30 junho 2009
"Atravessamos tempos de incerteza"
O notabilíssimo discurso proferido no dia 25 passado pelo Cons. Henriques Gaspar na sua posse como Vice-Presidente reeleito do STJ merece ser lido e meditado, pelos "de dentro" e pelos "de fora".
Não foi um "texto de circunstância", foi uma reflexão profunda sobre a circunstância que vivemos.
Aqui vai o texto integral. Lê-lo não é perder tempo. E como seria bom que tantos plumitivos que diariamente, ou quase, peroram sobre a justiça o lessem...
Claro que isso seria pedir muito.
Senhor Presidente,
Senhores Conselheiros,
Senhoras e Senhores:
Atravessamos tempos de incertezas.
A força do efémero, a incapacidade de prever e dominar os golpes do destino, o sentimento de solidão perante o infortúnio individual e a privatização acrescida das dificuldades, com cada um entregue a si mesmo, produzem intranquilidades e adensam os medos.
A insegurança do presente e do futuro toma conta do quotidiano das pessoas, tornando intimidativa a tarefa de gestão dos medos – da inadequação, do desemprego, dos riscos insuportáveis da pobreza (nova ou velha), o medo da humilhação e da exclusão.
A angústia pelo temor da retracção das protecções do Estado social, como construção típica da «modernidade sólida», transformou o presente em «presente líquido» (Zygmunt Bauman).
Hoje, as democracias têm de saber fazer a gestão da complexa insegurança moderna – feita muito de insegurança existencial e de medos difusos e endémicos.
No «presente líquido», prenhe de crises, desaguou, dizem que sem aviso, a crise financeira de Outubro passado, com todas as pesadas consequências na economia e na vida de quase todos.
Crise que se apresentou com a marca do caos.
Do caos financeiro em que, como escrevia Denis Muzet no “Nouvel Observateur” de 8 de Janeiro, «a aparente irrealidade dos factos, a sua origem misteriosa, o carácter virtual dos actores e o montante astronómico das somas – as perdidas como as comprometidas em socorro de instituições financeiras – confundem os espíritos, ultrapassam a razão e acrescentam uma dose suplementar de absurdo».
E do caos da dissolução das referências em que se ancorava a estabilidade de um modo de organização da sociedade.
E também uma crise que toca o indivíduo na dimensão ética.
A crise foi o lugar de convergência de todos os perigos e o ponto de encontro dos excessos e da desregulamentação.
A dimensão da crise que nos foi servida desagregou o sentido do real.
A crise, por tudo isto, é de confiança. Que por sua vez é resultado de uma crise de valores – de valores seguros como a previsibilidade, a prudência, a equidade e a solidariedade social, que cimentavam a segurança e os equilíbrios das sociedades.
Perguntar-nos-emos, então, o que tem esta crise que ver com a Justiça.
Responderei que tem muito ou quase tudo.
É que a crise de confiança contamina a vida colectiva e afecta todas as instituições.
E a Justiça sofre a erosão agravada dos efeitos da crise de confiança, porque é e tem de continuar a ser a última instância de recomposição e de resguardo da confiança, em sociedades de incerteza assoladas por pânicos sociais e morais mais ou menos difusos.
A confiança, como «instituição invisível», dá força à dimensão das expectativas de cidadania, e marca a capacidade de reconhecimento das instituições.
Mas os tempos são de validações negativas, frágeis e voláteis, e de afirmação dos poderes de recusa em democracias de confrontação e de culpabilização.
A afirmação de poderes não institucionais, ou em expressão marcada, de “contra-poderes”, que têm por característica funcional distanciarem-se e repelirem as instituições, elimina as mediações, com a consequente desvalorização dos poderes tradicionais.
A democracia limita a democracia.
O cepticismo generalizado marca esta época e anda de par com a inquietude e a acentuação das linhas de fractura.
As expectativas dos cidadãos e as enormes exigências que transferem para as instituições conduzem, paradoxalmente, à deslegitimação dos poderes a que se dirigem.
Os sentimentos difusos de injustiça, em que os excessos de emoção obscurecem a razão das coisas, saturam o quotidiano.
Reclamam-se outras utopias erguidas em vez do ideal democrático.
A transparência, a denúncia e as exigências de responsabilização sempre mais insistentes, tornaram-se nos valores da exterioridade essencial e da intervenção popular, ficcionando-se o povo como vigilante através de outras mediações opostas à mediação institucional.
A suspeita e a denúncia constituíram-se em novas virtudes políticas alimentando o sentimento de impaciência dos cidadãos.
Mas a democracia imediata e simples, que é servida com a aparência sedutora da intervenção popular como quase-instituição sem mediações, não constitui mais do que patologia exaltada da suspeita sistemática e da obsessão pelo novo valor da transparência.
Criam-se emocionalmente «ultra-realidades» ou meta-factos em real ficcionado que bloqueiam a razão da análise.
A democracia de fiscalização, de «soberania negativa» e vigilância exacerbada, em estigmatização compulsiva e permanente da autoridade, pode levar por direitas linhas ao populismo, como manifestação destruidora da ideia de verificação e de controlo dos poderes.
A exigência de escrutínio funcional e a elaboração intelectual sobre as formas de controlo institucional, reduzindo a entropia representativa, não constituem, no entanto, a marca de água das sociedades actuais marcadas pela presença obsidiante da comunicação.
Basta revisitar Benjamin Constant na efervescência intelectual e política post-revolucionária de há dois séculos, e passar pela reconstrução teórica de Rosanvallon através da cunhagem e densificação do conceito de «contra-democracia».
O controlo da acção das instituições decorre, neste tempo, da presença activa e permanente da opinião pública, com todas as derivas pseudo-representativas. O fórum ou os “discursos directos” que enchem a emissão de manhãs ou tardes do áudio-visual aí estão a revelar uma patologia de pseudo-representações.
