bastará atentar em que são uma classe muito pouco numerosa, apesar dos grandes problemas que dá. Os poderosos nunca foram muitos; foram sempre poucos, muito poucos. Ora, não é justo que, por causa de tão poucos, a justiça se ensarilhe em tantas voltas e caia no pior descrédito em que pode cair: o de ter duas bitolas.
Acabar com os «poderosos» é a forma mais adequada e equilibrada de resolver o problema, creiam Vossas Excelências. De contrário, estaremos ainda a falar dele daqui a dez anos, outros tantos como os que já decorreram sempre a falar no mesmo. Mas não pensem Vossas Excelências que estou a referir-me a uma literal liquidação dos «poderosos» - encostá-los a uma parede e pum, pum, pum! Não. Sei bem que estamos numa democracia e num Estado de direito democrático. Acabar com os «poderosos» é um simples modo de dizer que significa «acabar» com o seu poder. Tirar-lhes os direitos que fazem deles tão poderosos, como o de contratarem causídicos a tempo inteiro, mobilizarem académicos para produzirem extensas laudas de eruditos pareceres, criarem incidentes processuais de todo o género, esgrimirem em todas as instâncias ordinárias e extraordinárias. É que, no fundo, nem se trata de direitos, mas de «privilégios», como agora soe dizer-se, pois os outros cidadãos, na sua esmagadora maioria, não têm esses tão eufemisticamente chamados «direitos». Por isso a justiça não perde tanto tempo com eles. De modo que «acabar com os poderosos» no honesto sentido que eu aqui pretendo significar não é senão uma forma escorreita de estabelecer o reino da igualdade no nosso Reino.
E com isto me despeço humildemente de Vossas Excelências até à próxima proposta que me ocorrer a bem do país e da nossa vetusta Nação.
(Jonathan Swift 1665 – 1745)
Um dos graves problemas com que se vem debatendo a nossa justiça penal, contribuindo grandemente para o seu descrédito é, segundo se diz, não haver uma só justiça, mas duas: uma para os que desde sempre sofreram os seus rigores - quero eu dizer, os pobres, os mal-amados da sociedade, os que têm vida precária, os marginais, os imigrantes e os excluídos – e outra para os chamados «poderosos». Para os primeiros, a justiça é mais ou menos célere, diria mesmo simplificada nos procedimentos e pronta na condenação; para os segundos, é lenta, pesada, complexa e nunca mais chega ao fim. Em relação àqueles, o processo corre fácil e fluidamente, sem recurso a grandes expedientes, sem graves problematizações teóricas e mesmo sem muitas palavras (na maior parte dos casos, um «faça-se justiça» é quanto basta); em relação a estes, o procedimento é recheado de incidentes logo a partir do seu início, questiona-se tudo até à mais exacerbante minúcia, espiolha-se o processado com a mais sofisticada aparelhagem microscópica, levantam-se problemas do mais elevado quilate teórico, gastam-se, não rios, mas verdadeiros oceanos de palavras, percorrem-se todas as vias de impugnação e escalam-se todas as instâncias, para depois voltarem a ser percorridas em escala descendente e de novo subidas em progressão hierárquica. O seu mais relevante interesse reside no forte contributo que dão para o burilamento dos institutos de direito penal e processual penal, supostamente - mas só supostamente - revertendo em favor de todos. Mas, tirando isso, só originam o descrédito do sistema, tanto mais que esses casos – os dos chamados «poderosos» - são os mais badalados na comunicação social, por razões que facilmente serão descortináveis.
Pois bem!, ainda há dias o Nosso Senhor O Supremo Magistrado da Nação, preocupado com tal estado de coisas, falou na necessidade de tratar os «poderosos» tal-qualmente os outros cidadãos deste Reino e exortou mesmo os tribunais a tratá-los em pé de igualdade com eles. E é aqui que eu queria dar o meu modesto contributo de cidadão preocupado com o que vai pelo país para a solução de tão magno problema. Se mo permitem Vossas Excelências, a minha proposta é muito simples. Pura e simplesmente é esta: acabar com os «poderosos». E não é difícil. Bastará atentar em que são uma classe muito pouco numerosa, apesar dos grandes problemas que dá. Os poderosos nunca foram muitos; foram sempre poucos, muito poucos. Ora, não é justo que, por causa de tão poucos, a justiça se ensarilhe em tantas voltas e caia no pior descrédito em que pode cair: o de ter duas bitolas.
Acabar com os «poderosos» é a forma mais adequada e equilibrada de resolver o problema, creiam Vossas Excelências. De contrário, estaremos ainda a falar dele daqui a dez anos, outros tantos como os que já decorreram sempre a falar no mesmo. Mas não pensem Vossas Excelências que estou a referir-me a uma literal liquidação dos «poderosos» - encostá-los a uma parede e pum, pum, pum! Não. Sei bem que estamos numa democracia e num Estado de direito democrático. Acabar com os «poderosos» é um simples modo de dizer que significa «acabar» com o seu poder. Tirar-lhes os direitos que fazem deles tão poderosos, como o de contratarem causídicos a tempo inteiro, mobilizarem académicos para produzirem extensas laudas de eruditos pareceres, criarem incidentes processuais de todo o género, esgrimirem em todas as instâncias ordinárias e extraordinárias. É que, no fundo, nem se trata de direitos, mas de «privilégios», como agora soe dizer-se, pois os outros cidadãos, na sua esmagadora maioria, não têm esses tão eufemisticamente chamados «direitos». Por isso a justiça não perde tanto tempo com eles. De modo que «acabar com os poderosos» no honesto sentido que eu aqui pretendo significar não é senão uma forma escorreita de estabelecer o reino da igualdade no nosso Reino.
E com isto me despeço humildemente de Vossas Excelências até à próxima proposta que me ocorrer a bem do país e da nossa vetusta Nação.
(Jonathan Swift 1665 – 1745)