03 março 2006

 

De facto, o que parece não é...

Parece que, involuntariamente, feri uma susceptibilidade com o meu texto sobre Frida Kahlo. Ora, ao tecer um comentário, a pretexto da reprodução do quadro que a Dr.ª Carmo introduziu neste blogue com todo o êxito e entusiasmado empenho, fazendo-o acompanhar de uma pequena nota sobre a motivação da pintora, eu não pretendi fazer propriamente uma crítica. Pretendi apenas chamar a atenção para a relativização de todas as leituras e, de certo modo, para a irrelevância das motivações do (neste caso, da) artista. O quadro retrata uma situação de violência homicida (uma mulher nua, morta numa cama, toda ensanguentada, e ao lado, de pé e vestido, um homem com uma enorme faca numa das mãos e um sorriso macabro (diabólico?), que parece remeter para uma situação de gozo sádico).
Diz-se que a pintora se inspirou numa notícia que leu num jornal, em que um homem matou a mulher por ciúmes e, no tribunal, disse que foram apenas uns não sei quantos golpes. Foi esta narrativa que a Dr.ª Carmo introduziu como comentário à reprodução.
Diz-se também que a pintora pretendeu vingar-se da relação que o marido (Diego de Rivera) manteve com a irmã dela. Tomada de ciúmes, quem ela matou ali, simbolicamente, com todo o sadismo, foi a irmã.
Ora, o que eu pretendi dizer foi nada mais nada menos que uma obra de arte não remete para nada de exterior a ela e que as motivações do artista são só as motivações do artista. Numa grande parte dos casos, o artista nem sequer gosta de dar explicações sobre as suas motivações pessoais. Apresentada ao público, uma obra de arte deixa de ser do artista, e s leituras que dela se façam (necessariamente subjectivas e as mais das vezes sendo projecções do próprio intérprete) não têm nada a ver com essas motivações. Como diz Prado Coelho na sua crónica de ontem no «Público», a obra de arte pressupõe sempre uma assimetria entre quem a fez e quem a vê. E eu acrescentaria que as visões são tantas quantos os que a vêem ou lêem.
Foi exactamente isso que eu pretendi transmitir.
Acontece que a Dr.ª Carmo, segundo informa agora, teve presente, ao inserir a reprodução do quadro, entre outras situações (naturalmente), o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27/5/04 a que o quadro de Frida Kahlo poderia, segundo ela, servir de ilustração.
Porém, um acórdão do Supremo não é, manifestamente, uma obra de arte (ainda que tenha tido, neste caso, como Relator, um juiz reconhecidamente brilhante, e eu tenha sido um dos adjuntos, mas não acredito que a Dr.ª Carmo o soubesse, e mesmo que soubesse, era o mesmo; o mais certo é ter-se tratado daquilo que os surrealistas – já que falei de surrealismo, se calhar impropriamente, a propósito de Frida Kahlo – designavam de «acaso objectivo»). Ora, se é lícita qualquer leitura do quadro de Frida Kahlo, mais «engajada» ou menos «engajada», já não será assim com o acórdão do Supremo. E, manifestamente, a leitura que desse aresto faz a Dr.ª Carmo não é suportada pelo texto, mesmo ressalvadas as devidas distâncias. Na verdade, em nenhuma parte dele se diz que a violação dos deveres conjugais equivale a ou justifica «desconfianças de infidelidade». O que nele se diz, em contraposição a uma afirmação da decisão da 1ª instância, que referiu, tautologicamente, a violação dos deveres conjugais por parte do arguido, matando a vítima, é que, tendo esta vindo a recusar a manutenção de relações sexuais com o arguido, desde o regresso deste de França, conforme estava provado, sem que se soubesse o motivo dessa recusa, também configuraria violação dos deveres conjugais, sendo que o casamento implica, como toda a gente sabe, o comércio sexual e a sua recusa continuada pode ser motivo de divórcio. Em termos penais, afirmava-se que, não se sabendo o motivo daquela recusa, o que teria de beneficiar o arguido por força do principio «in dubio pro reo», e sendo o mesmo arguido um analfabeto, tal poderia «ajudar a explicar as dúvidas surgidas naquele espírito pouco iluminado sobre a infidelidade da mulher» (sic). Portanto, o que foi valorado em termos de atenuação da culpa, por força da dúvida, foi, no contexto sócio-cultural do arguido, o comportamento da mulher, aliado à suspeita que este teve de que ela lhe era infiel, por se recusar continuadamente a ter relações sexuais com ele, sem que alguma vez lhe explicasse o motivo.
O divórcio existe para essas situações, não se justificando, portanto, o homicídio da mulher? Com certeza. Mas alguma vez o homicídio é justificável, salvo nos casos em que intervenha alguma causa de justificação? E, estando nós em face de um crime de homicídio, não temos que valorar a conduta do agente de todos os ângulos, incluindo as condições pessoais do agente, o contexto económico, familiar, sócio-cultural, etc., tudo isso tendo influência em termos de culpa e de prevenção?
Ó Drª Carmo, podemos questionar a formulação da referida passagem do acórdão ( de resto, redigida com um cuidado e uma subtileza que raramente foram captados por uma opinião pública dominada pelo simplismo dos «media»). Podemos até, vá lá!, questionar a perspectiva em que aquela circunstância foi apreciada e valorada, mas daí até dizer que nele se faz a equiparação da violação dos deveres conjugais a suspeitas de infidelidade, sem ao menos passar tudo isso pela intermediação de uma personalidade, que era a que estava em causa no julgamento, francamente! Quanto a Frida Kahlo, pode pôr à vontade o quadro dela a ilustrar o acórdão, mas diga-me lá com franqueza: também não será um exagero?





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