A opinião pública apresenta-se, no entanto, como expressão da vontade geral e constitui-se numa espécie de espaço e lei em que qualquer um se quer sentir ou ser juiz ou ministro – em expressão marcada, o «povo-juiz».
A fragilização da confiança afecta da forma mais intensa as instituições judiciárias.
Tal como outros poderes institucionais, as instituições de justiça estão expostas à fiscalização cívica e de regulação, através de fluxos contínuos de avaliações e de críticas, por interacção da comunicação social ou de grupos inorgânicos de génese avulsa, em alerta e protesto em tempos de crise e conflituais.
O crescente desassossego do presente, especialmente nos últimos três lustros, reflecte-se acentuadamente nas instituições judiciárias, pelo encontro cruzado de novas exigências com a emergência de uma auto-centrada “indústria da avaliação”.
As instituições judiciárias ficaram no centro do julgamento e da exigência de fiscalização, em que se pressente alguma contradição entre a «atribuição ex ante de confiança» e o «exercício ex post de desconfiança».
A avaliação séria e objectiva, que confronta a instituição consigo mesma na resposta às expectativas dos cidadãos, constitui factor de recomposição e auxílio no cumprimento da missão de servir melhor.
Contrariando pré-compreensões que por aí se ouvem a circular, os magistrados estão habituados ao embate de fortes críticas, porque o seu é um lugar de tensões e de permanente tomada de decisões.
Mas a imputação da generalização negativista sem pressupostos nem conteúdo, ou a culpabilização gratuita e sem rigor de análise, afectam de forma devastadora a credibilidade.
E, nos últimos meses, a intensidade do afrontamento - na opinião, nos editoriais, no tratamento mediático, nas intervenções de responsáveis vários em «vituperação absurda» ou generalizações totalitárias, querendo transformar em Razão a agregação de avulsas “pequenas razões” – atingiu níveis e dimensão de ruptura.
Parece, em projecção externa, que existe uma espécie de convergência estratégica objectiva para descredibilização das instituições de justiça.
Tudo a que temos assistido surpreende verdadeiramente pela aparente concertação, pela extensão e pelo mimetismo de quem parece querer estar na moda do politicamente correcto do dia, exautorando o sistema de justiça, fonte jurada de todos os males.
E, no entanto, não deve existir na sociedade portuguesa sector onde a distância entre a realidade efectiva e a percepção da opinião é tão brutal.
Mas não surpreende.
Está nos livros.
Foi assim sempre que a Justiça pretendeu realizar a igualdade, desconsiderou pactos genéticos por regra agarrados ao simbolismo de ineficácia de algumas leis, ou quando deixou de ser o «poder nulo» ou a «boca inerte» que diz as palavras da lei.
A assimetria das condições de intervenção e a diferenciação radical do espaço e dos tempos, têm remetido as instituições judiciais para um acantonamento defensivo, quando não para uma atitude passiva perante a intensidade do afrontamento.
Em registo que, pelas exigências da nossa posição, tem de ser muito rigoroso no discurso e no conteúdo, na forma e na substância, devemos reequilibrar a intervenção e, porque não, exercer o contraditório.
Para tanto, devemos insistir na desconstrução de alguns mitos, que em tempos de crise, paradoxalmente, assumem força simbólica pela sua fragilidade racional.
É que as representações da justiça coincidem, por demais, com estereótipos.
E ao real construído, que na repetição faz imposição, deve ser contraposta, com insistência e determinação, uma mensagem de rigor.
A começar pela acusação de falta de transparência e da ausência de escrutínio.
Temos que afirmar, com toda a clareza, para quem quiser ver, de boa-fé, que a realização da justiça é, porventura, a mais transparente das missões de Estado.
Mas, por elementar honestidade intelectual, não se pode assimilar transparência a um “voyeurismo” imediato e primário em projecção populista e inconsequente.
A Justiça não tem segredos. Mesmo a exclusão da publicidade no processo penal é hoje a excepção e de tempo curto, abrindo-se de seguida o processo a quem demonstrar legítimo interesse. Mas legítimo interesse não pode confundir-se com curiosidade de baixo perfil.
A administração da justiça é pública.
A publicidade constitui, aliás, um dos elementos constitutivos do processo equitativo, inscrito como garantia constitucional.
A justiça administra-se sempre através do processo; o processo constitui um espaço de garantia dos interessados e dos cidadãos.
Garantia dos interessados, porque é no processo e apenas pelo processo, conduzido segundo regras pré-estabelecidas, que todos podem exercer os seus direitos, expondo as suas pretensões com inteira igualdade, sob o controlo de regularidade de um juiz imparcial.
Garantia dos cidadãos, porque o processo permite a verificação e o escrutínio externo quanto ao modo como a justiça é administrada.
O processo constitui um espaço democrático; poderemos dizer, o espaço paradigmático de confronto democrático, onde qualquer um que pretenda exercer um direito que julga seu pode intervir em plena igualdade.
No processo, os interessados são todos ouvidos por igual, na mesma dimensão de liberdade dentro das regras estabelecidas, independentemente de, fora do processo, terem possibilidade de falar mais alto ou de poderem fazer-se ouvir melhor.
O escrutínio externo da justiça, se quiser ser responsável e intelectualmente sério, tem de ser feito pelo processo e através do conjunto dos seus elementos, sem urgências do imediato, sem fragmentação das referências, sem unilateralidade das análises e sem manipulação ou selecção arbitrária dos factos.
Por isso, não é escrutínio nem informação, a imputação isolada, a conclusão definitiva assente no pormenor substancialmente irrelevante, ou, como temos visto a propósito de recentes decisões de tribunais, a montagem de espectáculos eticamente vazios e democraticamente dissolventes (obscenos, no sentido etimológico, usado por Régis Debray, em “L’obscénité democratique”), de onde, sem pudor deontológico, «se fazem escorrer emoções e pathos».
Outro mito que é urgente desfazer, resultado de estereótipo construído por afirmações repetidas sem fundamento e sem contraditório, está na responsabilização da justiça pelo mau desempenho da economia.
