03 julho 2006

 

Os humores da política criminal norte-americana: também a propósito da separação de poderes



Ocorreu-me a oportunidade deste apontamento na sequência de alguns “posts” do Dr. Mouraz Lopes, que vem abordando recentes desenvolvimentos gauleses em matéria de separação de poderes, que não podem, e não devem, deixar quem quer que seja sossegado com o constatado devir das coisas.
Ora, também nos E. U. A. se assiste a um encarniçado conflito entre poder judicial e poder executivo, em termos de se saber qual deles tem o papel preponderante – imagine-se – em matéria de determinação da pena a aplicar em processo penal. Como geralmente sucede, na América as coisas – as boas e as más – são sempre em grande. Não há meias tintas nem flacidez decisória. O mal, ou mais propriamente aquilo que quem tem o poder considera mal, é para se cortar. E logo pela raiz.
Vem isto a propósito do recente aresto United States v. Booker (2005) que, do ponto de vista macroscópico da política criminal, pode considerar-se o mais relevante dos últimos anos. Nele, decidiu o Supreme Court que as Federal Sentencing Guidelines não são obrigatórias para os juízes federais, mas constituem meras recomendações. Perguntar-se-á: onde está a transcendente relevância de tal decisão e qual o seu sentido último? Está em que ela é susceptível de estribar (ao menos) expectativa sobre a devolução do poder de sentenciar ao juiz, poder este que desde meados do séc. XIX e, de forma ainda mais evidente, desde a entrada em vigor das Fed. Sent. Guid.(1987) vem sendo transferido para o Ministério Público (designo-o assim, na experiência norte-americana, por mera comodidade), através do aumento, sem parança, da importância do sistema de negociação da declaração de culpa (vulgo, plea bargaining). O que quer dizer, que a relevância da decisão não pode ser apreendida sem se chamar à colação a evolução da política criminal norte-americana, em matéria de aplicação de penas, dos últimos 20/30 anos, para não ir mais longe.
Com efeito, no início dos anos 80 do século passado (o XX.º), quando já estava “em ponto de rebuçado” a descrença no ideal de reabilitação do delinquente, o Congresso decidiu criar uma nova entidade legislativa ao nível federal (a United States Sentencing Comission) e, coisa curiosa, criou-a no âmbito do poder judicial (!), como se lhe alterando a etiqueta lhe transmutasse a natureza. Nessa Comissão foram delegados poderes legislativos (o que, contra voto de vencido do justice Scalia, não foi considerado inconstitucional, por violação da doutrina da não delegação de poderes, em Mistretta v. United States, 1989), em termos de ela definir penas aplicáveis aos crimes federais, factores a levar em conta na medida da pena, atenuações, agravações, etc. A ideia foi substituir um sistema de indeterminate sentences (simpático para com o ideal da reabilitação), por um sistema de penalidades entre si muito apertadas (primeiro as guidelines, depois as mandatory minimum sentences), mais conformes os ventos político-criminais então na moda. Fê-lo, porém, de modo tal que o poder de determinar a pena se transferiu do juiz para o MP (órgão do “executive branch of Governement”), através do sistema de negociações, ao ponto de um influente autor vir dizer, muito recentemente, que os “prosecutors” são os “key sentencing decisionmakers”. Posto isto (e, de acordo com o que se vem opinando, em resposta a isso), o Supreme Court prolatou, Booker v. United States, que, ao considerar que as Fed. Sent. Guid. constituem meras recomendações dirigidas ao juiz (elas, não obstante a designação, eram obrigatórias para os juízes federais), em boa medida restabeleceu o status quo ante, isto é, ao menos nominalmente, devolveu o poder de sentenciar ao juiz.
Já se fala em “Post-Booker Era”, mas se tal decisão constitui um ponto de chegada ou um ponto de partida, só daqui a alguns anos pode avaliar-se.





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