18 janeiro 2007

 

Um testemunho sobre uma decisão polémica

Este blogue, sendo fundamentalmente de magistrados, também dá guarida a críticas sobre a administração da justiça. Neste sentido, aqui se publicam sem comentários as duas crónicas seguintes:



O Crime de amar de mais

É a justiça que temos e os juízes (alguns juízes) que temos. Um homem foi ontem condenado em Torres Novas a seis anos de prisão por se recusar a entregar a um desconhecido, o pai biológico, uma menina de cinco anos de quem, abandonada pela mãe, esquecida pelo pai, ele e sua mulher cuidam desde os três meses de idade. O pai biológico nunca quis saber da gravidez da mulher com quem tinha tido o que, entre risinhos, chama de “caso casual”. Só viu a bebé duas vezes, de passagem, uma quando foi chamado a fazer testes de ADN, outra, dois anos depois. Agora, em vésperas de a criança fazer cinco anos, decidiu reclamá-la. E o tribunal pura e simplesmente, mandou que ela lhe fosse entregue, apesar de os psicólogos dizerem que arrancá-la àqueles que ela considera seus pais e entregá-la a um desconhecido, será “dilacerante”.
Para evitar à filha adoptiva (o processo de adopção estava em curso) a dilacerante separação, Luís recusa-se a revelar o seu paradeiro. Porque os juízes (alguns deles) já não fazem justiça, são meros burocratas da lei. E a lei de tais juízes tanto dá para condenar a uma multa de 720 euros um polícia que matou um homem a tiro como para mandar seis anos para a cadeia quem, como Luís, comete o crime de amar de mais.

Manuel António Pina, Jornal de Notícias de 17 de Janeiro de 2007


Lei e justiça

O facto de certas decisões judiciais confrontarem sentimentos elementares de justiça da sociedade é uma das causas de perda da autoridade da lei e do descrédito dos juízes. A condenação a seis anos de prisão, por um tribunal de Torres Novas, de um homem cujo “crime” à luz da consciência moral comum, foi amar uma criança abandonada pela mãe e esquecida pelo pai, que ele criou como filha desde os três meses de idade, a ponto de preferir a cadeia a entregá-la a um desconhecido (o pai biológico, que só apareceu a reclamá-la anos após ela ter sido entregue para adopção), põe em crise não só o consenso entre o cidadão e a lei como a sua confiança na própria “Justiça”.
Deve o cidadão – pergunta Thoreau – desistir da sua consciência, mesmo só por um instante e em última instância, e dobrar-se ao legislador? Por que é então o homem dotado de consciência?” Quando a lei é injusta, o lugar dos justos é na prisão, mas, mais do que com a lei (que, aliás, previa meios para que tivesse sido feita justiça), Luís, o pai adoptivo, está, como Sócrates, em desavença com os juízes, e também ele se ofereceu à cicuta. Decerto nunca terá lido Thoreau (nem Rawls), mas o seu gesto de desobediência civil situa-se no eixo central do próprio fundamento moral da democracia.

Manuel António Pina, Jornal de Notícias de 18 de Janeiro de 2007





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