Se outras razões de demonstração não houvessem, a instalação e o retrato da crise financeira e económica dissolveu o mito.
Não foram, como sem responsabilidade cívica proclamam algumas afirmações por aí escritas e faladas, a ineficiência ou a ineficácia da justiça que provocaram a crise.
Na génese da crise pesaram violações de normas éticas, imponderados comportamentos de risco, incompetência e mesmo a perda do sentido da decência, tudo somado a regulação insuficiente e a supervisão deficiente – como salientou o Senhor Presidente da República em recente intervenção (17 de Abril do 2009, no 4º Congresso da ACEGE).
Foi a exploração do tempo curto através de um «comércio de vento».
Com empobrecimento de quase todos.
Bem ao contrário das ideias feitas, é a crise que condiciona e produz dificuldades acrescidas na resposta das instituições judiciais.
A crise gera conflitos que exigem recomposição.
Matérias que envolvem responsabilidade de natureza penal, direitos em crise pela ignorância dos riscos ou da natureza dos «produtos tóxicos», execução de decisões e solvabilidade de créditos, recuperação de empresas e insolvências, ou a garantia dos direitos afectados de trabalhadores, irão exigir certamente intervenção acrescida e adequação dos meios orgânicos e humanos nas respostas.
A má compreensão da justiça na opinião e nas representações, em interacção de causa e efeito, tem permitido afirmações de extraordinário desconchavo.
Por exemplo, a afirmação em recente artigo de opinião, que a reputação da justiça portuguesa no estrangeiro é «medíocre e risível».
A afirmação é gratuita e muito pouco responsável. E será talvez fundada em algum impressionismo primário, bebido do consabido estatuto de rigor de um qualquer “tablóide” inglês.
Quem estiver interessado, se o rigor e o cuidado intelectual importarem, pode informar-se e ver que a justiça portuguesa é parte inteira no diálogo judicial europeu, colabora em igualdade com as várias justiças tanto da Europa como de outras latitudes, participa activamente em projectos comuns, tem estado na primeira linha da colaboração e da construção da justiça na Europa; a jurisprudência nacional é reconhecida e, por vezes, até precedente no espaço de liberdade, segurança e justiça.
Há meio ano, nesta tribuna, em cerimónia que assinalou o 30º aniversário da vigência em Portugal da CEDH, o Presidente do TEDH quis salientar o cuidado das jurisdições nacionais na protecção de valores fundamentais.
Orgulhamo-nos desta partilha de valores e de linguagem comum e do reconhecimento da justiça portuguesa no concerto das justiças europeias.
Acusa-se a justiça de ser lenta e burocrática.
A percepção está instalada, e este será o indicador que no próximo futuro teremos de melhor cuidar.
Mas, por cuidado elementar, haverá que sublinhar que a actual situação é muito melhor do que a existente há poucos anos, e que os indicadores de avaliação de que dispomos permitem projectar uma evolução positiva.
As dificuldades, hoje, já não são sistémicas.
A resposta dos tribunais superiores, e em particular do Supremo Tribunal, será, porventura, das melhores de todos os 47 Estados do Conselho da Europa, com tempos de resolução de dois -quatro meses, e com uma excelente relação tempo/produtividade/qualidade, que merece o respeito e a admiração das delegações estrangeiras que nos visitam, e que connosco querem partilhar ideias, experiências e soluções.
Por seu lado, o Relatório de 2008 da CEPEJ, do Conselho da Europa, que trata os dados de 2006, situa a taxa de resolução dos processos cíveis em primeira instância em 112%, ao nível das três melhores em termos comparados.
E relativamente a processos cíveis e criminais, a tendência em 2007 e 2008 vai no mesmo sentido, como mostram os elementos estatísticos disponíveis.
Não obstante, o indicador relativo aos tempos de duração dos processos cíveis em primeira instância, que supera o ponto médio em termos europeus, tem de merecer algum cuidado na identificação e resolução dos bloqueios pontuais que perturbam as leituras globais.
Os números impressivos do contencioso de massa gerado pelos grandes utilizadores do sistema de justiça, constituem, certamente, um factor de gestão difícil, que perturba uma leitura positiva sobre a eficiência.
Mas, do outro lado do problema, as referências comparadas indicam-nos que o contencioso nuclear é resolvido em tempos que podem ser qualificados como excelentes.
Senhores Conselheiros,
Senhoras e Senhores:
As instituições de justiça têm de saber compreender e interpretar os sinais de desconfiança democrática, perceber e reverter os desvios de racionalidade e apreender as expectativas dos cidadãos.
A justiça tem de ser para todos e tem de ser compreendida por todos.
Tem de estar adaptada às evoluções da sociedade, à natureza de outros contenciosos, à nova complexidade de velhos problemas, e responder à missão de apaziguamento social na resolução do conflito.
A Justiça do séc. XXI só pode ser construída como justiça de qualidade, eficaz e efectiva.
A eficácia do sistema de justiça deve partir de indicadores sócio-económicos e traduzir uma relação de efectividade entre os serviços e os destinatários.
O regime de acesso ao direito e de acesso à justiça constitui um indicador de primeira linha.
A eficácia da justiça será tanto mais concretizada quanto mais disponível for o acesso ao conhecimento dos direitos e das possibilidades de intervenção para a realização e concretização dos direitos individuais, em particular dos mais desfavorecidos económica e socialmente.
As críticas à morosidade são recorrentes e, por isso, impõe-se cuidar este indicador, isolando os problemas onde existam, para encontrar os mecanismos adequados de intervenção.
A maleabilidade da gestão dos meios materiais, mas sobretudo dos meios humanos, pode ser necessária para uma resposta atempada.
Sem «fetichismo dos números», tendo sempre presente que a justiça precisa de tempo – o tempo razoável.
É certo que as regras do processo são cronófagas e contrárias aos ritmos de aceleração das sociedades do imediato.
Mas na natureza instrumental do processo devemos procurar os equilíbrios exigidos pela garantia dos direitos e pela realização de boa justiça.
