10 dezembro 2008

 

60º Aniversário da DUDH

I. Diz-se, com alguma dose de razão, que a “respeitabilidade” só se atinge aos 60 anos.
Provavelmente porque a respeitabilidade pode advir do facto de se ter ultrapassado a esperança média de vida, da relevância de uma vivência individual ou socialmente activa solidificada ou como consequência de um percurso criativo fecundo e reconhecido.
A Declaração Universal dos Direitos do Homem (DUDH), aprovada, como se sabe em 1948, tem sido desde o momento em que foi criada o farol que guia todo o quadro jurídico mundial no âmbito da protecção dos direitos fundamentais dos cidadãos.
Dos cidadãos de um mundo em que muitos têm como única tábua de salvação esse documento, nomeadamente em países estilhaçados por guerras, ditaduras e outras situações onde os direitos do cidadão são simplesmente postos de lado sem qualquer hesitação em favor da permanência de interesses quase sempre egoisticamente individuais.

II. Como se sabe depois da Constituição da República Portuguesa de 1976, no seu artigo 16º nº 2, referir expressamente que “os preceitos constitucionais e legais relativos aos direitos fundamentais devem ser interpretados e integrados de harmonia com a Declaração Universal dos Direitos do Homem”, apenas em 9 de Março de 1978 a DUDH foi publicada no Diário da República, seguindo-se em 12 de Junho do mesmo ano a publicação do pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, de 16 de Dezembro de 1966 e a 11 de Julho a publicação do Pacto Internacional de Direitos Económicos, Sociais e Culturais, de 16 de Dezembro de 1966.
A DUDH, e os documentos que se lhe seguiram, através do seu quadro normativo foi e continua a ser o pilar estrutural onde se sustenta o conjunto de garantias fundamentais que concretizam o Estado de Direito. Concretização que na Europa teve o seu reflexo na Convenção Europeia dos Direitos do Homem e sobretudo uma efectividade notável com a instituição do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem e o que tem sido a sua pragmática na imposição e solidificação de uma vasta jurisprudência garantistica, constituindo hoje uma elemento fundamental na aplicação e verificação dos direitos humanos na Europa e, consequentemente, em Portugal.

III. Pode dizer-se que quase todo o quadro legislativo essencial que vigora no sistema de justiça em Portugal, como noutros Estados democráticos, respeita os princípios estatuídos na DUDH.
Restringindo-nos ao sistema penal, a Constituição, em primeiro lugar, o Código Penal de 1982 e o Código de Processo Penal de 1987 trazem na sua estrutura a marca fundante dos princípios estabelecidos na DUDH.
Julgo puder dizer-se que, com mais ou menos alteração não teremos que prestar contas sobre a não compatibilidade das normas que integram aqueles diplomas fundamentais com os vários Princípios fundamentais consagrados na DUDH que estabelecem as garantias correspondentes.
Um senão para referir a perplexidade de em termos legais – e só estamos a falar em termos legais – o sistema penitenciário português continuar a estar longe de respeitar alguns dos princípios estabelecidos em 1948 pela DUDH. O anacronismo de uma legislação posterior à Constituição – estamos a falar da legislação penitenciária essencialmente de 1978 – permite que se possa afirmar, como tem repetido o TEDH, que de algum modo a justiça se encontra, ainda, “à porta das prisões”. (i) Ausência quase sistemática de direitos de defesa dos reclusos, (ii) restrições de direitos incompatíveis com o principio de que a execução da pena de prisão tem que respeitar o princípio de que as pessoas detidas conservam todos os direitos, salvo aqueles que decorrem da sentença condenatória e da colocação em detenção, (iii) ausência da consagração de um processo justo penitenciário, são algumas das omissões legislativas incompreensíveis à luz dos princípios contidos na DUDH que já deveriam ter sido corrigidas.

