14 junho 2006

 

Notícias tímidas de tráfico de órgãos

O texto que se segue vem a propósito da notícia, de ontem e hoje, timidamente destacada, em meio de comunicação social (RTP 1 e 2), sobre o tráfico de órgãos nos EUA. Mas, convém lembrar que, o tráfico de órgãos acontece a nível mundial, em variados países, pecando a notícia pelo seu cariz redutor.

A pesquisa biomédica, seja clínica (com finalidades de diagnóstico ou de terapêutica de um paciente) ou não clínica (com finalidades puramente científicas, sem qualquer função de diagnóstico ou de terapêutica), visando promover o bem-estar do ser humano e uma progressiva melhoria da qualidade de vida – ou seja, prosseguindo um interesse da colectividade - vai sendo objecto de regulamentação diversa pela necessidade de “proteger a dignidade humana e a identidade”, bem como pela exigência de “garantir o respeito pela integridade e outros direitos e liberdades fundamentais” do ser humano.

Face à necessidade de incentivar e acompanhar os avanços da ciência médica, vários “diplomas” (uns com eficácia jurídica, outros sem ela, mas todos procurando uniformizar uma série de princípios a respeitar, bem como salvaguardar um mínimo de regras ou códigos de conduta), provenientes das mais diversas instituições internacionais (v.g. Nações Unidas, Organização Mundial de Saúde, Conselho da Europa, União Europeia), têm procurado estabelecer uma série de directrizes relativas a aspectos específicos e gerais da biomedicina. Isto porque também estão em causa, entre outros, princípios éticos, questões socio-culturais, filosóficas e outros interesses e valores que se prendem, designadamente, com convicções religiosas.

O interesse subjacente dos diversos Estados é, por um lado, promover a doação de órgãos e tecidos de origem humana, por a sua transplantação ser “parte integrante dos serviços de saúde” (permite salvar vidas) e, por outro, combater o tráfico, a comercialização de órgãos e tecidos de origem humana (neste sentido ver, entre outros, a Convenção de Oviedo, ratificada por Portugal e o seu Protocolo Adicional relativo ao transplante de órgãos e tecidos de origem humana, feito em Estrasburgo em 24/1/2002, este ainda não ratificado por Portugal).

Claro que os órgãos e tecidos de origem humana a transplantar tanto podem ser obtidos de pessoas vivas, como de pessoas falecidas (isto para não falar no “xenotransplante”). No caso das pessoas falecidas, estando em causa órgãos “vascularizados” (que para sobreviverem necessitam de fluxo sanguíneo), a colheita e o transplante têm de ser feitos em poucas horas: o que significa que é preciso fixar regras claras, transparentes e objectivas, sobre a verificação da morte (quanto a critérios médicos de morte cerebral, ver art. 12 da Lei nº 12/93 de 22/4, Declaração da Ordem dos Médicos publicada no DR I-B de 11/10/1994 e Lei nº 141/99 de 28/8) e sobre as condições em que essa colheita e transplante podem ser feitos (ver arts. 10 a 14 da cit. Lei nº 12/93, ver DL nº 244/94 de 26/9 quanto ao RENNDA e ver a Portaria nº 31/2002, de 8/1, quanto a autorização prévia do Ministro da Saúde, ouvida a OPT, para a actividade de colheita de tecidos ou órgãos de origem humana para fins de transplantação e para a actividade de transplantação).

Isto sem esquecer que, não obstante “o interesse terapêutico do receptor”, a colheita de órgãos e tecidos em pessoa viva, pelos riscos que acarreta para a saúde do dador, deve ser o último recurso, ou seja, apenas pode ser efectuada quando “essa colheita não possa provir do corpo de pessoa falecida”, nem exista outro “método terapêutico alternativo de eficácia comparável” (art. 19 da Convenção de Oviedo e art. 10 do Protocolo Adicional supra referido, não ratificado).

Por causa da escassez da maior parte dos órgãos e tecidos de origem humana susceptíveis de ser transplantados, a sua atribuição deve ser feita de acordo com “critérios médicos objectivos”, de forma transparente, para maximizar os benefícios da transplantação e para permitir um equitativo (sem discriminações) acesso dos doentes aos serviços de transplantes, tendo em atenção os registos existentes nas listas de espera oficiais e o interesse superior do paciente (receptor). Com interesse quanto à gestão das listas de espera e prazo de espera em matéria de transplante de órgãos, ver a Recomendação Rec (2001) 5.

Entre nós estará tudo claro e transparente? Uhm...

Mas continuemos. Estando em causa a dignidade humana (que se protege mesmo para além da morte) e o direito à saúde, a “cedência” de orgãos e tecidos deve ter uma natureza altruística, baseada na ideia de solidariedade, tendo presente que a pessoa não deve ser olhada como um objecto e, como tal, está fora do comércio jurídico. Essa gratuitidade será também uma forma de luta contra a exploração e o tráfico de orgãos e tecidos, assim se protegendo os “mais pobres”, os mais vulneráveis, que são os que estão sujeitos a práticas ilícitas (com recurso a violência, a coacção, a ameaça) de organizações criminosas.