A celeridade não poderá ser a primeira das prioridades, porque uma justiça urgente gera riscos de afectação de direitos.
A qualidade da justiça é factor decisivo da confiança.
E constitui um dos elementos essenciais da qualidade da democracia.
Não é fácil definir a noção de qualidade. E, no entanto, é pela qualidade processual e substancial que se marcará a eficácia da decisão.
A qualidade depende do nível discursivo da actividade judiciária, do valor jurídico, da fundamentação das decisões e da consideração que revelem por direitos fundamentais.
Decisões que sejam claras e precisas, fundamentadas e compreensíveis, inteligíveis mesmo na complexidade, axiologicamente comprometidas, mas neutras na linguagem.
A expressão de estados de alma, o comentário lateral, avulso, desinserido e sem préstimo argumentativo, desviam as percepções do essencial para a sedução do pormenor inútil, perturbam a legibilidade e fragilizam a aceitação das decisões.
A coerência da jurisprudência, que dá segurança e acrescenta confiança, será um índice relevante de qualidade. Impõe-se, por isso, melhorar a coordenação da jurisprudência no seio das jurisdições como factor de certeza, de previsibilidade e de igualdade.
A concretização do direito à execução é também inerente à qualidade e directamente instrumental da eficácia das decisões.
A eficiência e a eficácia são factores essenciais da confiança.
Mas a confiança é também sentimento, a «instituição invisível» que devemos tornar visível e solidificar.
É urgente, por isso, uma estratégia que permita inverter o desregramento da má informação e da opinião mal avisada, que são factores de descredibilização do sistema de justiça.
Num editorial de Março passado, o jornal “Expresso” salientava que uma das tarefas do poder político, dos magistrados e de toda a sociedade, sem excluir a comunicação social, que dizia ser «parte importante do caminho perigoso» do descrédito, é credibilizar a justiça.
Todos estaremos de acordo.
A exigência de credibilização foi, uma vez mais, referida pelo Senhor Presidente da República na mensagem de 10 de Junho.
Esta imposição democrática a todos convoca como imperativo categórico.
Lemos por aí que se prepara a abertura de uma frente de obra que certamente nos chamará na defesa de princípios constitutivos do Estado de Direito.
Está de novo, na agenda, a exigência de melhor responsabilização democrática dos juízes.
A instituição judicial constitui, estruturalmente, o paradigma da instituição de ponderação e de imparcialidade, que encontra a sua legitimidade democrática na exclusiva submissão à lei, na credibilidade, na qualidade e na confiança.
O declínio da confiança resulta, por regra, do sentimento de que a instituição se tornou menos objectiva, mais politizada ou partidária, ou que prossegue finalidades que se desviam dos princípios da independência e imparcialidade.
É pelas qualidades e pelo exercício quotidiano que as instituições de ponderação e de imparcialidade se legitimam.
Mas a agenda sobre a responsabilização democrática dos magistrados, afixada agora nos muros da política do dia, pode esconder por debaixo uma outra agenda bem diversa.
A agenda das forças que convivem mal com a independência dos tribunais, com afivelados desígnios marcados de jacobinismo tardio e pós-moderno.
Deveremos, então, recordar o tempo inaugural deste Supremo Tribunal, e repetir a mensagem forte do histórico documento de 14 de Agosto de 1844 - a carta do seu primeiro presidente e dos seus juízes à Rainha, verdadeiro acto fundador da independência judicial: a independência não constitui privilégio dos juízes, mas direito fundamental dos cidadãos.
Senhores Conselheiros:
As instituições são a única realidade de sobrevivência e de perenidade.
Não somos nós.
Mas na transitoriedade e circunstância das nossas vidas, cabe-nos a honra maior de servir o Supremo Tribunal e os cidadãos – o povo em nome de quem administramos a justiça.
Nesta missão, permitam-me que faça nosso o caderno de encargos do juiz Aharon Barak para a função do supremo tribunal numa democracia.
Os juízes devem agir de modo a manter a confiança do povo.
Devem compreender que julgar não constitui apenas uma função, mas uma forma de vida; uma forma de vida que não é compatível com a procura de riqueza material ou de notoriedade pública, mas que visa a riqueza espiritual e que exige uma busca incessante, objectiva e imparcial da verdade.
Uma forma de vida que se guia pela razão e não pela imposição, pela modéstia e não pelo domínio, pela composição e não pela força, pela reputação e não pela fortuna, pelo compromisso com valores e princípios e não pelo desejo de agradar, pela lei geral e igual para todos e não pela demissão perante grupos de interesses, por decisões apoiadas num conjunto de valores e princípios fundamentais e não sob a influência passageira da espuma das coisas.
E com renúncias, especialmente no que respeita à aceitação de restrições à liberdade de expressão.
O nosso dever – e nossa honra sem outra recompensa que não seja a tranquilidade da consciência – será saber, assim, homenagear os nossos maiores. Que são as eminentes figuras da vida nacional que serviram nesta Casa Maior da Justiça ao longo de quase dois séculos.
E transmitir aos que nos sucederem o prestígio intacto da instituição.
Mais pelo exemplo do que por palavras.
Na competência, na atitude, nos comportamentos, na firmeza tranquila, na reserva, mas também em sociedade de medos e conformismo, na coragem do combate que se nos imponha por princípios fundamentais.
Senhor Presidente,
Senhores Conselheiros,
Senhoras e Senhores:
Esgotei o espaço que a vossa tolerância me dispensou.
Terminarei.
A justiça ideal deve ser, a um tempo, aplicada em cada época, mas intemporal, sob pena de se tornar escrava da opinião.
E tem de ser a força serena contra arranjos e manobras em sociedades de manobras e arranjos.
A História ensina-nos que a liberdade e a democracia podem morrer na rua sob o aplauso ruidoso das multidões.
Mas sabemos também que uma Justiça prestigiada e forte é condição e garantia de liberdade.
Porque o futuro está no presente.
