29 setembro 2006
Tempos difíceis, escolhas difíceis
Recentemente (em 15.Fev.2006), o Tribunal Constitucional Federal alemão (TCA) debruçou-se sobre uma norma que constava de um diploma federal (Lei da Segurança nos Transportes Aéreos) que conferia ao ministro da defesa o poder de ordenar – ainda que, obviamente, como medida de último recurso – o abate de um avião de passageiros quando tivesse razões para crer que ele fora tomado por terroristas e que estes pretendiam usá-lo como arma contra pessoas, no solo. Portanto, uma norma notoriamente decalcada sobre as preocupações postas pelo 11/9 e com a qual se pretendia munir o Estado de um instrumento normativo supostamente capaz de responder a dilemas como o da ponderação entre a vida dos passageiros que seguissem no avião e a dos cidadão visados pelos terroristas no solo.
Trata-se, como se vê, de assunto que tem notórios pontos de contacto com a acalorada discussão em curso, nos E. U. A, sobre a admissibilidade da tortura, em casos extremos, e que parte invariavelmente de um cenário dilemático, que é o de saber se é jurídica e moralmente legítimo torturar um suspeito de terrorismo a fim de ele indicar o local onde se acha, na iminência de deflagrar, uma bomba relógio susceptível de provocar um grande número de vítimas inocentes (“ticking bomb hypotheticals”). A resposta que se dê a uma e outra hipótese dir-nos-á muito sobre a força de uma democracia, sabido que o resultado de uma tal avaliação é especialmente credível em tempos difíceis, perante situações trágicas e sob a pressão de uma opinião pública pouco inclinada a cuidados quanto à protecção das liberdades cívicas (segundo um inquérito levado a cabo nos E.U.A., 32% dos inquiridos mostrou-se favorável à tortura de suspeitos de terrorismo): em paz e bem nutridos, todos somos bons democratas.
É neste contexto, que a referida decisão do TCA, julgando desconforme com a Lei Fundamental a norma citada, se revela como uma luz de esperança de que, no combate ao terrorismo, as democracias não deitarão fora, juntamente com a água suja, o próprio bebé. Vários pontos da referida decisão poderiam ser realçados, mas julgo particularmente relevantes dois. Em primeiro lugar, merece atenção o facto de o TCA ter refutado o argumento de que os novos desafios postos pelo terrorismo global pudessem ser enquadrados no tópico da defesa, coisa a que a federação se ensaiava, como modo de poder chamar a si competência na matéria (na Alemanha, excepto no que respeita aos serviços de informações e controlo de fronteiras, as questões de segurança interna são competência dos Länder). Ou seja, tal como acontece nos E. U. A. (como já referi neste local, em 18.8.2006) com a chamada “Guerra ao Terror” (e com a “Guerra às Drogas”), também na Alemanha a legislatura julgou que alterando o nome alterava a coisa. O Tribunal não foi na conversa.
Outro ponto crucial da decisão – reveladora de algum activismo judicial, se se tiver em conta que a mera negação da competência da federação poderia ter fechado a questão, naquela espécie – foi o ter sublimado o valor (intangível) da dignidade humana, tal como proclamado (como entre nós) na Constituição Federal. Valor que – independentemente da sua relação com bens como a vida ou a liberdade – constitui, só por si, limite absoluto à intervenção do Estado, uma válvula de escape que, em extremos, permite subtrair o cidadão aos caprichos do Leviatã: matar os passageiros do avião com base na possível prevenção de um perigo grave (que, como tal, pode nem positivar-se em dano) é funcionalizá-los ao ponto de tratá-los como coisa, como parte do próprio avião, assim transformado em arma a abater. Breve, é negar-lhes a dignidade que se lhes não pode negar.
Em termos muito enxutos, e mais genéricos, a decisão em causa, lembra que, no limite, os valores colectivos (como a segurança) hão-de soçobrar perante os direitos individuais – um princípio que as verdadeiras democracias não podem perder de vista e que é comum ser olvidado pelos estados autoritários. Quaisquer excepções a esta ideia só podem contribuir para efectiva radicação e disseminação de uma cultura anti-liberal, que uma vez instalada dificilmente, ou só com impensáveis sacrifícios, se poderá extirpar.
Comentário àquela decisão do TCA, abordando estas e outras questões nela tratadas, pode ler-se aqui.