Além disso há que salvaguardar o bem-estar e a saúde (segurança sanitária, direito aos cuidados de saúde e a seguimento médico mesmo depois da “colheita” e “transplante” do orgão ou tecido, direito à privacidade, direito à confidencialidade) quer do dador, quer do receptor.

Depois, quer o dador, quer o receptor, têm que estar “adequadamente informados quanto ao objectivo e à natureza da intervenção, bem como às suas consequências e riscos” (mesmo dos riscos imprevisíveis mas que podem acontecer), para poderem decidir em liberdade e de forma consciente, ou seja, para de forma autónoma prestarem um consentimento livre, esclarecido e inequívoco, o qual pode ser a todo o tempo livremente revogável (ver art. 8 da cit. Lei nº 12/93 e art. 5 da Convenção de Oviedo). O que exige, da parte do médico, uma informação leal, adequada e intelígivel. É que é o “direito à autodeterminação informacional” (art. 35 CRP) que está em causa e, portanto, é preciso proteger e respeitar. Da mesma forma há que respeitar “a vontade expressa de não ser informado” (ver art. 10 nº 2 da Convenção de Oviedo).

Só em situações excepcionais é permitida a colheita de órgãos (não vitais) ou substâncias não regeneráveis, como sucede entre nós, quando haja uma relação de parentesco até ao 3º grau (art. 6 nº 2 da cit. Lei nº 12/93 que é mais restritivo do que o art. 19 da Convenção de Oviedo). Mas, “a dádiva nunca é admitida quando, com elevado grau de probabilidade, envolver diminuição grave e permanente da integridade física e da saúde do dador (art. 6 nº 4 da cit. Lei nº 12/93). Ou seja, nas palavras do referido Protocolo Adicional à Convenção de Oviedo, “quando houver um sério risco para a vida ou para a saúde do dador” a colheita é proibida.

Muita gente não saberá (o que até agora não tem servido de escusa, apesar da ausência dass “campanhas de informação” a que se refere o art. 15 do DL nº 12/93) que “não tendo manifestado a qualidade de não dador” junto do Ministério da Saúde, passam a ser considerados como “potenciais dadores post mortem”. Mas, claro, essa falta de lealdade e transparência não interessará divulgar porque é elevada a escassez de órgãos e tecidos humanos, não obstante em muitas situações terem mais possibilidades de êxito os transplantes feitos a partir de colheitas em pessoas vivas do que das feitas em pessoas declaradas mortas.

Pois bem. Não obstante a necessidade de actualização da nossa legislação específica sobre esta matéria (o que não passa apenas pela previsão de uma incriminação, como acontece com o art. 160 do Anteprojecto de revisão do CP de 2006), a verdade é que basta ler as respostas (ou falta delas) a questionário feito em 2002 pelo Conselho da Europa aos seus Estados Membros, sobre o tráfico de órgãos (tornado público em 2/6/2004 e que pode ser encontrado no site do Conselho da Europa), para se perceber como o mesmo é tratado nos vários países, v.g. em Portugal.

Em 2002 e 2003 investigações sobre tráfico de órgãos praticamente não existiam e as que existiam (que ainda não tinham sido arquivadas por falta de provas) estavam em curso, em averiguações. Será ignorância minha, admito, mas, até aos dias de hoje, a situação não se deve ter alterado, apesar de todas as notícias (jornalísticas e outras) e dos relatórios de altas Instituições que a cada passo fazem eco do “tráfico de órgãos”.

De qualquer forma, alguém fiscaliza alguma coisa para saber se existem indícios de tráfico de órgãos no respectivo país?
Certamente que não será conveniente, nem haverá interesse (é elevada a penúria de órgãos), nem será prioridade na prevenção da criminalidade. Ou irão ser diferentes as propostas do governo português sobre política criminal?

Conclusão: quando o Anteprojecto de revisão ao CP entrar em vigor passaremos a ter uma bonita incriminação (que pune de alguma forma o tráfico de órgãos), mas, se tudo continuar na mesma, faltará a dita «matéria-prima» que preencha tal previsão.

Entretanto, o governo que não se esqueça de fazer, até 1/11/2006, a transposição a que se refere o artigo 7 da Directiva 2006/17/CE da Comissão, de 8/2/2006, publicada no JO L 38 de 9/2/2006.

E, já agora, porque é que, não obstante a iniciativa da República Helénica (JO C 100 de 26/4/2003, pp. 27 a 30), a União Europeia está a demorar tanto a aprovar e a publicar a “Decisão-Quadro relativa à prevenção e repressão do tráfico de órgãos e tecidos humanos?





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