Assumindo o dever de inteligência e recusando a atracção intelectual pelo pessimismo, estaremos à altura dos desafios deste tempo.
(António Henriques Gaspar)
Não foi um "texto de circunstância", foi uma reflexão profunda sobre a circunstância que vivemos.
Aqui vai o texto integral. Lê-lo não é perder tempo. E como seria bom que tantos plumitivos que diariamente, ou quase, peroram sobre a justiça o lessem...
Claro que isso seria pedir muito.
Senhor Presidente,
Senhores Conselheiros,
Senhoras e Senhores:
Atravessamos tempos de incertezas.
A força do efémero, a incapacidade de prever e dominar os golpes do destino, o sentimento de solidão perante o infortúnio individual e a privatização acrescida das dificuldades, com cada um entregue a si mesmo, produzem intranquilidades e adensam os medos.
A insegurança do presente e do futuro toma conta do quotidiano das pessoas, tornando intimidativa a tarefa de gestão dos medos – da inadequação, do desemprego, dos riscos insuportáveis da pobreza (nova ou velha), o medo da humilhação e da exclusão.
A angústia pelo temor da retracção das protecções do Estado social, como construção típica da «modernidade sólida», transformou o presente em «presente líquido» (Zygmunt Bauman).
Hoje, as democracias têm de saber fazer a gestão da complexa insegurança moderna – feita muito de insegurança existencial e de medos difusos e endémicos.
No «presente líquido», prenhe de crises, desaguou, dizem que sem aviso, a crise financeira de Outubro passado, com todas as pesadas consequências na economia e na vida de quase todos.
Crise que se apresentou com a marca do caos.
Do caos financeiro em que, como escrevia Denis Muzet no “Nouvel Observateur” de 8 de Janeiro, «a aparente irrealidade dos factos, a sua origem misteriosa, o carácter virtual dos actores e o montante astronómico das somas – as perdidas como as comprometidas em socorro de instituições financeiras – confundem os espíritos, ultrapassam a razão e acrescentam uma dose suplementar de absurdo».
E do caos da dissolução das referências em que se ancorava a estabilidade de um modo de organização da sociedade.
E também uma crise que toca o indivíduo na dimensão ética.
A crise foi o lugar de convergência de todos os perigos e o ponto de encontro dos excessos e da desregulamentação.
A dimensão da crise que nos foi servida desagregou o sentido do real.
A crise, por tudo isto, é de confiança. Que por sua vez é resultado de uma crise de valores – de valores seguros como a previsibilidade, a prudência, a equidade e a solidariedade social, que cimentavam a segurança e os equilíbrios das sociedades.
Perguntar-nos-emos, então, o que tem esta crise que ver com a Justiça.
Responderei que tem muito ou quase tudo.
É que a crise de confiança contamina a vida colectiva e afecta todas as instituições.
E a Justiça sofre a erosão agravada dos efeitos da crise de confiança, porque é e tem de continuar a ser a última instância de recomposição e de resguardo da confiança, em sociedades de incerteza assoladas por pânicos sociais e morais mais ou menos difusos.
A confiança, como «instituição invisível», dá força à dimensão das expectativas de cidadania, e marca a capacidade de reconhecimento das instituições.
Mas os tempos são de validações negativas, frágeis e voláteis, e de afirmação dos poderes de recusa em democracias de confrontação e de culpabilização.
A afirmação de poderes não institucionais, ou em expressão marcada, de “contra-poderes”, que têm por característica funcional distanciarem-se e repelirem as instituições, elimina as mediações, com a consequente desvalorização dos poderes tradicionais.
A democracia limita a democracia.
O cepticismo generalizado marca esta época e anda de par com a inquietude e a acentuação das linhas de fractura.
As expectativas dos cidadãos e as enormes exigências que transferem para as instituições conduzem, paradoxalmente, à deslegitimação dos poderes a que se dirigem.
Os sentimentos difusos de injustiça, em que os excessos de emoção obscurecem a razão das coisas, saturam o quotidiano.
Reclamam-se outras utopias erguidas em vez do ideal democrático.
A transparência, a denúncia e as exigências de responsabilização sempre mais insistentes, tornaram-se nos valores da exterioridade essencial e da intervenção popular, ficcionando-se o povo como vigilante através de outras mediações opostas à mediação institucional.
A suspeita e a denúncia constituíram-se em novas virtudes políticas alimentando o sentimento de impaciência dos cidadãos.
Mas a democracia imediata e simples, que é servida com a aparência sedutora da intervenção popular como quase-instituição sem mediações, não constitui mais do que patologia exaltada da suspeita sistemática e da obsessão pelo novo valor da transparência.
Criam-se emocionalmente «ultra-realidades» ou meta-factos em real ficcionado que bloqueiam a razão da análise.
A democracia de fiscalização, de «soberania negativa» e vigilância exacerbada, em estigmatização compulsiva e permanente da autoridade, pode levar por direitas linhas ao populismo, como manifestação destruidora da ideia de verificação e de controlo dos poderes.
A exigência de escrutínio funcional e a elaboração intelectual sobre as formas de controlo institucional, reduzindo a entropia representativa, não constituem, no entanto, a marca de água das sociedades actuais marcadas pela presença obsidiante da comunicação.
Basta revisitar Benjamin Constant na efervescência intelectual e política post-revolucionária de há dois séculos, e passar pela reconstrução teórica de Rosanvallon através da cunhagem e densificação do conceito de «contra-democracia».
O controlo da acção das instituições decorre, neste tempo, da presença activa e permanente da opinião pública, com todas as derivas pseudo-representativas. O fórum ou os “discursos directos” que enchem a emissão de manhãs ou tardes do áudio-visual aí estão a revelar uma patologia de pseudo-representações.
A opinião pública apresenta-se, no entanto, como expressão da vontade geral e constitui-se numa espécie de espaço e lei em que qualquer um se quer sentir ou ser juiz ou ministro – em expressão marcada, o «povo-juiz».
