27 fevereiro 2006

 

A propósito do termo do mandato presidencial, uma nota sobre processo criminal e intervenção política

A propósito do fim do exercício do presidente Jorge Sampaio, Guilherme da Fonseca analisou criticamente a actuação presidencial, nomeadamente, por força dos «episódios do chamado “Envelope 9”» e do «silêncio [...] acerca do “assalto” à redacção de um jornal diário».
Sem desenvolver o tema parece-me que a existência de um elemento comum aos dois eventos, e consequente conexão, não deve iludir uma autonomia jurídico-política entre os mesmos. Pelo que o quadro para uma intervenção presidencial altera-se radicalmente por força disso mesmo.

Se o pedido de esclarecimentos do Presidente da República, tal como a audição na Assembleia da República, decorre da dimensão política do cargo de Procurador-Geral da República (entenda-se ou não que a interrupção do mandato deste corresponde a um «impeachment», a uma ordinária decisão política ou a uma categoria intermédia), já a abertura e desenvolvimento de um concreto processo crime é (deve ser) marcado pelos estritos fins do processo penal. E aí é fundamental preservar a autonomia do sistema judiciário incompatível com ordens, instruções ou solicitações do poder político, competindo o controlo jurídico-constitucional em última instância ao Tribunal Constitucional.

Já a percepção, claramente maioritária na opinião publicada, de que as buscas ao jornal 24 horas e à residência de um jornalista mais não são do que «rusgas» ou «assaltos» violadores do segredo de jornalista e da liberdade de informação suscita outros problemas. O que se me apresenta como perturbador não é sequer a generalização de tais juízos críticos sobre um processo concreto ou determinados actores judiciários conhecidos do público e que estão nas más graças de quem opina, mas o pressuposto de base de que os magistrados intervenientes (que a maioria dos comentadores, tal como este «blogger», desconhece quem sejam) actuam de forma ilegal, violadora da Constituição, movidos por estrito desejo de vingança ou intimidação. O que tem subjacente um juízo global sobre a organização judiciária e seus agentes.

E aqui parece-me que é difícil deixar de pensar que este clima pode ter um considerável potencial intimidatório não dos visados pelas intervenções judiciárias mas das autoridades judiciárias (com paralelismo com o que se passará noutras paragens, mas com a agravante de se operar num Estado de instituições particularmente desprestigiadas). Ou, noutro tom, se felizmente as magistraturas não beneficiam de uma autoritária presunção de infalibilidade (embora continue a parecer-me que é importante definir também em abstracto e não à luz das estritas conveniências imediatas os limites das «verdades processuais»), a generalização de um princípio de desconfiança é muito problemático para o Estado de direito. E se é esse o ponto a que se chegou (ou a onde se quer chegar) é importante começar a pensar numa alternativa (a este modelo e/ou a estes agentes) em termos de sistema constitucional, pois um vazio judiciário de certo que não é desejável para uma réstea de interesse público.

O mandato presidencial de Jorge Sampaio terá sido marcado por uma tentativa de acção (independentemente da avaliação que se faça sobre o mérito da mesma) ainda no quadro procedimental da Constituição, o que obviamente colide com perspectivas mais substancialistas (sejam de esquerda ou de direita), que não se acomodam a tais limitações formais e que não lhe perdoam tal «estrangeirismo» tão pouco adaptado às «nossas tradições».





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