09 fevereiro 2007

 

Dos bons baixos salários

Ou de como os baixos salários do nosso povo são um trunfo inesperado para o estabelecimento de relações cordiais e sobretudo comerciais com outros povos dos confins da Terra, que o extraordinário progresso do nosso tempo tornou mais próximos do que alguma vez se imaginou.

Desta vez, a proposta não é minha, e bem pena tenho que a autoria me tenha sido sonegada por quem, com um inegável brilho, se adiantou a fazê-la. Refiro-me à proposta do nosso Senhor D. Manuel Pinho, o ilustre e sempre ilustrado ministro da Economia do nosso reino.
Dá-se o caso de, viajando pelas longínquas terras do império chino com o nosso ilustríssimo primeiro-ministro, aquele discreto, mas eficaz membro do nosso governo ter aproveitado o ensejo para propor a venda de um produto que tanto pode contribuir para dilatar o nosso comércio com os povos daqueles reinos do Levante. Refiro-me à mão-de-obra lusíada. Aquele nosso respeitável ministro, com o intento de atrair o investimento da gente china ao nosso reino não se cansou de exaltar o aspecto sedutor dessa nossa veniaga: barata, encantadora e muito boa para quem queira tirar dela um partido recompensador, ou seja, em termos menos ortodoxos nos tempos que correm, uma boa taxa de exploração.
Sempre movido pelo desejo de encarecimento patriótico dessa nossa referida mercadoria, o nosso simpático ministro falou sobretudo do seu extraordinário embaratecimento (coisa aparentemente paradoxal, na medida em que a estava a encarecer) e, levado por esse abnegado espírito de patriotismo, não hesitou mesmo em revelar nesses territórios distantes a verdade que, por modéstia, não ousaria dizer de portas adentro: a mão-de-obra lusíada é uma das mais baratas da Europa.
Coisa extraordinária e sobretudo verdadeira! Nós, que nunca conseguimos atrelar a carruagem (que digo eu?... a traquitana) do nosso reino à marcha do progresso dos principais reinos europeus, com excepção daquele período da nossa História em que, dando novos mundos ao Mundo, descobrimos as sonhadas Índias, voltamos a ter agora um motivo que nos põe na dianteira dessa mesma Europa: a barateza da nossa mão-de-obra. Poucos são os países europeus que se nos avantajam a essa riqueza singular. Os nossos trabalhadores são mal pagos, mas eis que reside aí um pólo de atracção para o investimento estrangeiro no nosso reino. E não qualquer investimento estrangeiro, mas o investimento desse fabuloso continente em ascensão que é o império chino, tão justamente conhecido pela agressiva competitividade com que entra na nova ordem global, devido ao nível baixo dos salários dos seus trabalhadores e aos nulos direitos de que desfrutam, os quais só como empecilhos ou obstáculos ao progresso dos novos tempos se podem conceber. Daí que o nosso atento D. Manuel Pinho tenha muito justamente acoimado os sindicatos, que tão malevolamente reagiram à sua patriótica proposta (as gazetas da informação são muito rápidas, hoje, a difundir as boas novas) de “forças de atraso”. Fê-lo com aquele ar de serenidade imperturbável que o caracteriza em todas as circunstâncias, mesmo as mais adversas, mesmo as mais caricatas.
Tratando-se de despachar a nossa veniaga, ainda para mais no remoto império chino, podia o ilustre ministro do nosso reino não se ter dado ao trabalho de encarecer tanto os nossos baixos salários, parecendo que estava a doirar de mais a pílula, como soi dizer-se, mas manda a boa verdade que se diga que o que o moveu foi uma honesta e recta intenção, pois que justamente baixos são os salários dos nossos trabalhadores e não outra cousa, de forma que o nosso ministro estava rigorosamente a dar o valor exacto à nossa mercadoria e não a dourá-la sem pudor, ao contrário daqueles que, movidos da cobiça, lançam mão de imundas e baixas cousas, a ponto de venderem o próprio esterco dos homens como excelente veniaga, como assinalou o nosso aventureiro Fernão Mendes Pinto, quando andou vagueando por aquelas paragens.
De sorte que o nosso reino, com a sagaz proposta do nosso ministro, foi de certeza guindado a grande altura, nação ilustre entre as nações da Europa, não sendo fora de propósito a invocação, aqui, daqueles versos do nosso épico, gravados para sempre como uma exaltação do nosso valor: “E julgareis qual é mais excelente/ Se ser do mundo Rei, se de tal gente”.

Jonathan Swift (1665 – 1745)





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