A fragilização da confiança afecta da forma mais intensa as instituições judiciárias.
Tal como outros poderes institucionais, as instituições de justiça estão expostas à fiscalização cívica e de regulação, através de fluxos contínuos de avaliações e de críticas, por interacção da comunicação social ou de grupos inorgânicos de génese avulsa, em alerta e protesto em tempos de crise e conflituais.
O crescente desassossego do presente, especialmente nos últimos três lustros, reflecte-se acentuadamente nas instituições judiciárias, pelo encontro cruzado de novas exigências com a emergência de uma auto-centrada “indústria da avaliação”.
As instituições judiciárias ficaram no centro do julgamento e da exigência de fiscalização, em que se pressente alguma contradição entre a «atribuição ex ante de confiança» e o «exercício ex post de desconfiança».
A avaliação séria e objectiva, que confronta a instituição consigo mesma na resposta às expectativas dos cidadãos, constitui factor de recomposição e auxílio no cumprimento da missão de servir melhor.
Contrariando pré-compreensões que por aí se ouvem a circular, os magistrados estão habituados ao embate de fortes críticas, porque o seu é um lugar de tensões e de permanente tomada de decisões.
Mas a imputação da generalização negativista sem pressupostos nem conteúdo, ou a culpabilização gratuita e sem rigor de análise, afectam de forma devastadora a credibilidade.
E, nos últimos meses, a intensidade do afrontamento - na opinião, nos editoriais, no tratamento mediático, nas intervenções de responsáveis vários em «vituperação absurda» ou generalizações totalitárias, querendo transformar em Razão a agregação de avulsas “pequenas razões” – atingiu níveis e dimensão de ruptura.
Parece, em projecção externa, que existe uma espécie de convergência estratégica objectiva para descredibilização das instituições de justiça.
Tudo a que temos assistido surpreende verdadeiramente pela aparente concertação, pela extensão e pelo mimetismo de quem parece querer estar na moda do politicamente correcto do dia, exautorando o sistema de justiça, fonte jurada de todos os males.
E, no entanto, não deve existir na sociedade portuguesa sector onde a distância entre a realidade efectiva e a percepção da opinião é tão brutal.
Mas não surpreende.
Está nos livros.
Foi assim sempre que a Justiça pretendeu realizar a igualdade, desconsiderou pactos genéticos por regra agarrados ao simbolismo de ineficácia de algumas leis, ou quando deixou de ser o «poder nulo» ou a «boca inerte» que diz as palavras da lei.
A assimetria das condições de intervenção e a diferenciação radical do espaço e dos tempos, têm remetido as instituições judiciais para um acantonamento defensivo, quando não para uma atitude passiva perante a intensidade do afrontamento.
Em registo que, pelas exigências da nossa posição, tem de ser muito rigoroso no discurso e no conteúdo, na forma e na substância, devemos reequilibrar a intervenção e, porque não, exercer o contraditório.
Para tanto, devemos insistir na desconstrução de alguns mitos, que em tempos de crise, paradoxalmente, assumem força simbólica pela sua fragilidade racional.
É que as representações da justiça coincidem, por demais, com estereótipos.
E ao real construído, que na repetição faz imposição, deve ser contraposta, com insistência e determinação, uma mensagem de rigor.
A começar pela acusação de falta de transparência e da ausência de escrutínio.
Temos que afirmar, com toda a clareza, para quem quiser ver, de boa-fé, que a realização da justiça é, porventura, a mais transparente das missões de Estado.
Mas, por elementar honestidade intelectual, não se pode assimilar transparência a um “voyeurismo” imediato e primário em projecção populista e inconsequente.
A Justiça não tem segredos. Mesmo a exclusão da publicidade no processo penal é hoje a excepção e de tempo curto, abrindo-se de seguida o processo a quem demonstrar legítimo interesse. Mas legítimo interesse não pode confundir-se com curiosidade de baixo perfil.
A administração da justiça é pública.
A publicidade constitui, aliás, um dos elementos constitutivos do processo equitativo, inscrito como garantia constitucional.
A justiça administra-se sempre através do processo; o processo constitui um espaço de garantia dos interessados e dos cidadãos.
Garantia dos interessados, porque é no processo e apenas pelo processo, conduzido segundo regras pré-estabelecidas, que todos podem exercer os seus direitos, expondo as suas pretensões com inteira igualdade, sob o controlo de regularidade de um juiz imparcial.
Garantia dos cidadãos, porque o processo permite a verificação e o escrutínio externo quanto ao modo como a justiça é administrada.
O processo constitui um espaço democrático; poderemos dizer, o espaço paradigmático de confronto democrático, onde qualquer um que pretenda exercer um direito que julga seu pode intervir em plena igualdade.
No processo, os interessados são todos ouvidos por igual, na mesma dimensão de liberdade dentro das regras estabelecidas, independentemente de, fora do processo, terem possibilidade de falar mais alto ou de poderem fazer-se ouvir melhor.
O escrutínio externo da justiça, se quiser ser responsável e intelectualmente sério, tem de ser feito pelo processo e através do conjunto dos seus elementos, sem urgências do imediato, sem fragmentação das referências, sem unilateralidade das análises e sem manipulação ou selecção arbitrária dos factos.
Por isso, não é escrutínio nem informação, a imputação isolada, a conclusão definitiva assente no pormenor substancialmente irrelevante, ou, como temos visto a propósito de recentes decisões de tribunais, a montagem de espectáculos eticamente vazios e democraticamente dissolventes (obscenos, no sentido etimológico, usado por Régis Debray, em “L’obscénité democratique”), de onde, sem pudor deontológico, «se fazem escorrer emoções e pathos».
Outro mito que é urgente desfazer, resultado de estereótipo construído por afirmações repetidas sem fundamento e sem contraditório, está na responsabilização da justiça pelo mau desempenho da economia.
Se outras razões de demonstração não houvessem, a instalação e o retrato da crise financeira e económica dissolveu o mito.