IV. A questão fundamental, no entanto, como vem sendo hoje tratado por muitos autores prende-se, não com a consagração de um sistema normativo, mas com a sua efectividade ou seja a verificação pragmática da aplicação do direito.
Na avaliação do estado do direito, mas também de um Estado de Direito, será hipócrita não percepcionar que é sobre a law in action e não sobre a law in books que uma afirmação realista do «direito ao direito» se deve primordialmente afirmar.
É na pergunta do como concretizar a efectividade da protecção dos direitos humanos, mais do que na sua proclamação normativa, que reside o «nó do problema».
Aqui as questões são efectivamente menos satisfatórias. E se o são sobretudo para os cidadãos, são-no também para quem no sistema político constitucional tem como função primordial assegurar em concreto e diariamente a tutela dos direitos fundamentais do cidadão num quadro legal supranacional que «partilha de valores comuns» e que não podem, a qualquer título ser postos de lado.
Ao juiz a questão da aplicação da lei e dos seus princípios não surje apenas como um conjunto de palavras bem intencionadas que tem formalmente que cumprir. Porque na sua aplicação diária, é perante um cidadão com um nome, com um rosto, com uma personalidade que as suas decisões são confrontadas. Cidadão que espera do juiz que não assuma a lei apenas como um livro, que seja tratado naquele momento como o único ente a quem é dirigida a aplicação da lei em concreto. «Ser tudo para cada um durante a breve duração de uma audiência, fazer do mundo uma tábua rasa onde apenas existiam nesse momento aquele banqueiro, aquele veterano, aquela viúva», disse-nos Marguerite Yourcenar.
Daí que faça sentido continuar a formular algumas perguntas.
Nomeadamente se faz sentido hoje, à luz dos princípios de um julgamento justo e nessa medida célere, que o cidadão possa estar meses e por vezes anos à espera de uma oportunidade para uma decisão sobre questões que o atingem na sua vida familiar, no seu património, na sua propriedade.
Se faz sentido esperar tanto tempo por respostas sociais, que deveriam ser imediatas, que reponham em termos adequados as fracturas evidenciadas nos casos de menores desprotegidos.
Se faz sentido manter homens e mulheres declarados inimputáveis perigosos em estabelecimentos de saúde que pouco mais são do que depósitos que ninguém quer conhecer, que ninguém reclama que quase todos pretendem evitar e onde aqueles homens e aquelas mulheres, sob a calma de um potente fármaco se limitam a esperar que o tempo passe.
Se será possível afirmar que não é degradante o cumprimento de uma pena de prisão em estabelecimentos prisionais sobrelotados e onde ainda hoje existem baldes higiénicos. Se é possível afirmar que a lei protege adequadamente um recluso no cumprimento da sua pena quando na mesma cela, quando não no mesmo beliche, se encontra outro recluso que sofre de doença crónica grave e facilmente transmissível. Se é possível afirmar que não é desumana uma pena de prisão onde não é dado ao recluso qualquer resposta de reinserção pelo trabalho para além do próprio isolamento da sociedade durante o período da pena.
Mas porque nos Estados de Direito Democráticos a não efectividade dos direitos humanos provém, ainda assim, menos dos poderes públicos e mais dos sujeitos individuais, o direito à indignação surge com maior ressonância se nos perguntarmos como será possível continuar a ver o número brutal de mulheres assassinadas em Portugal sem questionar o princípio do direito à vida e à segurança e a sua defesa num Estado Constitucional.
A constatação de que outros países (e muitos são esses outros, diga-se) estão confrontados com situações de violações bem mais graves de direitos humanos não pode ser uma resignação conformadora para nada fazer.
Sobretudo para quem, nos tribunais, como locais onde se pretende fazer justiça, é confrontado todos os dias com situações graves de violações de direitos humanos tendo apenas como resposta possível muitas vezes não mais do que uma sentença de papel.

V. Assumir a protecção dos direitos fundamentais e os direitos humanos em geral como fonte de legitimação da intervenção judiciária é hoje um princípio adquirido pela dogmática garantista como função essencial dos Tribunais.
Não se trata no entanto da proclamação de um garantismo unilateral apenas centrado na defesa do arguido, mais do que no direito das vítimas, esquecendo «que valor humano não é apenas o réu mas também e não menos a vítima».
Os Tribunais legitimam-se pela aplicação da Lei sendo esta não apenas a face visível das normas legislativas emanadas dos Parlamentos mas sobretudo aquele conjunto de normas e princípios que consagram direitos fundamentais de todos os cidadãos, independentemente de geografias, credos, raças, sexos e o papel que desempenham num processo.
Uma sociedade multicultural assenta no respeito e na garantia dos princípios comuns onde circulam as mais variadas formas de viver.
Os documentos internacionais que estabelecem direitos fundamentais de uma forma inequívoca, como é o caso da DUDH, pela sua admirável capacidade de serem adaptados ao mosaico multicultural que são hoje as sociedades democráticas constituem eles próprios documentos respeitáveis.
Longa vida para a DUDH.

(resumo da intervenção na sessão organizada pela Delegação de Santarém da Ordem dos Advogados e Associação Forense de Santerém em 9 de Dezembro de 2008)





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