14 agosto 2006
Memória e Estado – um comentário
Compreendendo os motivos de Ricardo Matos no seu postal «Memória», divirjo daquilo que suponho ser uma concordância com a opção do governo espanhol de fixação estadual da «verdade histórica» sobre a guerra civil.
Não, não se trata de uma crítica substancial, mas de estrita raiz procedimental, já que me parece que a fixação da «verdade histórica» pelo Estado, seja por tribunais no quadro de procedimentos judiciários (como já referi aqui) seja por outros órgãos, em particular os democraticamente legitimados, deve ser funcionalista e apenas se me afigura politicamente legitima se os fins forem concretizados na esfera dos interesses que devem ser prosseguidos pelos concretos entes estaduais (nos procedimentos estritamente judiciários relacionados com a produção de determinados efeitos jurídicos baseados em dados, factuais e normativos, do passado, no caso da política com uma intencionalidade de intervenção sobre o presente e, essencialmente, sobre o futuro) .
Percebe-se que a assunção de uma leitura do passado seja expressa em opções de intervenção política do Estado, por exemplo uma rotura constitucional em que se revoga o sistema precedente considerado não democrático, o ressarcimento de vítimas de repressão política de um outro regime através de pensões ou outras compensações. Mas o factor inovador da iniciativa do governo de Zapatero passa pela inscrição pelo Estado da «verdade histórica» enquanto valor por si (o «reconhecimento geral»), que, independentemente de corresponder a uma leitura fundada do passado, compreende uma proclamação que se me apresenta perturbadora, pois parece-me que só excepcionalmente podem ser cunhadas pelo Estado as «verdades históricas» (e mesmo nos casos em que existe uma forte maioria e factos que a ancoram solidamente a «verdade histórica» a sua fixação, e consequente proibição da «mentira», suscita problemas de legitimidade, vejam-se as controvérsias sobre a ilegalidade e repressão do negacionismo que já foi discutida no Sine Die).
Isto não significa irrelevar a importância da história e da memória e ainda aqui há pouco tempo concluí convictamente um texto com a conhecida frase de Santayana «those who cannot remember the past are condemned to repeat it», mas, tão só, um entendimento sobre os limites da acção do Estado, que não deve ser de proclamação da «verdade» (mesmo quando pessoalmente se concorde com a versão «legalmente» fixada).
Ou dito de outra forma, a circunstância de eventualmente concordar com a «verdade histórica» de Zapatero não me tem de levar a defender que essa «verdade» seja fixada pelo governo espanhol, a não ser que tal prossiga um concreto objectivo político que vá além da «verdade» – o que não me parece manifestamente o caso do «reconhecimento geral» em 2006 do que se passou na guerra civil...
É óbvio que estamos em terrenos pantanosos e que a pretensão de uma absoluta neutralidade do Estado, e em particular da sua política cultural, é irrealista. Mas a ainda assim existe espaço para a destrinça entre a actividade administrativa de preservação de elementos da memória (como do edifício onde actuou a polícia política repressiva do Estado Novo, que me parece constituir uma responsabilidade comunitária do Estado) e a proclamação por lei do que se passou, dos bons e dos maus, numa guerra... entre um e outro exemplo talvez se encerre a linha do que é legítimo e ilegítimo.
Não, não se trata de uma crítica substancial, mas de estrita raiz procedimental, já que me parece que a fixação da «verdade histórica» pelo Estado, seja por tribunais no quadro de procedimentos judiciários (como já referi aqui) seja por outros órgãos, em particular os democraticamente legitimados, deve ser funcionalista e apenas se me afigura politicamente legitima se os fins forem concretizados na esfera dos interesses que devem ser prosseguidos pelos concretos entes estaduais (nos procedimentos estritamente judiciários relacionados com a produção de determinados efeitos jurídicos baseados em dados, factuais e normativos, do passado, no caso da política com uma intencionalidade de intervenção sobre o presente e, essencialmente, sobre o futuro) .
Percebe-se que a assunção de uma leitura do passado seja expressa em opções de intervenção política do Estado, por exemplo uma rotura constitucional em que se revoga o sistema precedente considerado não democrático, o ressarcimento de vítimas de repressão política de um outro regime através de pensões ou outras compensações. Mas o factor inovador da iniciativa do governo de Zapatero passa pela inscrição pelo Estado da «verdade histórica» enquanto valor por si (o «reconhecimento geral»), que, independentemente de corresponder a uma leitura fundada do passado, compreende uma proclamação que se me apresenta perturbadora, pois parece-me que só excepcionalmente podem ser cunhadas pelo Estado as «verdades históricas» (e mesmo nos casos em que existe uma forte maioria e factos que a ancoram solidamente a «verdade histórica» a sua fixação, e consequente proibição da «mentira», suscita problemas de legitimidade, vejam-se as controvérsias sobre a ilegalidade e repressão do negacionismo que já foi discutida no Sine Die).
Isto não significa irrelevar a importância da história e da memória e ainda aqui há pouco tempo concluí convictamente um texto com a conhecida frase de Santayana «those who cannot remember the past are condemned to repeat it», mas, tão só, um entendimento sobre os limites da acção do Estado, que não deve ser de proclamação da «verdade» (mesmo quando pessoalmente se concorde com a versão «legalmente» fixada).
Ou dito de outra forma, a circunstância de eventualmente concordar com a «verdade histórica» de Zapatero não me tem de levar a defender que essa «verdade» seja fixada pelo governo espanhol, a não ser que tal prossiga um concreto objectivo político que vá além da «verdade» – o que não me parece manifestamente o caso do «reconhecimento geral» em 2006 do que se passou na guerra civil...
É óbvio que estamos em terrenos pantanosos e que a pretensão de uma absoluta neutralidade do Estado, e em particular da sua política cultural, é irrealista. Mas a ainda assim existe espaço para a destrinça entre a actividade administrativa de preservação de elementos da memória (como do edifício onde actuou a polícia política repressiva do Estado Novo, que me parece constituir uma responsabilidade comunitária do Estado) e a proclamação por lei do que se passou, dos bons e dos maus, numa guerra... entre um e outro exemplo talvez se encerre a linha do que é legítimo e ilegítimo.