Não foram, como sem responsabilidade cívica proclamam algumas afirmações por aí escritas e faladas, a ineficiência ou a ineficácia da justiça que provocaram a crise.
Na génese da crise pesaram violações de normas éticas, imponderados comportamentos de risco, incompetência e mesmo a perda do sentido da decência, tudo somado a regulação insuficiente e a supervisão deficiente – como salientou o Senhor Presidente da República em recente intervenção (17 de Abril do 2009, no 4º Congresso da ACEGE).
Foi a exploração do tempo curto através de um «comércio de vento».
Com empobrecimento de quase todos.
Bem ao contrário das ideias feitas, é a crise que condiciona e produz dificuldades acrescidas na resposta das instituições judiciais.
A crise gera conflitos que exigem recomposição.
Matérias que envolvem responsabilidade de natureza penal, direitos em crise pela ignorância dos riscos ou da natureza dos «produtos tóxicos», execução de decisões e solvabilidade de créditos, recuperação de empresas e insolvências, ou a garantia dos direitos afectados de trabalhadores, irão exigir certamente intervenção acrescida e adequação dos meios orgânicos e humanos nas respostas.
A má compreensão da justiça na opinião e nas representações, em interacção de causa e efeito, tem permitido afirmações de extraordinário desconchavo.
Por exemplo, a afirmação em recente artigo de opinião, que a reputação da justiça portuguesa no estrangeiro é «medíocre e risível».
A afirmação é gratuita e muito pouco responsável. E será talvez fundada em algum impressionismo primário, bebido do consabido estatuto de rigor de um qualquer “tablóide” inglês.
Quem estiver interessado, se o rigor e o cuidado intelectual importarem, pode informar-se e ver que a justiça portuguesa é parte inteira no diálogo judicial europeu, colabora em igualdade com as várias justiças tanto da Europa como de outras latitudes, participa activamente em projectos comuns, tem estado na primeira linha da colaboração e da construção da justiça na Europa; a jurisprudência nacional é reconhecida e, por vezes, até precedente no espaço de liberdade, segurança e justiça.
Há meio ano, nesta tribuna, em cerimónia que assinalou o 30º aniversário da vigência em Portugal da CEDH, o Presidente do TEDH quis salientar o cuidado das jurisdições nacionais na protecção de valores fundamentais.
Orgulhamo-nos desta partilha de valores e de linguagem comum e do reconhecimento da justiça portuguesa no concerto das justiças europeias.
Acusa-se a justiça de ser lenta e burocrática.
A percepção está instalada, e este será o indicador que no próximo futuro teremos de melhor cuidar.
Mas, por cuidado elementar, haverá que sublinhar que a actual situação é muito melhor do que a existente há poucos anos, e que os indicadores de avaliação de que dispomos permitem projectar uma evolução positiva.
As dificuldades, hoje, já não são sistémicas.
A resposta dos tribunais superiores, e em particular do Supremo Tribunal, será, porventura, das melhores de todos os 47 Estados do Conselho da Europa, com tempos de resolução de dois -quatro meses, e com uma excelente relação tempo/produtividade/qualidade, que merece o respeito e a admiração das delegações estrangeiras que nos visitam, e que connosco querem partilhar ideias, experiências e soluções.
Por seu lado, o Relatório de 2008 da CEPEJ, do Conselho da Europa, que trata os dados de 2006, situa a taxa de resolução dos processos cíveis em primeira instância em 112%, ao nível das três melhores em termos comparados.
E relativamente a processos cíveis e criminais, a tendência em 2007 e 2008 vai no mesmo sentido, como mostram os elementos estatísticos disponíveis.
Não obstante, o indicador relativo aos tempos de duração dos processos cíveis em primeira instância, que supera o ponto médio em termos europeus, tem de merecer algum cuidado na identificação e resolução dos bloqueios pontuais que perturbam as leituras globais.
Os números impressivos do contencioso de massa gerado pelos grandes utilizadores do sistema de justiça, constituem, certamente, um factor de gestão difícil, que perturba uma leitura positiva sobre a eficiência.
Mas, do outro lado do problema, as referências comparadas indicam-nos que o contencioso nuclear é resolvido em tempos que podem ser qualificados como excelentes.
Senhores Conselheiros,
Senhoras e Senhores:
As instituições de justiça têm de saber compreender e interpretar os sinais de desconfiança democrática, perceber e reverter os desvios de racionalidade e apreender as expectativas dos cidadãos.
A justiça tem de ser para todos e tem de ser compreendida por todos.
Tem de estar adaptada às evoluções da sociedade, à natureza de outros contenciosos, à nova complexidade de velhos problemas, e responder à missão de apaziguamento social na resolução do conflito.
A Justiça do séc. XXI só pode ser construída como justiça de qualidade, eficaz e efectiva.
A eficácia do sistema de justiça deve partir de indicadores sócio-económicos e traduzir uma relação de efectividade entre os serviços e os destinatários.
O regime de acesso ao direito e de acesso à justiça constitui um indicador de primeira linha.
A eficácia da justiça será tanto mais concretizada quanto mais disponível for o acesso ao conhecimento dos direitos e das possibilidades de intervenção para a realização e concretização dos direitos individuais, em particular dos mais desfavorecidos económica e socialmente.
As críticas à morosidade são recorrentes e, por isso, impõe-se cuidar este indicador, isolando os problemas onde existam, para encontrar os mecanismos adequados de intervenção.
A maleabilidade da gestão dos meios materiais, mas sobretudo dos meios humanos, pode ser necessária para uma resposta atempada.
Sem «fetichismo dos números», tendo sempre presente que a justiça precisa de tempo – o tempo razoável.
É certo que as regras do processo são cronófagas e contrárias aos ritmos de aceleração das sociedades do imediato.
Mas na natureza instrumental do processo devemos procurar os equilíbrios exigidos pela garantia dos direitos e pela realização de boa justiça.
A celeridade não poderá ser a primeira das prioridades, porque uma justiça urgente gera riscos de afectação de direitos.
