05 março 2006

 

Manuel Teixeira-Gomes

Já neste blogue se discutiu o balanço dos mandatos presidenciais de Jorge Sampaio. Eu também quero meter uma colherada nesse assunto. Mas hoje quero apenas comentar o seu último acto público: a homenagem a Teixeira-Gomes. Esse acto tem particular significado porque é simultaneamente uma homenagem à coerência e integridade políticas e à cultura.
A 1ª República deu-nos uma galeria de presidentes ilustres, entre os quais se destacam as figuras de Teófilo Braga e de Bernardino Machado. Mas, dentre eles, Teixeira-Gomes é um caso muito especial. Como político, ele foi de um empenhamento cívico e de um rigor ético inexcedíveis. Foi precisamente isso que fez dele primeiro um exilado interno, na esteira de antecessores ilustres como Herculano e Antero e, depois, um exilado voluntário, de mal com a pátria por amor aos valores a que era fiel (isso de ser fiel a valores é hoje coisa anacrónica, como sabemos, a não ser que sejam valores financeiros, claro).
Como figura humana, Teixeira-Gomes desenhou um perfil de homem dado ao mesmo tempo às coisas do corpo e do espírito: um perfil tipicamente helénico, cosmopolita (no sentido kantiano, evidentemente), voluptuoso, pagão e amante das artes, numa harmonia que só os gregos de antigamente naturalmente conseguiam.
A sua faceta de escritor comunga destes valores. Embora não seja propriamente um ficcionista, deu-nos obras notáveis nessa área, como Maria Adelaide e Novelas Eróticas, nas quais o seu erotismo, o seu paganismo se espraiam livremente (embora de forma contida, como homem elegante e de gosto). A sua prosa, percorrendo os lugares desse Algarve mítico de outrora, ora desenhando figuras e episódios picarescos, ora vivências e mulheres voluptuosas, é de uma grande agilidade, de um cromatismo a versatilidade verdadeiramente raros na nossa literatura. Eu sei que são chavões. Mas eu faço prova do que digo: apresento de seguida um pequeno texto extraído de Inventário de Junho, 2ª ed., 1918, a que me limitei a actualizar a ortografia. Leiam e verão!
A terminar: não digo que tudo está bem quando acaba bem; mas Jorge Sampaio, ao proceder a esta homenagem, dignificou o seu mandato.


Vénus momentânea



Vento mareiro fresco, encapelando levemente a água em ondas verdes, floridas de espuma efémera. Aragem que sacia os pulmões…
À sombra de um leixão, deitado na areia seca e fina, eu lia versos, respirando o ar iodado, ou corria com a vista a curva do vasto horizonte, embalado pela canção cristalina do mar.
Perto da praia, o casco todo negro, pesado e sem graça, de um vapor, com uma grande bandeira vermelha desfraldada à popa, e logo o contraste: um iate cinzento-claro, que se balouça com elegância.
De todos os pontos do horizonte surgem a cada instante as velas dos batéis de pesca, velas agudas, que se cruzam como asas simbólicas, que se perseguem, que se reviram e param, que prosseguem dispersas, precipitadas, numa desordem de fuga, ou caminham regaladamente em grupos de conversa, e tudo vai direito á barra, cuja entrada estreita um rochedo esconde.
Outro batel, com a vela toda panda, sai, sozinho, a barra e entra no mar saltando sobre as ondas de vidro verde, franjadas de espuma, como cavalo fogoso que atravessa m prado cheio de erva.
O céu, de um azul intensíssimo, está como que esponjado de pequenas nuvens; a Ponta do Altar perfila-se com o seu recorte siracusano, e pouco a pouco, ao declinar do sol, acende-se em oiro.
Vai vazando a maré, alargando-se a mais e mais a faixa de areia molhada onde o céu se reflecte como num infinito espelho…
Era a hora da tarde em que os banhos recomeçam, e, como de costume, naquela raia cheia de recortados leixões, os banhistas despiam-se junto ás rochas, pendurando nelas o seu fato.
Em volta do leixão, a cuja sombra eu me acolhera, havia roupas de mulheres, que sem duvida pertenciam ao grupo de serranas que ali próximo, de mãos dadas e soltando gritos selvagens, tomavam à babugem da agua um desses infindáveis banhos aconselhados pelos preceitos da higiene sertaneja. Pareceu-me reconhecer nelas umas criaturas sem interesse, com quem amiúde me cruzara pelos caminhos, entre as quais sobressaía certa moça forte, feia e espadaúda, que andava sempre de olhos baixos, exibindo um pudor que ninguém certamente desejaria ofender.
Naturalmente, a minha vista não se distraía do encanto da paisagem ou da intimidade do livro, para seguir no banho as evoluções mais ou menos grotescas daquelas sereias, quanto a mim muito pouco ou nada voluptuárias, e foi assim que elas saíram do mar, e vieram para o leixão onde estava a sua roupa, e ao qual voltava costas, sem eu dar por tal.
De repente senti que alguém tossia, fazendo-o para chamar a minha atenção. Voltei-me instintivamente: era a serrana pudenda que se limpava, acocorada, numa anfractuosidade da rocha que formava nicho.
Tão depressa verificou que se encontrava em foco, ergueu-se, abriu os braços e soltou o lençol.
Prodígio de elegância, perfeição e graça escultural, se me patenteou então o seu corpo enrijecido pela frialdade da agua, cujas gotas ainda lhe escorriam pela carne marmórea. O peso da água afeiçoara-lhe na cabeça hirsuta um toucado de estatua antiga, e os seios disparavam como duas pombas que vão voar…
Impassível, sem um sorriso, e lentamente - tal uma estátua em pedestal móvel - ela rodou sobre si mesma, franqueando à minha vista sôfrega as mais secretas maravilhas do seu corpo.
Terminada a volta, agachou-se, meteu-se no lençol, e chamou por outra mulher que a veio limpar.
Daí a nada passava por mim já vestida - entrouxada nas suas vestimentas de serrana lorpa - arrastando os sapatos de bezerro, estúpida, a boca mole e inexpressiva, os olhos baixos…
Espreitei-a depois, no banho, vezes sem conto, a ver se a cena se repetia, mas inutilmente.
Outras tentativas, de natureza mais prática, foram igualmente infrutíferas…
Concluí que assistira, por acaso, à passagem pelo seu corpo de uma alma de nereida encontrada dentro de água e enganada pelo aspecto helénico daquela praia…





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