14 novembro 2006
A propósito da Universidade de Coimbra, do franquismo e do salazarismo
Vital Moreira num postal intitulado «A mancha de Coimbra», a propósito da notícia da retirada do título de «doutor honoris causa» concedido a Franco pela Universidade de Santiago de Compostela, lembra que esse título também foi concedido ao caudilho pela Universidade de Coimbra e interroga: «Por que não abrir os arquivos sobre as circunstâncias e os protagonistas dessa triste página da Universidade de Coimbra?». Ao ler esse texto, José Medeiros Ferreira parece entender que Vital Moreira «sugere que ela faça o mesmo» que a de Santiago de Compostela e, embora «sem discordar propriamente de Vital Moreira», defende que «só deviamos atacar o franquismo entre nós depois de termos feito o mesmo com o salazarismo doméstico».
O comentário de Medeiros Ferreira obriga Vital Moreira a suprir o «equívoco», esclarecendo que não propôs nem sugeriu a revogação do coimbrão doutoramento porque «a história não se desfaz, importando sim julgar o acontecimento».
O ameno diálogo de dois «bloggers» que, além de destacados actores políticos da III República são muito influentes no Portugal académico de hoje, o primeiro como jurista e segundo como historiador, suscitado por um pequeno evento, o doutoramento «honoris causa» de Francisco Franco, parece fluir para o tema muito maior do papel político da Universidade de Coimbra. Em especial num período «áureo» da sua Faculdade de Direito, segundo a fundamental história da Revista de Legislação e Jurisprudência escrita por Guilherme Braga da Cruz, depois de muitas dificuldades vividas no primeiro quartel do século XX. Nesses 48 anos a Faculda de Direito de Coimbra desempenhou uma determinante função legitimadora da ditadura militar (anti-liberal, anti-democrática e anti-individualista) e, além de constituir um centro fundamental na construção do edifício jurídico em que se sustentou o aparelho autoritário do Estado Novo, foi o principal o pólo de formação da respectiva cultura jurídica (num sistema que se fundou não só na «moralização» como na «juridificação» do poder e do Estado).
Se o episódio do doutoramento do caudilho, além de constituir uma «mancha», merece uma página na história da vetusta academia, compreende-se que, em particular no seu seio, exista algum desconforto no confronto com o papel da instituição nesses 48 anos, que para uma correspondência equitativa exigiria vários e volumosos volumes, ainda que de uma «triste» história, que merecem ser editados.
História que, paradoxalmente ou talvez não, compreenderá o período em que as faculdades de direito e em particular a de Coimbra maior peso terão tido no aparelho estatal, em que se desenvolveu um peculiar conceito de autonomia e autosuficiência, e de pretensa neutralização política do jurídico... Direito, mediador fundamental do autoritarismo que operou num regime tecnocrático que foi justamente apelidado de «catedrocracia» (Philippe C. Schmitter), ou seja a matéria fundamental de diversos «volumes», até porque neles mais do que a simples genealogia poderiam encontrar-se algumas chaves do presente de muitas instituições – trabalho que a ser empreendido, sublinhe-se, só tem sentido num quadro de liberdade e não com a intencionalidade de um julgamento oficializado da história.
PS- Relativamente à mini polémica verificada no Sine Die há uns meses parece que, afinal, o «movimento de reavivamento da memória democrática sobre o fascismo espanhol» compreende algum «desfazer da história», ou pelo menos, repetindo-me, a verdade que agora anima certos actos oficiais em Espanha «independentemente de corresponder a uma leitura fundada do passado, compreende uma proclamação que se me apresenta perturbadora, pois parece-me que só excepcionalmente podem ser cunhadas pelo Estado as “verdades históricas”».