A qualidade da justiça é factor decisivo da confiança.
E constitui um dos elementos essenciais da qualidade da democracia.
Não é fácil definir a noção de qualidade. E, no entanto, é pela qualidade processual e substancial que se marcará a eficácia da decisão.
A qualidade depende do nível discursivo da actividade judiciária, do valor jurídico, da fundamentação das decisões e da consideração que revelem por direitos fundamentais.
Decisões que sejam claras e precisas, fundamentadas e compreensíveis, inteligíveis mesmo na complexidade, axiologicamente comprometidas, mas neutras na linguagem.
A expressão de estados de alma, o comentário lateral, avulso, desinserido e sem préstimo argumentativo, desviam as percepções do essencial para a sedução do pormenor inútil, perturbam a legibilidade e fragilizam a aceitação das decisões.
A coerência da jurisprudência, que dá segurança e acrescenta confiança, será um índice relevante de qualidade. Impõe-se, por isso, melhorar a coordenação da jurisprudência no seio das jurisdições como factor de certeza, de previsibilidade e de igualdade.
A concretização do direito à execução é também inerente à qualidade e directamente instrumental da eficácia das decisões.
A eficiência e a eficácia são factores essenciais da confiança.
Mas a confiança é também sentimento, a «instituição invisível» que devemos tornar visível e solidificar.
É urgente, por isso, uma estratégia que permita inverter o desregramento da má informação e da opinião mal avisada, que são factores de descredibilização do sistema de justiça.
Num editorial de Março passado, o jornal “Expresso” salientava que uma das tarefas do poder político, dos magistrados e de toda a sociedade, sem excluir a comunicação social, que dizia ser «parte importante do caminho perigoso» do descrédito, é credibilizar a justiça.
Todos estaremos de acordo.
A exigência de credibilização foi, uma vez mais, referida pelo Senhor Presidente da República na mensagem de 10 de Junho.
Esta imposição democrática a todos convoca como imperativo categórico.
Lemos por aí que se prepara a abertura de uma frente de obra que certamente nos chamará na defesa de princípios constitutivos do Estado de Direito.
Está de novo, na agenda, a exigência de melhor responsabilização democrática dos juízes.
A instituição judicial constitui, estruturalmente, o paradigma da instituição de ponderação e de imparcialidade, que encontra a sua legitimidade democrática na exclusiva submissão à lei, na credibilidade, na qualidade e na confiança.
O declínio da confiança resulta, por regra, do sentimento de que a instituição se tornou menos objectiva, mais politizada ou partidária, ou que prossegue finalidades que se desviam dos princípios da independência e imparcialidade.
É pelas qualidades e pelo exercício quotidiano que as instituições de ponderação e de imparcialidade se legitimam.
Mas a agenda sobre a responsabilização democrática dos magistrados, afixada agora nos muros da política do dia, pode esconder por debaixo uma outra agenda bem diversa.
A agenda das forças que convivem mal com a independência dos tribunais, com afivelados desígnios marcados de jacobinismo tardio e pós-moderno.
Deveremos, então, recordar o tempo inaugural deste Supremo Tribunal, e repetir a mensagem forte do histórico documento de 14 de Agosto de 1844 - a carta do seu primeiro presidente e dos seus juízes à Rainha, verdadeiro acto fundador da independência judicial: a independência não constitui privilégio dos juízes, mas direito fundamental dos cidadãos.
Senhores Conselheiros:
As instituições são a única realidade de sobrevivência e de perenidade.
Não somos nós.
Mas na transitoriedade e circunstância das nossas vidas, cabe-nos a honra maior de servir o Supremo Tribunal e os cidadãos – o povo em nome de quem administramos a justiça.
Nesta missão, permitam-me que faça nosso o caderno de encargos do juiz Aharon Barak para a função do supremo tribunal numa democracia.
Os juízes devem agir de modo a manter a confiança do povo.
Devem compreender que julgar não constitui apenas uma função, mas uma forma de vida; uma forma de vida que não é compatível com a procura de riqueza material ou de notoriedade pública, mas que visa a riqueza espiritual e que exige uma busca incessante, objectiva e imparcial da verdade.
Uma forma de vida que se guia pela razão e não pela imposição, pela modéstia e não pelo domínio, pela composição e não pela força, pela reputação e não pela fortuna, pelo compromisso com valores e princípios e não pelo desejo de agradar, pela lei geral e igual para todos e não pela demissão perante grupos de interesses, por decisões apoiadas num conjunto de valores e princípios fundamentais e não sob a influência passageira da espuma das coisas.
E com renúncias, especialmente no que respeita à aceitação de restrições à liberdade de expressão.
O nosso dever – e nossa honra sem outra recompensa que não seja a tranquilidade da consciência – será saber, assim, homenagear os nossos maiores. Que são as eminentes figuras da vida nacional que serviram nesta Casa Maior da Justiça ao longo de quase dois séculos.
E transmitir aos que nos sucederem o prestígio intacto da instituição.
Mais pelo exemplo do que por palavras.
Na competência, na atitude, nos comportamentos, na firmeza tranquila, na reserva, mas também em sociedade de medos e conformismo, na coragem do combate que se nos imponha por princípios fundamentais.
Senhor Presidente,
Senhores Conselheiros,
Senhoras e Senhores:
Esgotei o espaço que a vossa tolerância me dispensou.
Terminarei.
A justiça ideal deve ser, a um tempo, aplicada em cada época, mas intemporal, sob pena de se tornar escrava da opinião.
E tem de ser a força serena contra arranjos e manobras em sociedades de manobras e arranjos.
A História ensina-nos que a liberdade e a democracia podem morrer na rua sob o aplauso ruidoso das multidões.
Mas sabemos também que uma Justiça prestigiada e forte é condição e garantia de liberdade.
Porque o futuro está no presente.
Assumindo o dever de inteligência e recusando a atracção intelectual pelo pessimismo, estaremos à altura dos desafios deste tempo.
(António Henriques Gaspar)